ABECEDÁRIO DA DESCOLONIZAÇÃO
ISSN: 2764-9393
ISSN: 2764-9393
A
AFROCENTRICIDADE
Afrocentricidade é um termo cunhado em 1980 no livro "Afrocentricity: The Theory of Social Change", pelo filósofo e professor doutor estadunidense Molefi Kete Asante, que leciona na Universidade de Temple, onde ocupa o cargo de chefe do departamento de Africologia. Segundo sua proposição, Afrocentricidade é um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teóricos, é a colaboração do povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos. (ASANTE, 2014, p. 3). Dentro desse escopo, é necessário colocar esses sujeitos negros em questão no centro da análise para que as agências de pessoas africanas e afrodescendentes sejam reconhecidas nos períodos históricos estudados. Asante propõe, nesse sentido, que os períodos históricos sejam analisados considerando a agência dos sujeitos negros e sua participação dentro do contexto em que vivem.
Em relação à ideia de agência, Asante contesta a visão de que os africanos e afrodescendentes eram passivos nas sociedades em que viviam, pois, de acordo com o paradigma de análise da Afrocentricidade, ele defende que as populações negras assumiram funções ativas e participativas nas sociedades em que estava inseridas. Molefi Asante evidencia essa perspectiva no trecho a seguir:
Um agente, em nossos termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana. Em uma situação de falta de liberdade, opressão e repressão racial, a ideia ativa no interior do conceito de agente assume posição de destaque. Qual o significado prático disso no contexto da afrocentricidade? Quando consideramos questões de lugar, situação, contexto e ocasião que envolvam participantes africanos, é importante observar o conceito de agência em oposição ao de desagência. Dizemos que se encontra em desagência em qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo. Estou fundamentalmente comprometido com a noção de que os africanos devem ser vistos como agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. O que se pode analisar em qualquer discurso intelectual é se os africanos são agentes fortes ou fracos. Quando ela não existe, temos a condição de marginalidade - e sua pior forma é ser marginal na sua própria história (ASANTE, 2009, p. 94-95).
Quanto ao contexto brasileiro, o Afrocentrismo teve como figura central o nome de Zenaide Silva (1956-2011), que foi uma importante atriz e intelectual do movimento negro no Brasil. Zenaide Silva tinha por missão uma educação com base na Afrocentricidade, sempre buscando a face africana que o Brasil possui. Para explicar a Afrocentricidade, Zenaide Silva retoma a filosofia grega e diz que na verdade ela foi ‘‘roubada’’ pelos gregos, já que sua verdadeira origem é na África, mais especificamente no Egito, e que a associação do início da filosofia na Grécia é fruto de um constante apagamento europeu da produção africana. Tanto o fato exemplificado por Zenaide Silva, quanto outros apagamentos da cultura e história africana podem ser reexaminados a partir de uma educação com base no paradigma de análise da Afrocentricidade. Atualmente, o autor Renato Noguera é um proeminente nome na defesa da educação com base na Afrocentricidade. Para Noguera, é vital que os negros e negras se enxerguem como um elemento de destaque na constituição da sociedade brasileira. Segundo ele, uma educação com base na Afrocentricidade contribui para que a maioria da população brasileira se reconheça na produção histórica e cultural brasileira.
Em suma, a Afrocentricidade pode ser vista como uma mudança de paradigma, uma tentativa de ‘‘consertar’’ uma visão que por muitos anos foi eurocêntrica. A África e os africanos foram rebaixados a um papel secundário e de desvalorização por conta dos séculos e mais séculos de escravidão e colonização. Durante esse período, os brancos europeus mantiveram uma visão de superioridade sobre a cultura negra e africana, o que levou a uma subvalorização da produção intelectual e cultural da população negra de modo geral. A perspectiva de análise da Afrocentricidade é fundamental para o enfrentamento desse preconceito histórico e para que haja a reestruturação do papel dos negros e de seus lugares nas sociedades nas quais esses sujeitos estão inseridos. Para que ocorra sua valorização, é preciso que eles sejam visibilizados, só assim, esses indivíduos negros receberão o reconhecimento que por muitos séculos lhes foi negado.
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Data de Publicação: 22/10/2024
Autoria: Gustavo Rodrigues Vitório
Bibliografia
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa L. (org.). Afrocentricidade Uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 93-110.
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: a teoria de mudança social. Afrocentricidade Internacional, 2014.
NOGUERA, Renato. Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado. Revista África e Africanidades, v. III, p. 01-18, 2010.
TV CULTURA. Zenaide Silva quer introduzir conhecimentos de afrocentricidade (bloco 1). Youtube, 25 de abril de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VPoAfUN0Gk0. Acesso em: 19 de abril 2024.
Como citar este verbete:
VITÓRIO, Gustavo Rodrigues. "Afrocentricidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d ISSN 2764-9393
ISSN 2764-9393
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Referência intelectual e política nos movimentos negros e de mulheres no Brasil e através da diáspora, Lélia Gonzalez (Belo Horizonte, 1935 — Rio de Janeiro, 1994) propõe a categoria político-cultural da amefricanidade de modo a abrir caminhos para perceber a especificidade da constituição do território que ela renomeia de Améfrica Ladina. Entendendo a linguagem como epistêmica, essa reinscrição possibilita um descentramento dos métodos eurocentrados de pensar o nosso presente herdado, e ampara uma releitura da história da região em pretugûes – o nome que ela dá para a língua falada no Brasil, que carrega as marcas da africanização da sociedade brasileira.
É essa perspectiva que Gonzalez traz para repensar a formação histórica do nosso país em conjunturas regionais e transnacionais, redimensionando as heranças indígenas, africanas e europeias que nos constituem – que não começam, nem terminam, com as fronteiras erguidas pelo projeto colonial europeu de base escravista. Aqui se encontra um convite para pensar diasporicamente, e ampliar o nosso campo de visão com uma nova ótica – a da amefricanidade. Só reconhecendo a presença negada, embranquecida, reapropriada e aniquilada das contribuições de povos indígenas e africanos em resistência desde o início do projeto moderno colonial, se torna possível recentrar os métodos de análise rumo à descolonização efetiva das estruturas vigentes de poder, saber e ser.
Ao nos localizar na Améfrica Ladina, Gonzalez rompe com uma leitura do chamado Novo Mundo centrada na perspectiva do Velho Mundo, cuja chamada latinidade se firmou em disputas imperiais contra forças anglo-saxônicas no continente europeu. Sua rearticulação no outro lado do Atlântico se deu através dos interesses de conservar um elo possível com a alvejada civilização europeia, por intermédio de uma elite dirigente local em busca de governabilidade, que, na época da consolidação do Estado-nação e processos decorrentes da construção de uma identidade nacional, era mais instruída na história, geografia, línguas e disciplinas da Europa do que naquelas do nosso próprio continente.
Essa reinscrição, que se vale da política de autonomeação como base para políticas de autodeterminação e respeito à pluralidade da sociedade brasileira, também confronta o essencialismo que relega o país a uma espécie de não-lugar ou entre-lugar, em vez de uma localização própria, uma localização amefricana. Historicamente falando, não tem sentido pensar as ideias fora do lugar, mesmo diante de imposições exógenas que se fazem presentes em qualquer projeto da colonialidade imperialista.
Por essa categoria, torna-se possível compreender o processo histórico encadeado pela colonização e colonialidade vivenciada no Brasil na base de uma disposição afrocentrada, que enfrenta as hierarquizações, desvalorizações e apagamentos do modo eurocentrado com que continuamos a narrar a história moderna colonial global. Nas palavras de Gonzalez:
As implicações políticas e culturais da categoria amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular).
Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. [...] Seu valor metodológico, a meu ver, está no fato de permitir a possibilidade de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo (GONZALEZ, 1988, pp. 76-77).
Atenta aos processos históricos de “adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas”, uma abordagem amefricana nos permite acessar as complexidades das relações de poder que não se resumem à lógica binária de ação ativa ou passiva, registrando cada ação nos termos que lhe cabe em contexto e que estruturam o campo político de im/possibilidades. Olhando para a experiência diaspórica fruto dos processos de colonização na Améfrica Ladina, alargamos o nosso campo de visão para conjugar as relações internas e externas, ou mais precisamente, as relações inter/nacionais da constituição de nosso país e do sistema-mundo no qual se insere.
O prisma da amefricanidade não se vale de encontrar o que sobreviveu de civilizações africanas do outro lado do oceano, como nos alerta Gonzalez, mas assume como ponto de partida a criação afrocentrada de novas formas na diáspora que foi gerada pelas práticas de resistência e reinvenção na luta contra a escravidão, o genocídio e a exploração colonial no continente amefricano. Em suas palavras: “foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação” (GONZALEZ, 1988, p. 138).
Tal recentramento conceitual, metodológico e historiográfico gera re/conhecimentos que têm como base a memória de povos engajados nesta luta por liberdade e uma efetiva descolonização nos territórios amefricanos. Deste modo, recomeçamos a narração da história brasileira afirmando a percepção do Quilombo dos Palmares (1595-1695) como uma das primeiras sociedades registradas, efetivamente democrática na Améfrica Ladina. O berço da democracia brasileira.
Amefricanizar a nossa história é trabalhar todas as implicações políticas de desafiar o sujeito e objeto do conhecimento tido como legítimo pela academia moderna colonial, em uma sociedade regida por o que a Gonzalez identifica como o racismo por denegação e os seus mitos de democracia racial, como ideologias de branqueamento que mascaram as ações e omissões da violência racial que fundou os Estados-nações da região.
Quando enfrentamos os termos por meio dos quais os nossos territórios foram forjados na Améfrica Ladina, em bom pretuguês, como Gonzalez diria, torna-se imperativo focar o racismo/sexismo epistêmico que invalida qualquer perspectiva que não reflita uma visão eurocentrada de mundo. O que o Samba Enredo da Mangueira (DOMÊNICO et al, 2019) colocou em xeque, em plena Sapucaí no Carnaval de 2019, como “o avesso do mesmo lugar”, convidando à toda sociedade para refletir sobre “a história que a História não conta”.
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Data de Publicação: 28/03/2023
Autoria: Andréa Gill e Thula Pires
Bibliografia
DOMÊNICO, Deivid; MIRANDA, Tomaz; MAMA; BOLA, Marcio; OLIVEIRA, Ronie; FIRMINO, Danilo. Samba Enredo 2019: História pra Ninar Gente Grande. Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. 2019. Disponível em: https://mangueira.com.br/site/sambas-enredo/.
GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. In Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1988, n. 92/93, pp. 69-82.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Coletânea organizada por Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as Rosa Negras. Coletânea organizada pela União de Coletivos Pan-Africanistas - UCPA. Diáspora Africana, 2018.
Como citar este verbete:
GILL, Andréa; PIRES, Thula. "Amefricanidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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Pela etimologia da palavra, o significado de Ancestralidade refere-se ao que é ancestral. A nossa raiz ancestral, o que é profundo, ou seja, o que é depreendido como sendo do “passado”. Ampliaremos essa terminologia para “Ancestralidade Indígena”, assim, chegaremos a um conceito histórico carregado de significados, pois a Ancestralidade não deve ser compreendida como um sinônimo do passado, mas sim como um sentimento intrínseco e extrínseco expresso pelos “sujeitos históricos” ao longo do tempo e no tempo presente.
Conceitualmente, quando ampliamos a nossa capacidade de interpretação para a terminologia Ancestralidade Indígena, como um conceito que, conforme entendemos em Michel-Rolph Trouillot, não são palavras, pois, entre os dois, “há camadas de teoria acumulada” (TROUILLOT, 2016, p. 18), a Ancestralidade Indígena passa a ser um “juntado” de experiência que se modifica ao longo do Tempo, visto que, segundo Reinhart Koselleck, o Tempo Histórico “pode ser deduzido da coordenação variável entre experiência e expectativa” (KOSELLECK, 2006, p. 309). Ou seja, das nossas histórias e/ou memórias. Nós, povos indígenas, temos uma ligação bastante profunda com essas experiências que passam a significar a nossa ancestralidade.
Nesse sentido, há algumas possibilidades que nos permitem compreender a Ancestralidade Indígena. Seja pelas nossas experiências históricas acumuladas ao longo do tempo, pela memória de pertencimento que é “construída, (re)construída e repassada de geração para geração numa interação também cosmológica do nosso 'Eu"' (XOKÓ SANTOS, 2022, p.4); pelas experiências culturais e espirituais (modos de enxergar as coisas ao nosso redor); pelas experiências políticas e sociais, a exemplo, das lutas pelos territórios indígenas que são marcadores identitários. Assim, conforme Adilbênia Freire Machado, a “ancestralidade é o jeito de ser, reconhecendo-se ser essência para a existência do mundo em que vivemos. É reconhecer-se construtor das nossas realidades, daquilo que existe. Do que somos! Ancestralidade" (MACHADO, 2014, p. 139). Ou melhor, tudo passa a ser ancestralidade.
A Ancestralidade Indígena está nas memórias individuais, manifestando-se nos nossos sentimentos de pertencimento e, também, de forma coletiva. Em relação a essa última característica, há questões singulares, como a aceitação e reconhecimento do grupo étnico e/ou social pelo qual indicamos o nosso pertencimento ancestral. Assim, para a parente Macuxi Julie Dorrico, a “voz coletiva de reafirmação da identidade indígena surge como elemento de referência à coletividade e à ancestralidade. A voz coletiva se imbrica à individual de forma tal que […], ressoa a voz de toda uma tradição” (DORRICO, 2015, p. 46). Nesse sentido, o sujeito tende a ser reconhecido pelo grupo histórico. Esse reconhecimento se dá pelas vivências cotidianas, familiares e coletivas, pelas práticas tradicionais, pelas narrativas históricas e orais. Ou seja, pelo modo ser do coletivo.
Ao conectar com as nossas memórias e com as nossas histórias, a Ancestralidade Indígena, o nosso “Eu” pertencimento, indica quem somos: é a nossa autoafirmação identitária. Assim, cada ancestralidade tem suas particularidades e suas subjetividades psicológicas — uma é mais espontânea, outra mais silenciosa. É justamente essa última que só aflora em tempo de barbárie, como nos casos das Retomadas Territoriais e de autoafirmação identitária indígena. A parente Eliane Potiguara, pergunta: “por que aguentamos tanta violência subliminar? A intuição é a mensageira da alma; a intuição é a força do conhecimento tradicional, ancestral. A tocha da ancestralidade deve ser trabalhada dentro de cada um de nós, pois, ela é riquíssima em conhecimentos, sejamos indígenas, negros, amarelos ou brancos” (POTIGUARA, 2018, p. 90). É justamente essa ancestralidade que desabrocha como uma flor da caatinga para nos fazer lutar e (re)existir ao cotidiano da colonialidade que trabalha diariamente para nos exterminar. A força e o conhecimento que temos, vêm da ancestralidade. É ciência!
Quando falamos em Ancestralidade Indígena, estamos nos referindo a toda uma vida de história, de memória e de luta por quem somos e lutamos. Luta pelos nossos direitos sociais, culturais e territoriais, pois, este é também um marcador identitário: nasci naquele território. O território que nos cria, que nos alimenta. A nossa Mãe Terra, ela é ancestralidade!
A parente Daniely Silva dos Santos Lima Xokó nos ajuda a esclarecer esse sentido, a Mãe Terra “é a nossa raiz, a razão de nossa existência […], possuímos uma ligação intensa com a terra, pois, ela tem uma forte representação sagrada em nossas vidas […]. A terra também é fonte de autoafirmação” (XOKÓ LIMA, 2012, p. 48). Ou seja, o nosso vínculo com esse lugar de história e memória, um marcador de nossa identidade indígena, como podemos perceber na música/poesia de Paulo Acácio dos Santos Xokó, quando expressa a saudade da nossa terra ancestral, assim ele canta e encanta: “Olha o sol vem saindo / Com raios da bela aurora / Esta é a terra querida / Por nós preferida / É a terra por vitória […]” (XOKÓ SANTOS, 1980, p. 3). É a terra ancestral.
A Ancestralidade Indígena ataca os nossos sentimentos, emoções, ilusões e perspectiva futura no tempo e espaço, é um movimento sincrônico e diacrônico que se liga ao passado e ao presente, “possibilitando um futuro. Conectando o visível e o invisível […], ultrapassam o tempo, reconhecem sua origem e encantam-se. Ancestralidade é uma teia constituída de movimento, pensamento, sentimento, ação” (MACHADO, 2014, p. 169). Toda (re)existência que temos, as estratégias articuladas nos Movimentos Indígenas, o nosso protagonismo, vem da ancestralidade que nos guia diariamente. Quando nos falam: os povos indígenas têm muito a nos ensinar, então! Esse é transmitido pela nossa ancestralidade. Eduardo David de Oliveira, enfatiza que a ancestralidade “é enigma-mistério e revelação-profecia. Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo de interpretar e produzir a realidade. Por isso a ancestralidade é uma arma política. Ela é um instrumento ideológico (conjunto de representações) que serve para construções políticas e sociais” (OLIVEIRA, 2005, p. 258).
Portanto, como pronuncia Ailton Krenak: “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p. 9). Assim, entendemos que a Ancestralidade é o ponto central do nosso equilíbrio universal, falamos da nossa cosmologia, do nosso Bem Viver, é Ancestralidade Indígena!
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Data de Publicação: 23/05/2023
Autoria: Ivanilson Martins dos Xokó Santos
Bibliografia
DORRICO, Julie Stefane Peres. Autoria e performance nas narrativas míticas indígenas Amondawa. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Programa de Pós- Graduação Mestrado Acadêmico em Estudos Literários (MEL), Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Porto Velho, 2015.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução do original: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Revisão da tradução: César Benjamin. - Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e encantamento como inspirações formativas: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira. 2014. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2014.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da Educação Brasileira. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 2005.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Grumin, 2018.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: huya, 2016.
XOKÓ LIMA, Daniely Silva dos Santos. "A importância da terra para o povo Xokó". In: ALMEIDA, Eliene Amorim de; MASCARENHAS, Maria da Conceição, (Org.). Os Xokó: História de luta e resistência. Aracaju: SEED - Secretaria de Estado da Educação, 2012.
XOKÓ SANTOS, Ivanilson Martins dos. História/Memória e Narrativa Decolonial: identidade cultural e diáspora indígena Xokó (1978 – 2021). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, v. 2, n. 51, p. 339 a 362, 15 jun. 2022. Disponível em: <https://www.seer.ufs.br/index.php/rihgse/issue/view/1173>. Acesso em: 10 de julho de 2022.
XOKÓ SANTOS, Paulo Acácio dos. A ilha da vitória: caminhada dos Xokó. Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). “Povos Indígenas do Brasil”. Instituto Socioambiental (ISA). Código de Referência: XOD00016. Data da Produção. 28/03/1994 [1980].
Como citar este verbete:
XOKÓ SANTOS, Ivanilson Martins dos. "Ancestralidade indígena". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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A concepção de Antropoceno surge como nomenclatura para definir uma nova época geológica, posterior ao Holoceno, sendo caracterizada pelo enquadramento da humanidade enquanto modificadora do planeta, assumindo papel de agente geológico. O termo foi apresentado pelos químicos Paul Crutzen e Eugene Stoermer. Tais autores apontam seu marco no final do século XVIII, a partir das crescentes concentrações globais de dióxido de carbono e metano, junto ao projeto da máquina a vapor. Como apontado por Rodrigo Turin, são diversas as datas potenciais para o início desta época geológica. Assim, enquanto alguns estudiosos destacam a crescente dos combustíveis fósseis e a revolução industrial, outros chamam atenção para o século XVI com a expansão marítima, colonização e início de um “sistema-mundo” moderno. Dessa forma, percebemos diferentes prognósticos e planos de historicidade distintos: “E cada uma delas traz implicações políticas diferentes ao presente, desenhando formas e horizontes de ação possíveis, algumas mais convergentes ou divergentes das outras.” (TURIN, 2022, p.148).
O estudo do Antropoceno faz parte de um campo interdisciplinar e não apenas geológico ou das ciências da natureza. Na historiografia, ele aparece desde a década de 1970, a partir da história ambiental, na dimensão da relação entre natureza e sociedade. Entre os nomes de destaques vinculados a tal conceito, destacamos o do historiador indiano Dipesh Chakrabarty. Com fortes influências das teorias subalternas e pós-coloniais, Chakrabarty discorre sobre a relação entre meio ambiente e história, argumentando que é preciso incorporar a dimensão ambiental à narrativa histórica, considerando as consequências do impacto humano no planeta. O autor explora, entre outras questões, a noção de habitabilidade como um termo técnico que se refere a toda vida multicelular, para além da vida humana no planeta.
Alguns pesquisadores trabalham com concepções críticas ao redor do conceito de Antropoceno, como no caso de Donna Haraway. A autora compreende que o sistema de plantação de larga escala baseado no trabalho escravo, as plantations, seriam um ponto de inflexão. Assim, é uma das que propõe a ideia de Plantationoceno, onde o agronegócio, monocultura e a produção global de carne seguem entre as principais influências para tamanha modificação planetária. A partir de tal perspectiva, tal modificação no planeta não seria algo produzido enquanto um ato da “espécie” humana como um todo, mas responsabilidade de uma parcela da população que acumula riqueza e o poder de transformação global. Por sua vez, Jason Moore defende o conceito de Capitaloceno, já que o capitalismo seria o responsável pela crise ecológica contemporânea: “O capitalismo definitivamente mudou a dinâmica de apropriação da natureza de forma dramática, ao submeter essa dominação à lógica do capital e justificá-la por uma ideologia do progresso.” (MARQUES, 2023, P.53).
Rodrigo Turin compreende que a ideia de habitabilidade de Chakrabarty veio se transformando em uma das principais referências diante do limite dos protocolos climáticos da justiça social e climática. Contudo, atenta para a dimensão política das ciências e de termos técnicos. Com base em Isabelle Stengers, o autor aponta para a reflexão a respeito das diversas maneiras de habitar o tempo e o espaço, a partir de uma dimensão cosmopolítica: “Não teorizar sobre o tempo do outro, mas teorizar com o outro, dialogando com seus tempos e suas linguagens.” (TURIN, 2022, p.159).
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski entendem o Antropoceno como parte do tempo presente, mas não de um futuro para a espécie humana: “Embora tenha começado conosco, muito provavelmente terminará sem nós.” (CASTRO; DANOWSKI, 2014, p.16). Os autores enxergam o Antropoceno a partir da perspectiva empírica do fim do mundo causado pela economia industrial com base na energia fóssil e no consumo cada vez mais crescente de espaço, tempo e matérias-primas. Os mesmos acreditam em um olhar mais profundo direcionado às cosmogonias ameríndias, para pensar, inclusive, sobre a crise climática. Apontam que esses povos utilizam há séculos manobras e estratégias de resistência para que seus mundos e subjetividades continuassem a existir, contrariando previsões de desaparecimento. Assim, esses autores mobilizam importantes sínteses conceituais como o perspectivismo ameríndio, que se refere a concepções originárias de uma humanidade compartilhada entre seres humanos e não humanos, onde a natureza é possuidora de subjetividades.
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Data de Publicação: 02/11/2023
Autoria: Bianca Costa de Matos
Bibliografia
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, v. 91, 2013, p. 2-22.
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, Florianópolis, Desterro, Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014.
MARQUES, Leonardo. Sobrevivendo ao inferno: a escrita da história na eco-crise global. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 43, nº 92, 2023.
STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, 2018, p. 442-464.
TURIN. Rodrigo. A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: MULLER, Angelica e IEGELSKI, Francine (orgs). História do Tempo Presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora/Faperj, 2022, p.143-164.
ISSN 2764-9393
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Termo cunhado pelo antropólogo da ciência Bruno Latour, presente no subtítulo de sua obra Jamais fomos modernos: ensaio sobre antropologia simétrica, de 1994. Neste ensaio, Latour busca mobilizar a noção de simetria como fundamento de uma abordagem etnológica das sociedades modernas e ocidentais. Segundo Latour, o pensamento antropológico tradicional, calcado nos pressupostos da modernidade, foi responsável por edificar uma leitura assimétrica dos fenômenos estudados por esta ciência. Essa assimetria é expressa pela dicotomia entre natureza e cultura presente na teoria do conhecimento e ontologia dos modernos. Diante da perspectiva antropológica tradicional, aponta Bruno Latour (1994), a ontologia moderna se baseia em dois pólos distintos: o pólo do mundo natural, no qual a natureza tomaria contornos de uma entidade transcendente, pregressa às paixões e opiniões humanas e totalmente independente delas, e o do mundo da cultura, em que a sociedade aparece como produto imanente e imediato das relações sociais constituídas.
Para esta concepção, a matriz antropológica moderna se define em oposição às sociedades arcaicas e selvagens, nas quais não haveria distinção entre natureza e cultura da mesma forma que ela se configura nas sociedades ocidentais. Portanto, os estudos etnográficos das sociedades arcaicas e pré-modernas produzidos pelos antropólogos, que buscam compreender os entrelaçamentos de uma natureza-cultura, e que reconhecem a ausência de distinções ontológicas entre esses elementos nessas sociedades, não seriam aplicáveis, segundo a antropologia tradicional, ao mundo moderno, pois partilhamos de uma matriz antropológica distinta daquelas sociedades. Opera assim uma grande divisão, entre nós e eles, que impossibilitaria o trabalho etnográfico do mundo sobre o mundo moderno. Os modernos seriam assim incapazes de produzir uma reflexão a respeito de si mesmos. Não obstante, Latour rejeita o postulado desses antropólogos que afirmam a impossibilidade de se fazer uma antropologia do moderno e do ocidente. Em contrapartida, ele destaca que devemos encontrar a resolução desse dilema retomando a indagação clássica "como definir o que é o moderno?" para então viabilizar a prática de uma antropologia da modernidade. Sendo assim, o moderno se definiria a partir de duas condições assimétricas basilares, a primeira estaria associada à noção de que a modernidade se constitui como uma ruptura na passagem do tempo, em contraste a um passado arcaico. A construção do moderno pressupõe a existência de seu par conceitual oposto, que seria o antigo. Já a segunda condição assimétrica estaria relacionada ao fato de que a modernidade depende de batalhas que contenham vencedores e perdedores. Nesse sentido, os vencedores estariam na posição de porta-vozes das luzes e da crítica, crítica essa passou a qualificar toda forma pensamento advindas dos pré-modernos como inepta e ilusória.
Entretanto, devemos compreender que o moderno se refere, sob o ponto de vista da antropologia simétrica, a dois conjuntos de práticas distintas que para se manterem eficazes necessitam estar separadas. Essas práticas são descritas por Latour enquanto trabalhos de tradução/mediação e purificação. A primeira prática expande a proliferação daquilo que Latour chama de híbridos. Esses mistos entre natureza e cultura são produtos da construção do conhecimento em rede responsável pela mobilização e conexão dos atores em cadeia. A segunda prática diz respeito à tarefa realizada pelo moderno de dividir o mundo da natureza, independente dos interesses da sociedade e dos homens. Disso resulta a criação da distinção entre os seres humanos e não humanos. Separar ambos os trabalhos é o movimento identificador do moderno. A antropologia simétrica busca, pelo contrário, reatar a ligação entre os trabalhos de tradução/mediação e purificação, desvelando o que, segundo Latour, a constituição moderna esconde. Ele denomina de constituição uma série de garantias responsáveis por estabilizar as controvérsias produzidas pela modernidade.
As garantias constitucionais estabelecem o caráter transcendente da natureza, assegurando que não foram os homens que construíram a natureza, ela sempre esteve presente e obedece a um regime ontológico autônomo. As garantias constitucionais também asseguram o aspecto imanente da cultura, ao afirmar que a sociedade é produto da ação dos homens. A constituição opera também a separação radical entre estes dois poderes que resulta na distinção dos trabalhos de tradução/mediação e purificação. Para explicar a lógica constitucional da modernidade, Latour utiliza a metáfora jurídico-constitucional, demonstrando como essas garantias funcionam tal como o sistema de freios e contrapesos, que delimita as atribuições dos poderes constituídos em uma democracia contemporânea. A última garantia da constituição diz respeito à presença divina, na qual a supressão do divino em ambos os mundos, seja o da natureza ou da cultura, faz com que Deus intervenha em casos limítrofes de controvérsias envolvendo natureza e sociedade.
Latour levanta a hipótese em seu ensaio de que as garantias constitucionais responsáveis por distinguir o trabalho medição e purificação, ou seja, os processos que criam a separação entre natureza e cultura nunca se realizaram de fato. O paradoxo do mundo moderno está na constatação de que quanto mais nos proibimos de pensar nos híbridos, mais eles se expandem e se proliferam. Portanto, chega-se à conclusão de que jamais fomos modernos, no sentido de realizar a pretensão de controlar a proliferação dos híbridos. A distinção essencial entre a nossa matriz antropológica e a dos pré-modernos está no fato de que eles, ao pensar conjuntamente natureza e cultura, limitam assim a expansão dos híbridos.
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Data de Publicação: 27/06/2023
Autoria: Ana Clara Dutra Barros e Renan Viana Fabiano
Bibliografia
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
Como citar este verbete:
BARROS, Ana Clara Dutra; FABIANO, Renan Viana. "Antropologia simétrica". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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B
BUEN VIVIR
As ideias de “progresso” e de “desenvolvimento” predominantes no mundo atual se originam a partir da colonização das Américas, Ásia e África por diferentes nações europeias. A partir de extrema crueldade, diferentes povos, culturas, epistemologias e maneiras de se viver foram apagadas ou renegadas a uma posição subalterna nas sociedades que se seguiram após o fim dos regimes coloniais. Em muitos casos, inclusive, estes sofrem o mesmo nível de discriminação e perseguição dos tempos coloniais até os dias de hoje. Porém, juntamente com essa perseguição, movimentos de resistência e intelectuais começaram não só a resgatar estas epistemologias, como também a questionar a lógica europeia ligada a uma certa noção de “progresso”. Entre elas, o Buen Vivir se destacou nos últimos anos como uma forma de organização de sociedade completamente diferente da experienciada por boa parte do mundo atual.
O Buen Vivir (em português, “Bem Viver”) é considerado um conceito universal presente em diversas culturas ameríndias. Um dos principais trabalhos recentes sobre o conceito é do intelectual e político Alberto Acosta, traduzido em português para O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Além dele, outros acadêmicos como Walter Mignolo e Eduardo Gudynas também trabalharam a temática.
Mas afinal, o que o Buen Vivir defende? Visando a uma visão pluriversal do conhecimento humano, o Buen Vivir procura criticar a globalização, a modernidade capitalista e as limitações da sua noção de progresso, configurando um projeto colaborativo que visa a uma outra alternativa para um mundo que ainda sofre as mazelas do imperialismo e do colonialismo. Se baseando em cinco pontos principais, o Buen Vivir implica consigo: construir uma perspectiva alternativa; superar o conceito tradicional de desenvolvimento enquanto proposta unificadora global (baseado em uma perspectiva eurocêntrica); enfrentar a colonialidade do poder, do saber e do ser; repensar o Estado em termos plurinacionais e interculturais e repensar e aprofundar a democracia.
Dessa forma, o Buen Vivir se posiciona como uma alternativa de desenvolvimento que se coloca oposta ao desenvolvimento de matriz eurocêntrica e capitalista, almejando uma sociedade pensada de uma maneira plural e que possa abranger diferentes realidades de uma mesma localidade. Assim, seu apogeu na América não se dá por acaso, pois esta consiste em uma região afetada pela realidade colonial há mais de 500 anos.
É importante lembrar que o Buen Vivir, mesmo sendo baseado na filosofia e no estilo de vida dos povos originários, não é uma ideologia única, podendo variar de acordo com questões geográficas ou sociais de um grupo de pessoas. Outros pensamentos similares, por exemplo, podem ser encontrados em diferentes povos ao redor do mundo, como em partes da África e da atual Índia. Hoje, o Buen Vivir é mencionado nas Constituições do Estado Plurinacional da Bolívia e da República do Equador. Na Bolívia, o Buen Vivir está diretamente relacionado à mudança social promovida durante a década de 2000, com a ascensão de Evo Morales e de outras lideranças indígenas na política nacional, com a ideia de uma prática horizontal do Estado, com o exercício do plurinacionalismo jurídico, o autogoverno de suas comunidades e a criação de diferentes espaços comunitários. Embora nem todas estas ações tenham sido efetivamente e/ou completamente aplicadas na Bolívia, no Equador ou em qualquer outro Estado da América do Sul, o Buen Vivir cada vez mais aparece como uma alternativa a uma modernidade que vigorou por séculos na América, que sempre será desafiada por aqueles que não se veem incluídos nela.
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Data de Publicação: 19/02/2024
Autoria: Daria Fernandes Oliveira
Bibliografia
ACOSTA, Alberto. “El Buen Vivir como alternativa al desarrollo. Algunas reflexiones económicas y no tan económicas.” In Política y Sociedad. Vol. 52, Núm. 2 (2015): 299-330.
ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Editora Elefante, 2019.
Como citar este verbete:
OLIVEIRA, Daria Fernandes. "Buen Vivir". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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C
Ch’ixi é um conceito central nas reflexões de Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana que se reconhece como descendente aimará, uma das etnias mais populosas da América do Sul e a segunda maior da Bolívia. Esse termo foi gestado de forma conjunta pelo Coletivx Ch’ixi, um espaço de autogestão criado em 2008, localizado em La Paz e formado por diversos colaboradores, entre os quais indígenas aimarás (GONÇALVES, p. 76, 2019).
Embora essa palavra de origem aimará tenha vários significados, em seus textos Silvia Rivera Cusicanqui procura definir um sentido que permita utilizá-lo como um recurso conceitual para a compreensão da história e da sociedade andina.
O termo se refere a uma cor, o gris (cinza) e representa, na análise da socióloga, a metáfora para o encontro entre dois mundos que vivem em constante contradição. Quando utilizado neste sentido, o termo ch’ixi apresenta uma potencialidade problematizadora, já que faz referência a uma mescla de cores (o branco e o preto ou o verde e o vermelho). Essas cores se cruzam, se perpassam, mas não se fundem a ponto de se reduzirem a uma única cor. Conforme a socióloga, “a noção ch’ixi, como muitas outras, obedece a ideia aimará de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja, a lógica do terceiro incluído.” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 10)
Silvia Rivera Cusicanqui explica que aprendeu a palavra ch’ixi com um escultor aimará chamado Víctor Zapana, segundo o qual as entidades ch’ixis são indeterminadas e por isso muito poderosas, não são brancas nem negras mas são as duas coisas. Um dos exemplos fornecidos pela socióloga é a serpente que é masculina e feminina ao mesmo tempo, que não pertence nem ao céu e nem a terra, mas habita ambos os espaços “como chuva ou como rio subterrâneo, como raio ou como veio de uma mina” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.80).
Para a socióloga, o ch’ixi é uma imagem poderosa que pode ser acionada para pensar “a coexistência de elementos heterogêneos” que não se submetem um ao outro, não se prestam a fusão e não produzem um novo termo capaz de englobar ou se sobrepor à ideia dessa existência dupla (2010, p. 7). Para ela, é necessário trabalhar nesta contradição “fazendo de sua polaridade o espaço de criação.” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p. 83).
O ch’ixi faz referência ainda à indiferenciação, à potência do indiferenciado que conjuga os opostos, como é o caso da pedra ch’ixi, conforme exemplo fornecido pela socióloga. A pedra agrega animais míticos como o lagarto, o sapo e a serpente dos tempos da indiferenciação, dos tempos imemoriais, quando não existiam as nomenclaturas das espécies operando a partir da razão moderna, época na qual seres humanos e outros seres não se distinguiam (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 69).
A categoria Ch’ixi, portanto, pode ser lida como a conjunção do mundo índio com seu oposto, mas nunca a mesclagem de ambos. Para Rivera Cusicanqui esse conceito pode ser pensado como uma alternativa a binarismos e posturas que procuram identificar os grupos indígenas a partir de uma identidade rígida, monolítica ou ainda a partir da chave de leitura da hibridação. (2010, p. 7). A crítica à ideia da cultura híbrida é questionada já que pressupõe a junção de duas partes puras, não misturadas, que se mesclam resultando em uma fusão.
Rivera Cusicanqui diferencia ainda o termo ch’ixi de chhixi, duas palavras aimarás muito parecidas na grafia, mas cujos significados são distintos. A noção de chhixi representa o insubstancial, o inconsciente, o aquoso. É utilizado como metáfora para entender a ala masculina da estrutura social. É o mestiço sem memória, sem compromisso com o passado; ele é oportunista, caminha conforme soprar o vento, está preso ao Estado, é o patriarca estatal. Já o ch’ixi é explosão, é a síntese da contradição, é o espaço da criação do tecido intermediário. É uma atividade produtiva, capaz de criar um outro espaço público. A contradição neste caso não pode ser pensada como paralisante, como irredutível, mas como potência explosiva e criadora.
A categoria ch’ixi também coloca em questão a reflexão sobre a postura do intelectual mestiço que convive com a estrutura colonial e, ao mesmo tempo, busca o rompimento em relação a essa condição. Para a socióloga, o colonialismo nos habita e não é possível se livrar dele para se posicionar em relação à América Latina, mas é ele também por sua vez que alimenta uma escrita e uma posição ch’ixi.
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Data de Publicação: 03/10/2023
Autoria: Liz Andréa Dalfré
Bibliografia
GONÇALVES, Chryslen Mayra Barbosa. Epistemologias manchadas: mestiçagem e sujeitos políticos da descolonização na Bolívia andina. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas-SP, p. 187, 2019.
LÂNES, Patrícia. "?Un mundo ch?ixi es posible?, de Silvia Rivera Cusicanqui." Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia. Dossiê: Giro decolonial, Parte 1: Artes visuais, arquiteturas e alteridades., v. 3, p. 210-217, 2019.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax Utxiwa: uma reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires, Tinta Limón, 2010.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’ixi es posible. Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: Tinta Limón, 2018.
Como citar este verbete:
DAFRÉ, Liz Andréa. "Ch'ixi". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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O regime de historicidade monohistórico, decorrente da lógica cognitiva da colonialidade, parte da premissa de que existe um único mundo natural e humano, com um só cronotopo. Baseia-se em certezas como a linearidade e o caráter progressivo do tempo, a homogeneidade do espaço, a separação absoluta entre presente e passado e o avanço inexorável rumo ao progresso. Ao estabelecer uma verdade universal, pautada pelas dicotomias corpo/alma, natureza/cultura, objetivo/subjetivo, animalidade/humanidade, imanência/transcendência, não reconhece que outras formas de conhecimento, distintas da ciência moderna, são igualmente capazes de representar o mundo. Dessa forma, concebe o "cosmos" como uma globalidade organizada, como uma homogeneidade que tolera outras existências, mas que as silencia, as despreza e as desqualifica.
No intuito de desconstruir as pretensões universalistas da história ocidental, que durante séculos pretendeu-se porta voz da humanidade em sua totalidade, o historiador mexicano Federico Navarrete Linares propõe o conceito de cosmohistória. O regime de historicidade cosmohistórico é aquele capaz de reconhecer a existência das diversas historicidades ou de mundos históricos diferentes, que produzem cronotopos distintos, incluem diversos protagonistas (muitos deles não humanos) e concebem formas alternativas do devir histórico. Preocupa-se em compreender as interações sempre complexas, multifacetadas e frágeis entre mundos históricos cuja totalidade é desconhecida, para poder construir verdades históricas parciais e negociadas.
Ao reconstruir os terrenos comuns, sempre precários e mutáveis, que os mundos históricos estabelecem por meio de enfrentamentos violentos, diálogos ambíguos e negociações intrincadas, a cosmohistória combate a ideia de uma verdade histórica única. Nessa perspectiva, os diferentes modos de constituir o mundo podem ser interpretados a partir de conceitos próprios às culturas que os fundamentam. Segundo Navarrete Linares, não se trata de buscar a "verdade histórica" objetiva, mas sim de compreender como se constroem as limitadas e precárias verdades entre mundos diferentes.
Para Navarrete Linares, a cosmohistória é indissociável da cosmopolítica, conceito proposto pela filósofa belga Isabelle Stengers. Na verdade, o termo cosmopolítica foi cunhado pelo cínico Diógenes de Sinope no século IX a.C e retomado por Immanuel Kant, que o associou ao projeto de uma paz perpétua entre as nações, decorrente da possibilidade de unificação de todo gênero humano sob certas leis universais (Kant, 2010). Contudo, na série Cosmopolitiques (1997), Stengers elaborou um novo tipo científico, chamado de "sofista não relativista", que se distancia do cosmopolitismo kantiano e se aproxima de uma nova postura ética e epistêmica, disposta a dialogar com outras práticas, normalmente desqualificadas pela ciência moderna. Tendo como interlocutores Bruno Latour, Félix Guattari e Gille Deleuze, entre outros intelectuais, Stengers busca dar conta das divergências, incertezas, fricções e disputas entre a multiplicidade dos mundos pela definição do real. A cosmopolítica, nesse sentido, refere-se ao trabalho político de construção de relações entre mundos diferentes, tanto no interior de cada sociedade como entre grupos humanos distintos. Parte da premissa de que fazer ciência é fazer mundos, é registrar a polifonia, sem medo da dissonância.
Longe de estabelecer um regime de verdade, visto como representação do mundo que pode ser acessada apenas por determinadas formas de conhecimento, a cosmopolítica de Stengers é um modo de olhar e de aproximar-se de algo, é uma maneira de pensar; em outras palavras, um "não saber". Aponta para as constantes bifurcações e para a impossibilidade de alcançar uma síntese, dada a inexistência de um sistema que possa englobar todas as diferenças. Demarca, portanto, um limite ético para o conhecimento, ressaltando que alguns espaços permanecem inalcançáveis e que algumas "verdades históricas" não podem ser reveladas, tal como pretendeu a colonialidade.
Ao fim e ao cabo, podemos dizer que a prática cosmohistórica não pode prescindir da operação cosmopolítica. Para nós historiadores, trata-se, afinal, de estabelecer uma posição de equivalência - mas não de igualdade - entre as distintas visões históricas existentes. Diante de visões históricas subjetivas, que interpretam à sua própria maneira o mundo ao seu redor e sua relação com os Outros existentes fora dele, não podemos esperar nada além de relações marcadas por desacordos profundos, mal entendidos deliberados ou involuntários, más interpretações e omissões.
Navarrete Linares ressalta que a cosmohistória não é uma invenção da modernidade em crise. Na realidade, ela esteve presente ao longo de séculos de encontros, guerras, relações diplomáticas e intercâmbios entre indígenas, africanos e europeus no continente americano.
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Data de Publicação: 28/09/2022
Autoria: Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack
Bibliografia
MARTÍNEZ RAMÍREZ, María Isabel; NEURATH, Johannes (coord.). Cosmopolítica y cosmohistoria: una anti-síntesis. Ciudad de México: Sb. Editorial, 2021.
NAVARRETE LINARES, Federico. "Hacia una cosmohistoria: las historias indígenas más allá de la monohistoria occidental". In SIMSON, Ingrid; ZERMEÑO PADILLA, Guillermo (coord.). La historiografía en tiempos globales. Berlim: Edition Tranvía, 2020, pp-227-252.
STENGERS, Isabelle. Cosmopolitics I. London, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
Como citar este verbete:
SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. "Cosmopolítica/Cosmohistória". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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