ABECEDÁRIO DA DESCOLONIZAÇÃO
ISSN: 2764-9393
ISSN: 2764-9393
E
Nas últimas décadas, a palavra “eurocentrismo” vem sendo usada com bastante frequência por sociólogos, antropólogos, filósofos, pedagogos, ensaístas, críticos literários e historiadores. Apesar dessa ampla difusão na literatura contemporânea, não é sempre que a palavra vem acompanhada de uma definição ou de uma matização teórica. Parte-se do princípio que todos sabem seu significado, ainda que suas consequências, seu alcance ou, até mesmo, a veracidade de sua existência sejam alvo de acalorados debates. A ausência de uma descrição mais precisa pode fazer com que “eurocentrismo” seja facilmente confundido com “etnocentrismo”, fator que limita o poder explicativo que pode ser vinculado ao primeiro termo. Um exemplo disso é a definição bastante sintética do dicionário de antropologia de Mike Morris, onde o eurocentrismo é caracterizado como uma noção básica que defende que os valores europeus são naturalmente superiores aos de outros povos, postura que pode ser facilmente descrita como etnocêntrica.
Um entendimento um pouco mais refinado desta temática é esboçado no verbete do New Dictionary of the History of Ideas, no qual “eurocentrismo” é apresentado como uma “tendência discursiva para interpretar as histórias e culturas das sociedades não ocidentais a partir de uma perspectiva europeia (ou ocidental) [tradução livre]”. O verbete identifica como traço comum do eurocentrismo a superestimação das sociedades não europeias, atitude que poderia ser facilmente descrita como etnocêntrica. Todavia, o texto vai adiante e realça um elemento que será particularmente relevante para a reflexão historiográfica sobre o assunto, qual seja: a prática eurocêntrica de instituir uma visão das trajetórias históricas das sociedades não europeias, a partir de pressupostos unicamente europeus. Um desdobramento dessa prática seria a interpretação das histórias das “outras” partes do mundo como partes complementares da grande narrativa da expansão da Europa e de sua influência civilizatória sobre o globo.
Uma reflexão bastante instrutiva sobre o tema do eurocentrismo pode ser encontrada no livro do economista Samir Amin, Eurocentrism. Na obra, Amin chama nossa atenção sobre a importância de diferenciar eurocentrismo de etnocentrismo. Isto porque, ainda que não possa ser considerado estritamente uma teoria, o eurocentrismo não é uma simples forma de etnocentrismo, este sim uma manifestação que pode ser encontrada em diversas culturas ao longo do tempo e do espaço, não sendo, portanto, uma exclusividade europeia. O eurocentrismo, por outro lado, seria uma “construção relativamente moderna” [tradução livre], um fenômeno que pode ser considerado vigente do século XVIII, em diante. Para o autor, mais do que um conjunto de erros, preconceitos e enganos que os ocidentais possam ter cometido ao observar e interagir com outras culturas, o eurocentrismo implica em uma teoria da história mundial que, a seu turno, pode ser empregada como instrumento de determinados projetos políticos.
O exame da produção dessa metanarrativa da superioridade europeia deveria interessar mais à comunidade historiográfica, até porque tal metanarrativa constitui um enorme obstáculo para uma compreensão mais adequada do passado da Europa, bem como das “outras” partes do mundo, mas também das relações entre as diferentes sociedades e culturas. Em certo sentido, essa é uma das críticas presentes na obra do antropólogo Jack Goody que recebeu o sugestivo título de O Roubo da História. No livro, publicado pela primeira vez em 2007, Goody produz uma contundente crítica, não isenta de fragilidades, ao que ele classificou como “a dominação da história pelo Ocidente”, e que corresponde à apresentação e à conceituação do passado global em conformidade com a lógica, restrita e provincial, da Europa Ocidental. Argumento semelhante, porém, com desenvolvimento bastante distinto, é esboçado no livro do geógrafo James Blaut, no qual o autor afirma que o eurocentrismo, muito mais que um conjunto de preconceitos contra povos não-europeus, é um problema que concerne à ciência e à produção de conhecimento especializado. Aprofundando a reflexão sobre o tema, Blaut afirma que é um problema central para a historiografia e para a história das ideias compreender como o discurso histórico ocidental assimilou – creio ser acertado acrescentar que tal discurso não apenas assimilou, bem como produziu e difundiu – afirmações eurocêntricas que, todavia, são frágeis do ponto de vista metodológico. Acerca da centralidade desse problema, creio ser difícil divergir do autor.
O sociólogo Immanuel Wallerstein, reconhecido principalmente pelo sólido e amplamente difundido trabalho acerca do sistema mundial moderno, refletiu em diferentes escritos a respeito do arcabouço teórico das ciências sociais, e de suas relações com os desafios colocados pelas transformações das estruturas políticas e sociais globais, no final do século XX. Após analisar a história social da epistemologia das ciências sociais, o autor defendeu, ainda em 1998, que muitas das suposições e princípios que servem como base para as ciências sociais, além de serem enganosos, representam verdadeiras amarras ao pensamento crítico. A origem de tais amarras e enganos pode ser encontrada, muitas vezes, na lógica eurocêntrica que acompanhou o momento de fundação das ciências humanas, deixando marcas significativas também em seu arcabouço teórico.
Importa registrar, como nos recorda Wallerstein, que a crítica ao eurocentrismo ganha força em 1945, nos quadros dos movimentos de descolonização da África e da Ásia, cenário no qual as denúncias e críticas efetivadas pelos discursos anticoloniais – nas vozes de autores como Aimé Césaire e Franz Fanon, para citar dois exemplos emblemáticos – ocuparam um lugar preponderante. Também não custa assinalar que a perspectiva teórica pós-colonial, em alguma dimensão herdeira do discurso anticolonial, se afirma no cenário intelectual como crítica ferrenha ao eurocentrismo, para tanto, basta lembrar de uma das referências mais elementares dessa perspectiva, o livro Orientalismo de Edward Said.
No entanto, dentre as muitas reflexões de Immanuel Wallerstein sobre o eurocentrismo, a que nos interessa é aquela que poderá nos auxiliar a compreender o que o autor denominou de “avatares do eurocentrismo”. Tais avatares seriam uma espécie de encarnação do eurocentrismo, em outras palavras, as formas através das quais o eurocentrismo se manifesta no mundo. Wallerstein enumera cinco campos de ação dos avatares do eurocentrismo: historiografia, universalismo, civilização, orientalismo e progresso. O exame das categorias, em que são agrupados os avatares do eurocentrismo, é uma operação particularmente importante para o campo das humanidades, tendo em vista que a bibliografia e as fontes primárias com as quais operamos regularmente estão apinhadas de manifestações diretas e indiretas destes avatares. Assim, por exemplo, o termo civilização é usualmente empregado em contraposição às noções de primitivo ou bárbaro, concepções já francamente contestadas pela antropologia. Já a noção de progresso, que em muitos casos serviu como um substituto para civilização, forneceu o fundamento racional das teses que descrevem as sucessivas etapas de desenvolvimento das sociedades que, por sua vez, embasam as teorias de modernização, também já amplamente criticadas. Em linhas muitíssimo gerais, as teorias de modernização e as formas etapistas de compreensão da história acabam sendo eurocêntricas porque supõem, declarada ou implicitamente, que a trajetória histórica europeia não é apenas o modelo, mas, também, a meta a ser alcançada no final da corrida pelo desenvolvimento.
Aqui reside uma das muitas armadilhas da lógica eurocêntrica, ela se encontra tão impregnada nos valores e concepções majoritárias do mundo contemporâneo que corre o risco de passar desapercebida. O problema ainda é mais profundo do que aparenta, uma vez que mesmo aqueles pesquisadores que estão compromissados em identificar e combater o eurocentrismo, podem eles mesmos continuar perpetuando sua lógica através da adoção de premissas eurocêntricas para criticar o eurocentrismo, uma armadilha descrita por Wallerstein como “anti-eurocentrismo eurocêntrico”.
Assim, é possível perceber que muito mais do que uma atitude etnocêntrica por parte de europeus em relação a outros povos, é recomendável entender o eurocentrismo como uma lógica discursiva que governou, e em alguns casos ainda governa, os protocolos epistemológicos de produção das ciências humanas na sociedade ocidental.
--------------------
Data de Publicação: 05/09/2023
Autoria: Rachel Williams
Bibliografia
AMIN, Samir. Eurocentrism; modernity, religion, and democracy; a critique of eurocentrism and culturalism. (Second edition). New York: Monthly review press, 2009.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Frantz Fanon; a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. São Paulo: Intermeios, 2020.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial; pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu editora, 2022.
GOODY, Jack. O roubo da História; como os europeus se apropriaram das ideias e das invenções do Oriente. São Paulo: Editora Contexto, 2008. E-book.
GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo; uma nova história da humanidade. São Paulo: Companhia das letras, 2022. E-book.
HOROWITZ, Maryanne Cline (ed.). New dicionary of the history of ideas (vol. 2). New York: Charles Scribner's Sons, 2005.
MORRIS, Mike. Concise dictionary of social and cultural anthropology. Chichester: Wiley-Blackwell, 2012.
REVEL, Jacques. A história redescoberta? In:BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas. Por uma história-mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. p. 21-28.
SAID, Edward. Orientalismo; o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de bolso, 2007.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 129.
WALLERSTEIN, Immanuel. El eurocentrismo y sus avatares: los dilemas de las ciencias sociales. Revista de Sociologia, n°. 15, 2001, pp. 27 - 39.
Como citar este verbete:
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h
ISSN 2764-9393
--------------------
F
G
GÊNERO
Pensar gênero a partir da decolonialidade nos convoca a estar em relação constante com a complexidade das perspectivas abertas pelo Sul Global. Traremos aqui um breve balanço de pontos importantes para pontuar essa discussão, iniciando pelo conceito de colonialidade de gênero. Em 2008, a filósofa argentina María Lugones publicou seu artigo “Colonialidade e Gênero”, partindo da investigação, realizada na Universidade do Estado de Nova York, de raça, classe, gênero e sexualidade em cruzamento com o conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, que a levou à afirmação do “sistema moderno-colonial de gênero” (LUGONES, 2020). Esse sistema de Lugones complexifica o modelo de eixos estruturais hierárquicos de Quijano e foca nos processos de entrelaçamento das categorias de raça e gênero, de modo a permitir acessar a profundidade das realidades históricas, sociais e culturais.
Reconhecendo a importância do Grupo Modernidade/Colonialidade para suas pesquisas, grupo do qual fez parte, Lugones afirma que Quijano percebe a intersecção de raça e gênero em termos estruturais amplos: raça e gênero ganham significados a partir do padrão de poder capitalista eurocêntrico e global. Quijano não teria levado em consideração que a permanência da diferença colonial pode estar fundada tanto na ordem capitalista econômica e na geopolítica do conhecimento, como também nas relações de gênero. Ou seja, não foi questionado o papel subalternizado das mulheres nessa forma de esquematizar as relações sociais e políticas, porque gênero era pensado a partir da binaridade dos sexos, como algo intrínseco ao sexo, e não como resultado de uma ação política colonial. Lugones fala de uma colonialidade de gênero complexificada, porque para ela as expressões de gênero marcadas, por exemplo, pela oposição entre as tarefas e comportamentos dos dois sexos, cabendo à mulher o ambiente doméstico separado do ambiente social e político, eram também um instrumento de dominação colonial que conseguiu, a partir da introdução do patriarcado, modificar significativamente comportamentos sociais que possuíam outra forma, entendimento e funcionamento. Para Cláudia de Lima Costa, “ao trazer a colonialidade do gênero como elemento recalcitrante na teorização sobre a colonialidade do poder, Lugones abre um importante espaço para a articulação entre feminismo e decolonialidade, cuja meta é lutar pelo poder interpretativo das teorias feministas a partir de um projeto de descolonização do saber eurocêntrico-colonial” (COSTA, 2022, p. 3).
A crítica de Lugones refere-se principalmente à sua leitura do conceito de interseccionalidade e à afirmação de que a introdução da divisão do trabalho pelo gênero se deu a partir do processo de colonização. Com relação à interseccionalidade, se distancia da proposta da defensora dos direitos civis estadunidense Kimberlé Crenshaw em dois pontos fundamentais: quando argumenta que a categoria mulher usada para pensar o processo de colonialidade de gênero exclui a mulher de cor, já que a inexistência da mulher negra é consequência da colonialidade do gênero; e pelo mal-entendido de sua interpretação de Crenshaw já amplamente registrado por várias teóricas, em que a lógica da teoria interseccional funciona como eixos vistos de forma separada, e por isso propõe um movimento para além da interseccionalidade rumo à fusão em seu feminismo decolonial (COSTA, 2022).
Com relação à divisão do trabalho pelo gênero, Lugones se utiliza os trabalhos da feminista nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí e da escritora feminista indígena Paula Gunn Allen para buscar fundamentar suas afirmações com relação à binarização das sociedades subalternizadas pelo processo colonizador, já que, segundo as autoras, o gênero não era um princípio organizador nas comunidades tribais, não existindo divisão sexual do trabalho. Essa leitura que Lugones faz tanto das autoras quanto da não existência da divisão sexual do trabalho foi contestada, por exemplo, por Rita Segato (2023), Julieta Paredes (2010), Catherine Walsh (2018) e Silvia Rivera Cusicanqui (2004), que forneceram amplas evidências da existência de estruturas patriarcais em que o gênero é utilizado como sistema opressor para a diferenciação social, mesmo sendo diferente do sistema ocidental, o que Segato denominou de patriarcado de menor intensidade, e Paredes de entroncamento de patriarcados.
Sobre esse ponto, a pesquisadora Claúdia de Lima Costa propõe ainda uma nova forma de abordagem, através da noção de cosmopolítica indígena, articulada pela antropóloga peruana Marisol de La Cadena (2010) e de tradução como equivocação, de Eduardo Viveiros de Castro (2004). Segundo Costa, essas abordagens:
[…] abrem a possibilidade de entendermos o gênero, tal qual outras categorias da diferença, como equivocações: isto é, como classificações que possuem diferentes representações a partir de perspectivas pluriversais. Se decidirmos por esse caminho, pondera Costa, teremos que nos engajar no difícil processo de tradução cultural, evitando as armadilhas da colonialidade da linguagem e da tradução colonial. Para permitir a existência de mundos heterogêneos e de categorias equívocas, o trabalho de tradução se faz necessário. Em outras palavras, o equívoco exige tradução: é a partir de traduções politicamente motivadas e infiéis, que a pluralidade de mundos se interconecta sem se tornarem comensuráveis. Resumidamente, gênero pode significar diferentes coisas a partir de diferentes formações onto-epistêmicas (COSTA, 2022, p. 4-5).
No entanto, apesar das críticas às formulações de Lugones nesse ponto, é inegável que a imposição de um sistema europeu de gênero tem efeitos profundos até o presente, sendo, nesse sentido, a conceituação de Lugones bastante útil por situar o gênero como parte indissociável da lógica genocida da colonialidade do poder. Abordar o gênero pela perspectiva decolonial é sempre um processo, ele está sempre em elaboração, ele não se fecha porque ele é movimento constante, e dessa maneira mantém sua força para questionar as institucionalizações.
--------------------
Data de Publicação: 02/04/2024
Autoria: Priscila Miraz de Freitas Grecco
Bibliografia
COSTA. Cláudia de Lima. Interrogando Lugones: reflexões sobre um debate inconcluso. In: Revista Estudos Feministas, vol. 30, núm. 1, 2022.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. “La noción de ‘derecho’ o las paradojas de la modernidad postcolonial: indígenas y mujeres en Bolivia”. Revista Aportes Andinos, p. 1-9, 2004.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feninsta hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar o Tempo, 2020.
PAREDES, Julieta. Hilando fino desde el feminismo comunitário. La Paz, Bolivia: Deutscher Entwicklungsdienst / Comunidad Mujeres Creando Comunidad, 2010.
SEGATO, Rita L. Género, política y hibridismo en la transnacionalización de la cultura Yorubá. Estudos Afro-Asiáticos, v. 25, n. 2, p. 333–363, 2003.
WALSH, Catherine E. Shifting the geopolitics of critical knowledge: decolonial thought and cultural studies ‘others’ in the Andes. Cultural Studies, v. 21, n. 2-3, p. 224-238, 2007.
Como citar este verbete:
GRECO, Priscila Miraz de Freitas. "Gênero". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h ISSN 2764-9393
ISSN 2764-9393
--------------------
H
Entre as marcas da tradição crítica do pensamento latino-americano encontra-se a criação permanente de conceitos que permitam descrever/explicar/interpretar a realidade do subcontinente. Essas ferramentas heurísticas têm servido de esteio e âncora para uma revisão hermenêutica dos textos que compõem o acervo do arquivo das memórias latino-americanas desde as crônicas do século XVI até as reflexões filosóficas dos latino-americanistas atuais.
A obra do crítico literário peruano Cornejo Polar, Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas, é, sem dúvidas, uma das investigações mais bem sucedidas nesta linha de raciocínio. Ao reler a literaturas andinas desde uma perspectiva que evidencia a coexistência conflitiva de elementos heterogêneos que remetem às memórias e universos socioculturais distintos, Cornejo Polar descortina um horizonte de interpretação sobre as contradições instauradas pelo colonialismo. A heterogeneidade, enquanto categoria analítica do pensamento, funda uma reflexão sobre a diversidade cultural latino-americana que se afasta das soluções propostas pelas teorias da miscigenação e das filosofias da história que se utilizam das sínteses dialéticas enquanto chaves de compreensão da sucessão de ocorrências históricas. A recorrência da violência enquanto método de ordenamento das sociedades latino-americanas opera como um dispositivo que impede o estabelecimento de uma relação dialógica entre as memórias culturais e produz e reproduz uma hierarquização entre esses universos.
A oralidade e a escrita, a metafísica cristã e as metafísicas indígenas, a propriedade dos meios e os modos de produção, a divisão do trabalho e da vida social, estão desde o século XVI atravessados por uma rede de violências amparada em uma visão da superioridade epistemológica das culturas europeias sobre as culturas não-européias. Nesta perspectiva de abordagem, a heterogeneidade expõe a intencionalidade do projeto colonial que oculta, sob a égide da trama da história universal, o aniquilamento de formas da vida social associadas a cosmovisões e memórias estranhas à racionalidade europeia. A recuperação destas vozes, destas memórias e destas formas do ser social, proposta por Cornejo Polar, distancia-se assim dos projetos folcloristas e de suas versões contemporâneas pós-modernas tão caras à indústria do turismo e seus catálogos de lugares e práticas exóticas. Ao contrário, reler a história da multiplicidade cultural latino-americana pelo prisma da heterogeneidade é repensar sobre a potência política de poéticas da história que não se dissolveram na narrativa proposta pela razão histórica triunfalista. Refletir sobre esta história é também, em mais de um sentido, assinalar a presença de uma série de práticas culturais suficientemente vivas para integrar projetos políticos e formas estéticas capazes de estabelecer parâmetros críticos às contradições sociais latino-americanas e aportar rumos na construção de uma utopia e de uma outra modernidade.
--------------------
Data de Publicação: 08/12/2022
Autoria: Nuno Gonçalves Pereira
Bibliografia
CORNEJO-POLAR, Antonio. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Centro de Estudios Literarios “Antonio Cornejo Polar”, 2003.
Como citar este verbete:
PEREIRA, Nuno Gonçalves. "Heterogeneidade sociocultural". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h
ISSN 2764-9393
--------------------
Feito no Brasil, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), todos os direitos reservados 2022. Esta página pode ser reproduzida com fins não lucrativos, desde que não esteja editada e a fonte completa e seu endereço eletrônico sejam citados. Caso contrário, requer autorização prévia por escrito da coordenação do projeto.