EXPERIÊNCIAS DE DESCOLONIZAÇÃO DOS CORPOS E SABERES
ISSN: 2764-9407
ISSN: 2764-9407
Deixa eu falar!
Os usos da linguagem pelo pensamento ocidental
Amanda Lopes Ferreira
DIALÉTICA DA MEMÓRIA E DA CONSCIÊNCIA
Quando criança, perdi as contas de quantas vezes ouvi a frase “Fala direito!”. Naquele tempo, ainda não entendia bem o que era esse "direito" que todo mundo dizia, nem o que tinha de errado nas palavras daqueles que falavam de um jeito “não-direito”. Pra mim, o “você” em que faltava o “vo-”, ou o “nós” conjugado sempre na terceira pessoa do singular, ou a constante falta de plural poderiam até não ser o "direito", mas eram certamente o normal. Esse jeito de falar servia seu propósito, comunicava muito bem a mensagem que precisava ser passada e fazia parte da realidade que eu conheci desde sempre, realidade de gente comum, gente pobre, preta, favelada, que não se parecia em nada com as Helenas do Leblon no universo novelesco do Manoel Carlos.
Com o tempo, as nuances não ditas da frase “fala direito” foram se tornando cada vez mais aparentes pra mim, porque quem não falava direito compunha o núcleo cômico das mesmas novelas que eram protagonizadas por Helenas, e o “nós vai” deixou de significar simplesmente que um grupo de pessoas iria a algum lugar ou faria alguma coisa pra se tornar motivo de chacota no horário nobre. Essas nuances não ditas eram baseadas nas mesmas premissas que um cara chamado Gustavo – ou Djonga, para aqueles que não falam direito – muito bem sintetizou em versos:
“Ouvindo desde novo, 'cê já é preto
Não, não sai desse jeito, se não eles te olha torto”
Esses versos, embora não atendam à norma culta da língua, passam muito bem sua mensagem. Como falamos, como nos portamos, como nos vestimos, tudo isso faz parte da nossa linguagem. Na escola aprendemos diferentes formas de linguagem, como a verbal, a não verbal, padrão, coloquial, etc. Mas, para além de uma matéria dada na escola, precisamos considerar os desdobramentos da linguagem no nosso cotidiano, tendo em vista que enquanto seres sociais, existir é, sobretudo, se comunicar e se afirmar enquanto sujeito através da linguagem. Ao trabalhar esse conceito no livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon define o ato de falar como o momento em que o ser existe absolutamente para o outro. Então, se falar é existir para o outro, faz sentido que certas formas de falar não sejam consideradas válidas por aqueles que não toleram a existência da outridade.
Com isso, a linguagem que é, sobretudo, um modo de comunicar, está sempre em disputa. É inegável que há na sociedade grupos que são colocados à margem e suas formas de se comunicar acabam sendo também silenciadas e marginalizadas pelo pensamento hegemônico. Essa relação de forças exemplifica bem o que Lélia Gonzalez definiu como a dialética da consciência e da memória, onde a consciência e a memória estão sempre em conflito.
Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela pra tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala. (GONZALEZ, 2020, p. 70)
Fanon, no texto citado anteriormente, trabalha a questão da relação do negro da Martinica com a língua francesa, analisando como esse mesmo martinicano, ao ir para a França, se esforça para assumir não só a língua do branco, mas também sua linguagem, já que "quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será." (FANON, 2008, p. 34). Assim, na dialética entre memória e consciência, os apagamentos não se dão apenas através de uma coerção direta ou uma violência explícita da consciência sobre a memória, mas através dos desdobramentos das opressões causadas pela colonização, do complexo de inferioridade dos colonizados. Os sujeitos marginalizados muitas vezes assumem a linguagem imposta pela consciência com o objetivo de verem legitimada a informação que desejam comunicar.
Essa relação demonstra como o pensamento ocidental se sustenta a partir dessa relação de superioridade e inferioridade, delimitando cada vez mais a hierarquização dos saberes, corpos, práticas e é claro, das linguagens. Podemos tomar como um dos exemplos mais emblemáticos desse fenômeno o advento da escrita e como, a partir desse evento, sociedades que realizavam a transmissão de sua memória através da oralidade eram consideradas mais atrasadas ou menos complexas, devido a uma suposta baixa confiabilidade da oralidade frente ao documento escrito.
O QUE ENCONTRAMOS NAS FRESTAS DA CONSCIÊNCIA?
Como nos disse Lélia Gonzalez, a memória fala através das mancadas do discurso da consciência. É justamente por isso que, apesar de todas as forças utilizadas pela consciência, a memória resiste ao apagamento que tenta se impor. É também por isso que, apesar da novela tentar representar o brasileiro falando como se todos fossem residentes do Leblon, a gente comum continua esquecendo os plurais e continua falando o pretuguês. Não só porque não sabem ou não querem “falar direito”, mas porque sabem e porque podem se expressar muito bem através das gírias e gingas de suas próprias linguagens, tá ligado?
São pelas frestas das consciência que conseguimos espiar tudo aquilo que ela tenta esconder: indígenas, negros, mulheres e tantos outros grupos que a consciência tenta a todo custo varrer para debaixo do tapete. Por essas mesmas frestas escapam as múltiplas narrativas desses grupos que ecoam com suas próprias vozes através do samba, do rap, da arte, da moda, etc. A resistência das linguagens subalternizadas como no caso do rap demonstra como, apesar da imposição da consciência, existem palavras que só a memória consegue dizer.
Esses dias me deparei com a notícia da morte de Luiz Antônio Fleury Filho, ex-governador de São Paulo e um dos maiores responsáveis pelo massacre do Carandiru, uma tragédia que ficou marcada na história do Brasil com 111 detentos mortos, em 1992. Apesar das inúmeras reportagens, filmes e livros sobre a tragédia, o nome de Fleury acabou ficando conhecido para muitos (eu mesma, por exemplo) a partir dos versos narrados pela voz do Mano Brown:
“Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de Outubro, diário de um detento”
Esses versos, os últimos da música “Diário de um detento”, do Racionais MC 's, sintetizam bem o que tenho tentado explicar. O detento é deslegitimado não só porque ele assume uma linguagem que é distinta da imposta pela consciência, mas porque, antes mesmo disso, ele faz parte dos grupos que produzem essa mesma linguagem. Não à toa negros e pobres são a maioria da população carcerária no Brasil, seres produzidos por “sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo”, como nos diz Mano Brown.
O QUE ESSAS FRESTAS NOS DIZEM?
Com isso cabe pensar: como o rap fala? Com quem fala? O que fala para cada um que o escuta? Não vou me ater à resposta da primeira pergunta, pois creio que a respondi ao longo deste texto. Já as outras duas perguntas se encontram implacavelmente interligadas. Mesmo que fale para todos, é inevitável que os atravessamentos que essas mensagens vão produzir sejam diferentes para cada um, porque quando falamos de rap, falamos de memória. E a memória, diferente da consciência, está pautada numa história que não foi escrita, mas é vívida e marcada naqueles que a vivenciam constantemente. Aos que não compartilham essa memória, cabe tentar imaginar, ainda que o Leall já tenha dado o papo:
“Então imagine sua alma dentro do meu corpo
Não aguentaria nem metade dos copos que eu bebo
Imagina as maldades que eu vi”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Por um Feminismo Afro Latino Americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
--------------------
Data de Publicação: 27/04/2023
Autoria: Amanda Lopes Ferreira
Como citar este ensaio:
FERREIRA, Amanda Lopes. "Deixa eu falar! Os usos da linguagem pelo pensamento ocidental". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Do Guajupiá ao Waranã
epistemologias indígenas na Marquês de Sapucaí
Ana Carolina de Souza de Oliveira
Diogo Alan Ferreira de Barros
Gabriela de Melo Vieira
Juliana Thyfani Saraiva Aney
Marcos Vinicius Soares dos Santos
Nathielle Lima Lyra
O presente ensaio pretende refletir sobre como as Escolas de Samba podem buscar caminhos visando descentralizar o pensamento ocidental, através das narrativas indígenas representadas nos enredos Guajupiá, Terra Sem Males (2020), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, e Waranã, a Reexistência Vermelha (2022), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca, que têm como temática duas histórias essenciais para os Tupinambá e os Sateré-mawé, respectivamente.
Não estando em nenhum momento da nossa história isentas ou imunes aos acontecimentos políticos e sociais, as escolas de samba serviram muitas vezes, através de seus desfiles e enredos, para legitimar ou até mesmo para criticar narrativas históricas e projetos políticos. Como o exemplo da Imperatriz Leopoldinense que, em 1988, ano do centenário da lei áurea, questionou D. Isabel como a libertadora do povo escravizado – como diz o samba “de 71 com a realeza, me mandou uma princesa que fingiu me libertar”–, e no ano seguinte, seu outro enredo a glorificava como “a heroína que inventou a lei divina”. Em contraponto, falemos da Mangueira que, décadas depois, em 2019, seguindo os debates a respeito da escrita da história, contesta esta narrativa como falsa - “Não veio dos céus nem das mãos de Isabel, a liberdade é um dragão no mar de Aracati”-, fazendo alusão ao líder do movimento de resistência dos jangadeiros no Ceará, Chico da Matilde, um importante militante abolicionista da época.
Agora voltemos nossos olhos para algumas das problemáticas que estão presentes neste espetáculo. A principal é a quantidade de estereótipos, principalmente visuais, no uso de adereços, pinturas e símbolos indígenas. Aquilo que faz parte da identidade cultural de alguns povos acaba sendo usado como mera fantasia carnavalesca. Esta discussão é uma linha tênue, já que a fantasia é um item primordial para as alas de uma escola desfilando. Os carnavalescos precisam destes recursos visuais para contar a história, no entanto não deixa de ser de certa forma desrespeitosa com as culturas indígenas a apropriação de tais itens. Ainda mais se levarmos em conta que a escola tinha a oportunidade de convidar indígenas para compor uma ala exclusiva, na qual os próprios expressariam suas identidades culturais.
Podemos falar também, sem nenhuma gota de moralismo, sobre a hiperssexualização dos corpos de mulheres, que já é histórica na cultura do carnaval. O problema não é a seminudez nem a forma como as passistas, rainhas e princesas de bateria se comportam ou dançam, mas todo o imaginário social que trata o corpo das mulheres como um objeto sexual. Isso se agrava quando falamos das mulheres negras e indígenas, que foram historicamente violentadas e objetificadas. No clipe oficial do samba-enredo da Portela é possível observar em algumas camisas da escola a imagem de uma mulher semi nua “fantasiada” de indígena. Não é retratada como forte e guerreira como os homens indígenas são, mas como sedutora e convidativa. Uma imagem fetichista e racista.
Tais problemas explicitam o mundo de contradições em que nós vivemos, o mundo de histórias cruzadas, sobrepostas e nada lineares. O mundo intercultural. No entanto, continua sendo de extrema importância que essas narrativas comecem a ser trazidas para o debate público e conforme formos avançando nas conquistas de direitos, existe a certeza de que as escolas, comunidade e carnavalescos seguirão e farão parte deste avanço.
Nesse sentido, acreditamos que os enredos podem proporcionar novas alternativas frente a interpretações eurocêntricas de cosmogonias indígenas. Analisaremos, a seguir, as narrativas indígenas representadas nos enredos Guajupiá, Terra Sem Males (2020), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, e Waranã, a Reexistência Vermelha (2022), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca.
O samba enredo Guajupiá, Terra Sem Males (2020) apresenta uma narrativa sobre o mito da cidade de Guajupiá enquanto um lugar onde não há problemas ou males. Além disso, o samba retrata a natureza exuberante de Guajupiá, com suas montanhas, rios e florestas, e homenageia as tradições e costumes locais. Embora possa ser visto como uma forma de escapismo e busca por um mundo perfeito, a letra do samba pode ser interpretada como uma crítica à realidade atual, dialogando com a essência dos indígenas que foi duramente abalada após a chegada dos europeus e sua colonização.
O samba enredo nos leva a compreender que o povo Tupinambá já vivia no Guajupiá antes do ano de 1500, apontando a existência de inúmeras aldeias Tupinambá no Rio de Janeiro (desde Cabo Frio até Angra dos Reis) “[...] com 500 a 3000 indígenas cada [...]” (FREIRE & MALHEIROS, 1997). Contudo, afirma que esse número caiu drasticamente no decorrer do período da colonização, fato esse que ocasionou o apagamento das vidas e das vivências históricas dos indígenas no território que era originalmente seu.
Logo na primeira estrofe "Hoje meu Guajupiá é Madureira’’, os compositores explicitam a afirmação de Madureira como sendo seu Guajupiá. É uma contra narrativa. Ao mencionar a possibilidade de encontrar a beleza, a paz e a alegria em um dos berços do samba que ocupa ainda hoje o posto de um local marcado pela precarização e presença violenta do Estado, o trecho expressa vocalmente o desejo do povo de viver tranquilamente e com dignidade. Ainda nesta estrofe, os compositores também afirmam que “o índio é dono desse chão”, reconhecendo Madureira, o Rio de Janeiro e todo o chão do inventado país que pisamos como sendo território indígena, já que além da letra, a logo oficial deste enredo é um indígena de costas avistando de cima a famosa paisagem da Baía de Guanabara, em uma perspectiva de um horizonte sem fim.
O samba enredo também aborda a temática da resistência indígena. "Indio pede paz, mas é de guerra”: esse trecho retoma a crença dos Tupinambá de que somente aqueles que enfrentam a morte, sem medo, conseguiriam encontrar o Guajupiá. Esse paraíso era representado como um lugar perfeito, recheado de flores e coberto por um maravilhoso rio, em cujas margens havia diversas maravilhas.
Também fala-se sobre as entidades indígenas como Monã, o Deus dos Tupinambá, e sobre figuras importantes para essa população como, por exemplo, Irin-Magé, o único considerado digno por Monã para sobreviver a um castigo divino. Após ser poupado, Irin-Magé cai aos prantos e fala com Monã que seria difícil viver sozinho na imensidão do vazio. Tocado, Monã modificou a situação, fez cair um dilúvio sobre a terra. Dessa água surgiram, os rios, os oceanos, os animais e toda a natureza.
As vivências indígenas correram e ainda correm perigo constante. O trecho “nossa aldeia é sem partido ou facção, não tem bispo, nem se curva a capitão” faz clara alusão à resistência indígena ainda mais do que necessária. Outrora, a figura da Igreja Católica fez da presença de lideranças religiosas, como padres e bispos, uma grande ameaça à cultura e vida dos povos indígenas por via da catequização. Na atualidade, "o capitão" faz clara referência a uma figura presidencial que deveria proteger o seu povo, mas conseguiu ir na contramão, influenciando negativamente as vidas dos indígenas, ao mesmo tempo que a referência ao bispo também pode ser uma alusão a um político que ao longo do seu mandato na prefeitura não prestigiou o carnaval e reduziu as verbas de subvenção, quase inviabilizando a festa popular.
Tendo isto em vista, podemos avaliar a importância do samba enredo da Portela, uma das maiores e mais conhecidas escolas de samba do mundo, trazer em seus versos uma das muitas histórias indígenas. Um enredo não é apenas uma música, mas uma ponte direta para acessar o imaginário popular e apresentar outros caminhos que podem ser percorridos para além da história tradicional e única, como aponta Chimamanda Adichie em O Perigo de uma História Única (2019).
Já o samba enredo da Unidos da Tijuca fala sobre o Waranã ou Waraná, que é a planta que origina o guaraná e é oriunda da língua dos Sateré-Mawé, indígenas que vivem há muitos séculos na região da Amazônia, e têm sua história atrelada ao Waraná, sendo considerados os guardiões da fruta. Existem muitas versões sobre o Waraná e os Sateré-Mawé. O carnavalesco Jack Vasconcelos em entrevista para o UOL contou que “nosso enredo faz a união das várias versões sobre essa lenda para falar da origem do povo que surgiu com essa responsabilidade de ser o guardião dessa frutinha de pele vermelha [...].” (2020).
Os Sateré-Mawé há séculos produzem o guaraná e o vendem, mas seus usos não se limitam somente a essa atividade comercial. Existe um grande passo a passo no trato com o Waraná que envolve todo o grupo: crianças, adultos e idosos participam das mais variadas etapas do processo. A lógica ocidental, capitalista e predatória não faz sentido nesse universo, as produções do guaraná e do pão do guaraná envolvem “[...] o passado, o presente e o futuro do povo [...]” (FIGUEROA, 2016, p.1).
Uma das versões da história nos conta que, no início, existiam três irmãos - Ocumáató, Icuamã e Onhiámuáçabê - que moravam em Nusokén, uma terra encantada. Onhiámuáçabê plantou nesse local uma castanheira que será muito importante para a narrativa. A irmã era muito sábia e conhecia as plantas, sendo responsável por fazer remédios para os irmãos, já que somente ela tinha o conhecimento do que era indicado, e também só ela poderia misturar os ingredientes. Por esses motivos, Ocumáató e Icuamã não queriam que ela se afastasse deles e para tanto proibiram que ela se casasse.
Os animais da terra desejavam se casar com Onhiámuáçabê, até que uma cobra decidiu tentar conquistá-la utilizando um perfume sedutor. De tanto passar pelo local e sentir o cheiro, um dia ela elogiou o perfume utilizado pela cobra. Em decorrência disso, o animal achou que a tinha encantado e passou ao lado dela, tocando-a levemente. Onhiámuáçabê engravidou com esse leve toque. Seus irmãos descobriram a gravidez, pois um remédio preparado por ela acabou coalhado. Ao questionarem com quem ela tinha se relacionado, a moça não soube dizer. Eles a expulsaram de casa e ela foi viver em outra casa com três ajudantes: mucura, pato e saracura.
Quando o bebê nasceu, os irmãos dela foram visitá-los e a questionaram sobre a humanidade da criança, fato confirmado por ela ter braços, ombro e corpo de gente. Assim, permitiram que ela vivesse e fingiram estar alegres, porém em segredo consideravam que o bebê lhes traria problemas em suas roças. Logo que começou a falar, a criança desejou comer frutas iguais aos tios, mas sua mãe lhe explicou que os irmãos se apossaram da castanheira. Somente após muita insistência, Onhiámuáçabê levou o menino até a árvore para que comesse os frutos. Por ele ter gostado, retornou ao lugar sozinho para se alimentar de novo.
Os guardas do local foram ordenados a matar quem se aproximasse e assim o fizeram com o menino. Onhiámuáçabê foi avisada por uma caba e uma abelha sobre o acontecimento, mas a princípio não acreditou. Os animais retornaram a falar com ela trazendo pedaços de pele de criança como prova e ela seguiu não acreditando. Somente quando os animais trouxeram um pouco de sangue do menino em uma apekutyhop, folha com manchas vermelhas, ela acreditou e se dirigiu ao local do ocorrido. Ao encontrar o menino, ela brigou com os irmãos pelo acontecimento e decidiu cobrir a criança com uma folha rogando para que algo bom acontecesse.
Onhiámuáçabê retirou os olhos do menino e primeiro plantou o olho esquerdo, mas não deu certo. A planta que surgiu desse olho era o falso guaraná. Após o fracasso da primeira tentativa, plantou o olho direito e daí surgiu a planta verdadeira do guaraná. Onhiámuáçabê então conversou com o seu filho na forma de planta:
“E disse: ‘Meu filho, os teus tios te mataram, mas não penses que irás ficar sozinho, isolado. Tu irás ficar com as palavras dos teus parentes e com as palavras das pessoas que moram no céu. A todos os teus parentes tu irás ensinar. Tu irás ser morekuat [autoridade], tu irás ensinar muita gente a tratar de trabalho. Muita gente vai se juntar para tomar o guaraná. Serão as mulheres mais idosas as que irão ralar o guaraná. Em redor de ti irá se tratar de muitas coisas boas, palestras de trabalho e assim muita gente irá gostar de ti. Porque tu foste gerado antes que a terra estivesse contaminada. Então, tu vais ficar sendo autoridade: morekuat. Tu vais fortalecer muita gente: os Morekuat, os tuxauas, portanto tu que serás o Morekuat. Muitas coisas se conseguirão através de ti. Vai parecer que tu estivesses vivo e de tua boca sairão conselhos para muita gente, para os filhos, e com lágrimas nos olhos, os pais vão te usar para aconselhar os seus filhos, teus netos. Cedo da manhã as pessoas vão te usar, vão beber o guaraná, e aquele que souber de alguma coisa melhor, vai explicar e conversar coisas boas.” (FIGUEIROA, 2016. p. 59-60)
Após essa conversa, ela pediu para que um passarinho hirut cantasse para a criança com o objetivo de criar algo bom no túmulo. Muitas tentativas aconteceram e Onhiámuáçabê sempre encontrava seres que não a satisfaziam, até que um grilo disse a ela que olharia pelo seu filho e que do túmulo sairia algo bonito. E assim aconteceu. O grilo falou que o nome do renascido seria Moikyt e ele foi o primeiro Sataré-Mawê.
O carnavalesco da Unidos da Tijuca, Jack Vasconcelos, na construção de seu enredo Waranã, a Reexistência Vermelha, seguiu parte dessa narrativa e também utilizou outros elementos dignos de destaque. Existia e sempre vai existir uma tensão entre Tupana e Yurupari e o equilíbrio advindo dessas relações é o que condiciona o mundo. Os dois irmãos e a irmã viviam em Nusoken. Nessa versão do carnavalesco, Onhiámuáçabê é Anhyã e os irmãos foram nomeados Yucumã e Ukumã’wató. Assim como na versão citada acima, ela era a conhecedora das plantas e dos remédios, sendo invejada pelos irmãos enquanto era amada por todos os outros seres. A cobra segue nessa versão tendo seduzido Anhyã com um perfume e a engravidado com um leve toque; os irmãos também ficaram inconformados e a expulsaram de Nusokén por esse motivo. Depois de um tempo, nasceu Kahu’ê e ele foi assassinado por seus tios por comer o fruto da castanheira, que era sagrado. Yucumã e Ukumã’wató rogaram a Yurupari que matasse o menino e assim ele se transformou em uma serpente que teve êxito em assassiná-lo. Tupana falou para Anhyã que aquela tragédia viraria algo bom, então Anhyã se transformou em um pássaro, levou o corpo de seu filho para próximo de um rio e plantou seus olhos. Do olho esquerdo surgiu a Waraná Hop, uma planta estragada, e do direito o Waraná-Sése, verdadeiro guaraná. O pássaro cantou ao redor do túmulo de seu filho, até que um belo dia renasceu Kahu’ê nomeado de Mary-Aypók, o primeiro Sataré-Mawê.
Um dos aspectos interessantes na análise do samba-enredo da Unidos da Tijuca e que aponta para o fato de que as escolas de samba são vetores importantes para a descentralização do pensamento ocidental é a confluência de saberes de povos que foram marginalizados ao longo da história do Brasil, a saber: indígenas e africanos. No primeiro verso já podemos perceber essa coexistência de saberes quando vemos a frase “êre, essa mata é sua”. É sabido que dentro das religiões de matriz africana, a personificação da criança nos terreiros de umbanda e candomblé se dá pela figura do êre, afirmando a existência de outras culturas, em um horizonte de multiplicidades. Nesse sentido, é possível perceber como as escolas de samba promovem esse esforço para trazer ao público diferentes personagens que não estão no eixo do conhecimento ocidental.
Assim, outro ponto relevante é justamente o empenho que a escola em questão fez para popularizar um saber ancestral, fundamental na cosmogonia do povo Sataré-Mawé. É possível perceber a partir do Waraná ou Waranã que para esse povo não há a percepção de hierarquização das espécies, mas sim uma relação de consanguinidade entre os seres. Desse modo, as pedras e as plantas ocupam um lugar sagrado dentro dessa cultura, como podemos ver no trecho do samba “um lugar onde as pedras podiam falar”, que mostra que há uma visão de mundo na qual tudo é interligado.
Nesse sentido, outro elemento do samba-enredo em consonância com os saberes do povo Sataré-Mawé é a atmosfera de sacralidade criada pela ritualística do Waraná, que também engloba uma dimensão política entre os sujeitos que ali estão inseridos. Na realidade, o que se percebe é que não há uma divisão muito bem definida sobre o sentido político e religioso na cerimônia do Waraná e sim uma espécie de rizoma, no qual esses saberes vão se conectando e produzindo outras possibilidades. Isso pode ser visto no trecho do samba “de pele vermelha, os frutos de uma nação” e no texto Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé, que menciona que o guaraná é a peça que simboliza a passagem de uma sociedade na qual a vingança, a separatividade e até mesmo a guerra constituíam tradição para outro regime que valorizava o encontro, o compartilhamento e a governança argumentativa. O guaraná é então, o marcador de etnicidade dos Sateré-Mawé (FIGUEROA, 2016, p. 57.).
Ao praticarem o ritual do Waraná, o povo Sateré-Mawé está unificando a palavra através do guaraná. Ou melhor, o guaraná torna-se a própria palavra unificada e unificadora, conectando-se com a passagem do samba-enredo “deixa a força Mawé ressurgir”, o que representaria o ressurgimento de uma força ancestral. Dessa forma, além de um componente espiritual, o guaraná também exerce um papel político-social, já que há uma espécie, em termos ocidentais, de contrato social com o rito.
É a partir do guaraná que a sociedade dos Sateré-Mawé articula a esfera coletiva com a palavra, como princípio central dessa etnia. Vemos isso no próprio ritual, que é visto como uma ação política, já que o Tuxaua – a liderança - é encarregado de consumir o guaraná por último, pois segundo a cosmogonia Sateré, ele detém o poder de reconhecer o lugar, o que transmite a ideia de pertencimento e a competência de cada indivíduo dentro do coletivo. Dessa maneira, o consumo compartilhado do guaraná é também categorizado como uma ação política, o que também demonstra outro prisma fundamental para essa etnia, que é a não segmentarização de elementos da vida, já que tal rito, além de configurar uma ação política, também representa um aspecto de sacralidade (FIGUEROA, 2016, p.63).
A intenção apontada é a de que o guaraná, na medida em que vai sendo ralado (de forma circular sobre a pedra), passando depois de mão em mão quando tomado, vai também recolhendo as palavras e intenções de todos os que vão se manifestando na reunião, até que o último, o Tuxaua, as reúne (ingerindo "o rabo"), tornando-se portador, na sua própria fala, das palavras e aspirações de todos. O guaraná assim compartilhado “com o povo” (ure sapo pe’ehat), em uma espécie de consagração secular, opera como poderosa força de coesão coletiva, sendo coibidos, explicitamente, ruídos e expressões que possam induzir à separatividade e desarmonia. (FIGUEROA, 2016, pp. 65)
O Waranã se configura como uma verdadeira e autêntica fortaleza, tanto por si própria quanto para a identidade étnica, exercendo um papel central nos movimentos de resistência étnica e cultural (FIGUEROA, 2016, p. 77). Podemos então observar que mais que os efeitos e a dimensão gustativa da fruta, o guaraná está inscrito num contexto social e que engloba diversos elementos constituintes e constituidores do mundo e da cosmovisão dos Sateré-Mawé. Mas quando pensamos em guaraná, principalmente nas grandes cidades brasileiras, não evocamos toda sua história e sua importância. O guaraná como bebida que pode ser encontrada em cada ponta do país tem a sua história sobreposta por grandes indústrias. Com o slogan da “bebida originalmente brasileira”, as tecnologias e saberes indígenas são postos de lado. Isso acaba nos desencontrado com nossa própria História enquanto país. Figueroa nos exemplifica isso ao destacar em seu texto que:
“[...] o guaraná só passa a ser considerado um produto agrícola quando são agentes não indígenas que promovem ou efetuam seu cultivo, principalmente como recurso a ser explorado após a crise econômica regional deflagrada com o declínio da borracha.” (FIGUEROA, 2016, p. 74)
Para além da bebida, o guaraná faz parte da tradição de um povo e os Sataré-Mawé o têm como símbolo de resistência. Tal aspecto não é ressaltado pela indústria capitalista que divulga o guaraná como um sabor nacional. A História nacional tem muitas lacunas e quando as analisamos, podemos constatar que:
“[...] por esse ângulo, a reflexão refuta o argumento de que a colonização brasileira foi superada e expõe que, diante da realidade dos povos indígenas, negros e pobres, o processo de civilização ocidental foi, além de violento e seletivo, um instrumento de abafamento dos conhecimentos e saberes desses povos” (PIMENTA & SILVA, 2021, p. 31, grifo nosso).
É importante destacar que, no senso comum, estes sujeitos ainda são encarados com papéis universalizantes: o indígena menorizado que vive isolado da sociedade, e os negros preguiçosos feitos para trabalhos braçais. Essas visões racistas são entraves no cotidiano dessa população. Desta forma, é de extrema relevância compreendermos estes sujeitos como parte ativa na história que estrategicamente buscam por sobrevivência em um cenário que os desqualifica. Assim, temos no carnaval a oportunidade de quebrarmos tais padrões, na medida em que este configura um movimento cultural que escancara a desigualdade do país. Ao se propor a contar a história dos subalternos, o carnaval consegue expor traços da nossa cultura que foram propositalmente apagados.
Pensar o Brasil pode ser complexo, um caminho pedregoso, tortuoso, marginal e/ou excludente. O que é a nossa Cultura? O que são as nossas culturas? Como entender as realidades míticas dos nossos indígenas? Folclorizar? Aproximar da Ciência Ocidental? Ignorar? Pensemos nesse Brasil que se disputa, se quebra, se transforma, se reinventa, se faz e se auto refaz. Não acreditamos que possa existir uma utopia de Brasil sem as palavras e discursos de suas gentes: indígenas, sambistas, pobres, favelados. Um Brasil de Erês e Juruparis.
Nesse sentido, o carnaval, além de um grande show com as escolas de samba, funciona como um local para contar as histórias não contadas, histórias essas que foram projetadas sob o aspecto do eurocentrismo, que não privilegiou a valorização de outros saberes e até os ressignificou de maneira que fossem apagados. Os desfiles das escolas de samba são um palco onde podemos encontrar diversas narrativas dependendo do enredo escolhido, mas é um ótimo contexto, onde saberes e práticas da nossa cultura são divulgados sob a forma de desfile.
Mesmo que haja cada vez mais uma elitização do carnaval e uma máxima tentativa de transformá-lo numa mercadoria, o maior show da terra segue tendo um expressivo caráter popular, já que a maior parte das escolas de samba nasceu resistindo à criminalização do ritmo de resistência do povo trabalhador, preto e periférico. Assim, como a Portela em Madureira e a Unidos da Tijuca no Morro do Borel, as escolas nasceram das mãos desta população e nos lugares que costumam ser ignorados pelo turismo, pela grande mídia e até mesmo pela historiografia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FIGUEIROA, Alba Lucy Giraldo. Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas [online]. 2016, v. 11, n. 1, pp. 55-85. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981.81222016000100005. Acesso 10 fev. 2023.
FREIRE, José Ribamar Bessa; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.
G.R.E.S. IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE. Conta Outra Que Essa Foi Boa. Rio de Janeiro, 1988. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JzG0z_km0YE. Acesso em 7 fev. 2023.
G.R.E.S. IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE. Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós. Rio de Janeiro, 1989. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ekln07krQtI. Acesso em 7 fev. 2023.
G.R.E.S. PORTELA. Guajupiá, Terra Sem Males. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xsPswtxm3cE. Acesso em 7 fev. 2023.
NEUMANN, Eduardo S. "Os guaranis e a razão gráfica: cultura escrita, memória e identidade indígena nas reduções – séculos XVII & XVIII". In. KERN, Arno Alvarez; SANTOS, Maria Cristina dos; GOLIN, Tau (Dir.). Povos Indígenas. Passo Fundo, RS: Méritos, 2009.
PIMENTA, Carlos Alberto Máximo; SILVA, Camilo. REFLEXÕES SOBRE O BRASIL COLÔNIA: as Escolas de Samba e algumas histórias que a História não contou. Revista Ciências Humanas, UNITAU, Taubaté/SP - Brasil, v14, e30, 2021.
SEVERIANO, Rafael. OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL: Aspectos da transmissão musical. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Programa de Pós-Graduação em Artes, Belém, 2016.
SANTOS, Lucas. Samba didático: Com o Waranã da Tijuca e com as bênçãos dos Erês, o bem sempre vai vencer. Carnavalesco, 2021. Disponível em: https://www.carnavalesco.com.br/samba-didatico-com-o-warana-da-tijuca-e-com-as-bencaos-dos-eres-o-bem-sempre-vai-vencer/. Acesso em: 15 de jan. de 2023.
--------------------
Data de Publicação: 25/05/2023
Autoria: Ana Carolina de Souza de Oliveira; Diogo Alan Ferreira de Barros; Gabriela de Melo Vieira; Juliana Thyfani Saraiva Aney; Marcos Vinicius Soares dos Santos; Nathielle Lima Lyra.
Como citar este ensaio:
OLIVEIRA, Ana Carolina de Souza de; BARROS, Diogo Alan Ferreira; VIEIRA, Gabriela de Melo; ANEY, Juliana Thyfani Saraiva; SANTOS; Marcos Vinicius Soares dos; LYRA, Nathielle Lima. "Do Guajupiá ao Waranã: epistemologias indígenas na Marquês de Sapucaí". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Do BBB, da pandemia e da profundidade de nossas dores e problemas coletivos
Jamille Macedo Oliveira Santos
Há quatro meses teve início o programa de entretenimento, reality show, Big Brother Brasil, uma cópia de uma franquia criada por um holandês, comprada e popularizada pela rede de TV nova-iorquina CBS. A versão brasileira tenta exportar literalmente para cá os padrões estadunidenses ou a máxima do sonho americano – seja linguisticamente (Big Brother), seja pelo formato de culminar com a premiação de um participante que fatura R$ 1,5 milhão de reais. Quem não quer ser um milionário? Quem não sonha em ter a oportunidade de ascender socialmente, entrar para o mundo dos ricos, ganhar fama e prestígio “num piscar de olhos”? E mesmo que não tenha “coragem” ou “oportunidade” de participar de um programa como o BBB, quem não gasta grande parte das horas do seu dia e dos seus anos de vida, na busca, muitas vezes, frenética e desenfreada, por ter uma condição “melhor”, enriquecer e ascender? E às vezes cai na armadilha da alienação de querer mais e sempre mais e nunca achar o suficiente, e nessa busca se perde da vida e do viver, e esquece o vasto, “a amplidão”, como diria a autora de Eu sei, mas não devia (COLASANTI, 1972).
As palavras de Vivian Camacho, médica e parteira tradicional quéchua, soam e ressoam o tempo todo em minha mente, não como o badalar do sino ou tic tac do relógio, apesar da sua urgência, mas como as melodias da floresta: “o sonho americano é o pesadelo de todos nós” (CAMACHO, 2021). Não consigo parar de pensar nestas palavras!
Nunca fui de assistir programas de entretenimento em formato de reality, talvez a realidade seja dura demais para vê-la reproduzida em menor escala na tela da TV, prefiro séries e filmes. Mas, em 2021, ano de maior gravidade da pandemia, fatalmente acabei dando maior atenção ao programa.
E o Brasil, neste que me incluo, em que uma parte da população conseguiu estar em casa na pandemia (como sabemos, infelizmente nem todos puderam estar em isolamento), sentou-se em seu sofá e deu maior atenção ao programa global (segundo dados do Jornal Extra, essa edição bateu o recorde de audiência, sendo a temporada mais vista dos últimos 11 anos). Sim, o Brasil, esse Brasil, que “está lascado” na (in)“feliz” acepção de Gil do Vigor (afinal para tentar lidar com o nosso caos coletivo só fazendo piada da nossa situação, mas a gente sempre fica naquela insistente dúvida: é “pra” rir ou “pra” chorar? Sim, a gente ri, mas na maioria das vezes a gente quer chorar). Esse Brasil se uniu neste ano para assistir, interagir, espiar, “se indignar”, torcer, votar para eliminar e finalmente votar para dar o prêmio a hoje milionária, artista e influencer, a paraibana “arretada” Juliette Freire.
Concordo que Juliette é um fenômeno, mulher forte e cheia de qualidades, com uma linda e inspiradora história de vida. Mas não são as trajetórias individuais o cerne da minha reflexão. Eu sei, trajetórias individuais e histórias de superação importam. Também sei que todas as pautas levantadas nesta e em outras edições, anteriores e posteriores – questões relacionadas ao racismo, machismo, xenofobia, LGBTfobia etc. – são extremamente relevantes e precisam, sim, ser tratadas, desconstruídas e combatidas. Mas, devo dizer que os nossos problemas têm um cerne profundo e profundamente arraigado na nossa completa dificuldade de nos enxergar enquanto “nós”. Todos problematizaram, foi fundamental e deve continuar sendo feito, as formas excludentes e cruéis com que alguns participantes, “brothers?”, foram tratados pelos demais, não apenas na edição de 2021, mas também nas que vieram posteriormente. Mas me pergunto: o que um programa como este enfatiza, se não a concorrência e por vezes a exclusão entre as pessoas?
Pense comigo, qual o cerne de um programa que incentiva a competição, a disputa entre indivíduos para ganharem 1 prêmio? Repare no formato. No final apenas 1 será o grande campeão ou campeã da jornada. Na vida funciona assim? Infelizmente funciona, mas não deveria! A gente se acostuma, mas não devia, como diria Marina Colasanti. Falava a escritora sobre a alienação ao tempo e ao espaço, vividos por homens e mulheres na sociedade pós-moderna. Nesse embalar dos dias, em que vamos nos acostumando e nos adaptando ao modo de vida capitalista, à correria, à rotina, à vida agitada, ao consumismo etc. E aprendemos a conviver com os grandes problemas sociais que estão ao nosso redor e também com pequenos problemas do nosso cotidiano, sem nos dar conta, sem reclamar, sem tentar mudar e sem nos revoltar para não nos machucarmos, não sofrermos e “não se ralar na aspereza da vida”. E vai “afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá”, já que a tentativa de mudança é quase sempre um processo marcado pelo conflito e pela dor.
Fatalmente, o BBB é a metáfora escancarada da nossa realidade, que extrapola, invade e inunda todas as esferas humanas, de um mundo amplamente capitalista e individualista, onde sonhos individuais são o fundamento e o cerne da existência, e pode valer tudo, ou quase tudo, porque afinal de contas o público não perdoa (a la às altas porcentagens de rejeição do chamado gabinete do ódio). A diferença é que não temos público externo, nós somos os nossos próprios espectadores. Ou temos, porque em algumas cosmovisões não somos os únicos habitantes do universo.
Por que somos o que somos? Por que não conseguimos minimamente olhar para o outro com empatia, ou, para além disso, nos pensarmos enquanto uma coletividade? A pandemia veio para nos mostrar o quanto nos faz falta os sentimentos de coletividade e solidariedade. Por que muitos, mesmo tendo possibilidade, não cumpriram os protocolos de isolamento social? Por que não há respeito e valorização a vida? Por que mais de 600 mil mortes não nos comovem ou não nos tocam como deveria? Por que a dor e a perda só fazem sentido quando atingem diretamente a cada um?
Sabe por quê? Porque consumimos diariamente a narrativa do individualismo, do malogrado “sonho americano”, o “pesadelo de todos nós”, volto a dizer, evocando as palavras de Vivian Camacho. Seja no reality show, que vemos de casa, engolindo publicidade em um discurso altamente enviesado, autocentrado na “única” possibilidade de realização pessoal através da fama e do dinheiro, sem parar para refletir em seus significados mais profundos. Seja nos livros de autoajuda, no que aprendemos na escola, nas redes sociais, nas lógicas de todas esferas da vida, seja econômica, política, e pasmem: até espiritual. Grande parte dos nossos pensamentos, aspirações, sentimentos e cognições estão contaminados por essa narrativa que se estabelece sobretudo com a gênese da colonialidade. Operando e sofismando-se cada vez mais com o capitalismo e o neoliberalismo dos nossos tempos. O pensamento neoliberal perpassa não apenas modelos políticos e econômicos, permeia as nossas formas de nos relacionarmos uns com os outros e com os demais organismos vivos que fazem parte da terra.
Quase sem pensar todos vivemos uma grande distopia coletiva de enorme proporção, mas ao mesmo tempo continuamos embebidos e acalentados pelo sonho americano. Lamentavelmente o BBB e todas essas narrativas e discursos, quase que onipresentes, instrumentalizam e cristalizam a ideia ilusória de que é maravilhoso viver em um mundo capitalista, excludente e desigual e patrocinam a fantasia de que essa é a nossa única possibilidade e alternativa de existência. Mas não é! Eu gosto de pensar nos tempos primórdios em que os seguidores de Cristo viviam em comunidade, no sentido genuíno da palavra, e “tudo lhes era comum”. Antes que você me pergunte de que livro comunista que eu tirei isso, trago a referência do Novo Testamento: Atos 2:44. Mas infelizmente, no BBB e na vida, somos arrebatados e levados pelo afã da competitividade e da necessidade de autopromoção, tendo sempre em vista a necessidade imperativa de conquistar o que é MEU. Nesse mundo, quase nada nos é comum, ou não reconhecemos que seja?
Muitos ao saírem do programa dizem que a experiência os fez amadurecer e aprender com intensidade e que com esse aprendizado se tornarão pessoas melhores (a exemplo de Karol Konká em A vida depois do tombo). Será? Melhores como? Em que sentido? Melhores para aparecerem “mais queridos” e “mais dignos” no close? Melhores para ter mais seguidores e receberem avalanches de likes e curtidas que servem exclusivamente para afagar o ego e conseguir maiores e melhores contratos de publicidade? Melhores para continuarem embalados pelo sonho americano de sempre ter mais e sempre se destacar e querer mais e mais e mais e mais para si?
Ah, mas não estou falando de nenhum pedestal, não mesmo, quem sou eu para isso. Também sou refém do sonho americano, vivo milhares de dilemas todos os dias na minha cabeça, sou sujeita aos “mesmos sentimentos”, mas vivo em luta contra essa minha/nossa tendência, buscando, de alguma maneira, ter o mesmo sentimento que havia em Cristo que se tornou um com nós, um em “nós”, o Deus conosco. Buscando também aprender com as cosmologias que são orientadas e orquestradas por outras lógicas não capitalistas. Aprecio muito a filosofia Ubuntu popularizada através de uma história, em que crianças “africanas” preferiram correr de mãos dadas para alcançarem juntas um cesto de frutas, numa ocasião em que um estrangeiro lhes propôs a competição. A filosofia presente na atitude das crianças é a essência da vida em comunidade: “Ubuntu, como um de nós poderia ficar feliz se o resto estivesse triste?”. A palavra antiga que na cultura Zulu e Xhosa significa “Sou quem sou porque somos todos nós” tem um ensinamento precioso para nossa existência.
Essa mesma história me faz lembrar da nosotrocéntica, ou ética da comunidade dos povos ameríndios, filosofia que perpassa diferentes povos e etnias em toda América (Abya Yala). Ela diz respeito à ideia de completude, de um bem viver que só se discerne nas relações com o outro, ou nas relações comunitárias. Como nos explica a filósofa mexicana Aimé González, em maya-tojolabal uma “pessoa autêntica é aquela que cumpre sua vocação como ser humano ao converte-se em parte do nós” (2018, p. 31, Tradução nossa).
Nesses tempos tão difíceis e obscuros, em que a morte, a dor e a doença andam à espreita, sorrateiramente minando nossas esperanças, mais do que autocuidado individual – “versão neoliberal do cuidado real, que quase sempre existe na relação com o outro ser humano como um ato de fazer algo pelo outro, porque ninguém sozinho dá conta de si mesmo” (DUVIVIER, 2020) – precisamos cuidar uns dos outros. Como disse Vivian Camacho, em sua aula no curso Saberes ancestrais e práticas de cura: “Só teremos paz ao cuidarmos um dos outros, a busca da paz individualista é uma falácia do mercantilismo [capitalismo]” (Camacho, 2021).
O BBB vai encerrar no próximo dia 25 de abril, e sempre recomeça a cada primeiro mês do ano, a pandemia oficialmente acabou desde o ano passado, mas é preciso refletir sobre o que podemos aprender com ambos, a fim de reconhecer, entender e lutar para superar os nossos problemas mais profundos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GONZÁLEZ, Aimé Tapia. Mujeres indígenas en defensa de la tierra. Madrid: Edições Catédra, 2018.
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
--------------------
Data de Publicação: 29/06/2023
Autoria: Jamille Macedo Oliveira Santos
Como citar este ensaio:
Santos, Jamille Macedo Oliveira. "Do BBB, da pandemia e da profundidade de nossas dores e problemas coletivos". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Idiomas indígenas como línguas francas na América colonial
João Pedro Palmieri Ramos
O continente americano é conhecido por ser lar de muitas culturas, muitas das quais carregam idiomas próprios há séculos. Entre esse leque linguístico, um dos grupos menos conhecidos e respeitados pela população em geral, mesmo do continente, é aquele das línguas indígenas. Existentes há muitos séculos, as línguas indígenas não formam um grupo único ou coeso, nem um tronco linguístico único. São, na realidade, grupos de famílias muito diversas entre si, com histórias próprias e representando povos, línguas e culturas próprias.
Durante o período colonial, após a conquista do século XVI, introduziram-se novos idiomas no continente, como o espanhol, o português, o francês e o inglês. No entanto, seria um erro acreditar que as línguas indígenas foram imediatamente suprimidas e passaram a ser utilizadas por uma parte ínfima da população. Na realidade, o uso de línguas de base indígena permaneceu muito forte nas sociedades, mesmo sob domínio colonial europeu, e alguns países têm ainda hoje milhões de falantes.
Neste breve ensaio, descreveremos a história do uso de algumas destas línguas na América Latina durante o período colonial, através do fenômeno que ficou conhecido em diversos lugares como “línguas gerais”. Vale ressaltar que as “línguas gerais” não são formas idênticas ao uso das línguas no período anterior à colonização. São, na realidade, formas que adquirem aspectos relevantes das línguas ocidentais, especialmente a escrita com alfabeto latino e também palavras de origem europeia ou ainda de outras línguas indígenas. Focaremos aqui especialmente no caso da língua Nahuatl, mas também falaremos sobre o Quéchua, o Guarani e a Língua Geral Brasílica.
Nahuatl
A Mesoamérica possuía uma variedade linguística muito grande, com diversos povos falando línguas distintas entre si (CARR, 2007). O nahuatl já existia no período anterior à conquista e era amplamente falado na região do domínio asteca, uma vez que era a língua deste povo. Diferentemente de outras línguas da região, que eram concentrados em uma única localidade, o nahuatl era falado por uma área geográfica mais dispersa, com ilhas maiores ou menores de falantes (NAVARRETE LINARES, 2019), já servindo como língua franca na região mesmo antes da conquista (CARR, 2007).
A conquista e domínio espanhol representaram mudanças significativas na forma de organização linguística mesoamericana. Por um lado, viu-se a introdução do castelhano, mas também o contato com missionários levou ao desenvolvimento de uma variante do nahuatl escrita em alfabeto latino, conhecida como nahuatl clássico (CARR, 2007). Esse foi usado por missionários em suas tentativas de evangelização e catequização dos indígenas, o que ajudou a difundi-lo e a continuar sua expansão como língua franca da região.
A legislação do período mostra um fomento à língua espanhola, mas não uma total proibição da língua nahuatl. Embora Carlos V & I, rei da Espanha, tenha favorecido a língua espanhola especialmente entre a nobreza indígena, os reis Felipe II e Felipe III favoreceram o nahuatl para a evangelização (CARR, 2007).
O trabalho de clérigos ajudou a criar gramáticas da língua nahuatl e esta foi usada como forma de pessoas de regiões distintas da Nova Espanha comunicarem-se entre si. Segundo o Frei Gerónimo de Mendieta (1525-1604),
Esta lengua mexicana es la general que corre por todas las provincias de esta Nueva España, puesto que en ella hay muchas y diferentes lenguas particulares de cada provincia, y en partes de cada pueblo, porque son innumerables. Más en todas partes hay intérpretes que entienden y hablan la mexicana, porque ésta es la que por todas partes corre, como la latina por todos los reinos de Europa (MENDIETA apud CARR, 2007, p. 9)
Vê-se então claramente o caráter de língua franca. Em 1570, Felipe II decreta o uso do nahuatl como língua oficial de todos os indígenas da Nova Espanha, abandonando a política de seu pai Carlos V de favorecer o castelhano na evangelização.
No século XVIII em diante se percebe, por parte da Coroa espanhola, um favorecimento maior do castelhano e também uma maior pressão para o ensino das línguas indígenas. Até o fim do período colonial, a nobreza indígena acaba abandonando o nahuatl clássico e adotando o castelhano como sua língua. No entanto, na época da independência, variantes do nahuatl ainda são amplamente faladas pela população e servem de língua franca. Foi no período republicano quando, por influência das ideias liberais de nação, se buscou uma homogeneização cultural que privilegiou a castelhanização (BRYLAK et al, 2020).
Quéchua
Esta língua foi falada na região andina até o fim do Tahuantinsuyo, quando se viu a introdução da língua espanhola. No entanto, assim como no caso já estudado da Nova Espanha, esse idioma não cessou de existir e ainda hoje milhões de pessoas falam línguas oriundas do antigo quéchua em regiões do Peru, Equador, Bolívia e Argentina.
Após a conquista espanhola, o quéchua acabou sendo escrito com letras romanas e foi, assim como o nahuatl, usado como meio de difusão do catolicismo. O Terceiro Concílio de Lima aprovou o uso de uma variante do Quéchua para os esforços de evangelização. Em 1571, a variante é ensinada para padres em Lima (DURSTON, 2007). A variante também foi muito usada em materiais pessoais, como correspondências, etc, mas em outros níveis oficiais o castelhano teve mais uso.
O declínio do quéchua deu-se depois de meados do século XVII e ao longo do século XVIII, com políticas que induziram à castelhanização (ADELAAR, 2007). O uso da língua declinou com a perda de interesse pela Igreja e o Estado e também como reação a revoltas indígenas. Embora não tenha desaparecido, o foco torna-se menor.
Línguas gerais no Brasil
O caso do Brasil também é interessante. Durante os séculos XVI e XVII, a América Portuguesa era um caldeirão com diversas línguas e culturas muito distintas. Nesse contexto, com exceção da região costeira, surgem duas línguas de base indígena que são usadas vastamente pela América Portuguesa, seja por indígenas, seja por portugueses (NOBRE, 2011).
Essas línguas podem ser divididas entre Língua Geral Paulista (LPG) e Língua Geral Amazônica. A LPG foi o idioma mais falado pelo Estado do Brasil até o século XVIII, quando “políticas civilizatórias” buscaram introduzir o idioma europeu em detrimento da língua de base indígena falada (RODRIGUÊS, 2006 apud NOBRE, 2011) e também a questão da “difusão do idioma lusitano na sua variedade reformatada, que vinha sendo levada a termo, através de diferentes ciclos econômicos da Colônia, pelos negros escravos, fossem africanos, fossem nascidos aqui” (MATTOS E SILVA, 2004 apud NOBRE, 2011).
Na região do Estado do Grão-Pará e Maranhão, onde a colonização começa cerca de 100 anos depois, ocorre de forma semelhante o surgimento da LGA, também de base indígena (NOBRE, 2011). Ela expande-se amplamente pela região amazônica, mas também acaba entrando em declínio. Hoje em dia, o Nheengatu, falado no noroeste do estado do Amazonas é derivado da LGA, mostrando que essa vertente linguística não foi extinta.
Conclusão
Podemos perceber que no processo de colonização da América foi possível a manutenção de diversas identidades e elementos culturais dos povos originários. Muitos desses elementos misturam-se com aqueles trazidos pelos colonizadores, mas nem por isso deixam de existir. Verificou-se o comum fenômeno de exclusão das línguas indígenas, especialmente após o século XVIII e depois acentuado pelos regimes liberais do século XIX. Hoje em dia, é justo trazer ao conhecimento de mais pessoas informações sobre a persistência de elementos culturais dos povos originários, mostrando como a história não se esgota apenas com a história do colonizador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADELAAR, Willem. The Languages of the Andes. With the collaboration of P.C. Muysken. Cambridge language survey. Cambridge University Press, 2007.
CARR, David. La Política Lingüística en la Nueva España. Universidad de Guanajuato
Acta Universitaria Vol. 17 no. 3, 2007. Disponível em: https://www.actauniversitaria.ugto.mx/index.php/acta/article/view/156/133 . Acesso em 31 de maio de 2023.
DURSTON, Allan. Pastoral Quechua: The History of Christian Translation in Colonial Peru. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.
NAVARRETE LINARES, Federico. Os Nahuas e os Nahuatl, antes e depois da conquista, México, Noticonquista, http://www.noticonquista.unam.mx/amoxtli/2270/2257. Visto em 31/05/2023
BRYLAK, Agnieszka, MADAJCZAK, Julia, OLKO, Justyna and SULLIVAN, John. Loans in Colonial and Modern Nahuatl: A Contextual Dictionary, Berlin, Boston: De Gruyter Mouton, 2020. https://doi.org/10.1515/9783110591484 . Acesso em 18 de abril de 2022.
NOBRE, Wagner. Introdução à história das línguas gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial. Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/8334/1/Wagner%20Carvalho%20de%20Argolo%20Nobre.pdf. Acesso em 6 de junho de 2023.
--------------------
Data de Publicação: 08/08/2023
Autoria: João Pedro Palmieri Ramos
Como citar este ensaio:
Ramos, João Pedro Palmieri. "Idiomas indígenas como línguas francas na América colonial". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
A indústria cinematográfica e seus abusos em relação aos indígenas
Marcones Portela
A 45ª edição da Academy Awards (The Oscars) que ocorreu em Los Angeles (EUA), no ano de 1973, foi marcada por um dos episódios mais notáveis desde a sua primeira edição. Marie Louise Cruz, atriz conhecida como Sacheen Littlefeather, foi vaiada após discursar e negar o prêmio vencido pelo ator Marlon Brando, que levou a estatueta por sua interpretação no filme “O Poderoso Chefão” (1972). O ator enviou a atriz em seu nome como ato de boicote e denúncia do descaso da indústria cinematográfica com os povos originários dos Estados Unidos.
Esse é um apontamento preciso de Brando. Por mais que atualmente o ato de Brando suscite debates, que giram em torno do conceito de “homem branco salvador”, este foi muito importante para que algo fosse sinalizado e relembrado. Mesmo que a ideia tenha sido projetada por um homem, quem sofreu violências foi a própria atriz. A atriz foi rechaçada, hostilizada e teve sua origem indígena questionada – Littlefeather tem origem indigena por parte de seu pai, descendente dos grupos Apache e Yaqui, povos da região que hoje se chama Arizona nos Estado Unidos. A indústria do cinema sempre escanteou tanto a cultura indígena quanto os profissionais indígenas e, por muitas vezes, os grupos originários, quando retratados em obras populares e de grande alcance de público, o são de forma recreativa e desrespeitosa.
Por isso é muito importante conhecermos e estudarmos as demandas indígenas e suas diversidades. É de suma importância estimularmos ainda mais o hábito de consumir, obviamente de forma respeitosa e adequada, a filmografia e os trabalhos desses profissionais, tanto do território nacional como de outros países do continente americano. No filme “Pantera Negra: Wakanda Forever” (2022) dos estudios Marvel/Disney, um dos principais personagens da ficção é o vilão “Namor”, interpretado pelo ator mexicano Tenoch Huerta, que é alvo de duras criticas pelos seus posicionamentos políticos na lutra contra o racismo e exclusões dos povos indigenas, assim como a também já citada Sacheen Littlefeather, que após seus trabalhos como atriz e modelo se dedicou ao ativismo indígena na Califórnia.
Em nosso país temos um catálogo riquíssimo tanto de obras quanto de profissionais nesta área, e que sofrem dos mesmos preconceitos e violências. Alguns exemplos que podemos citar seriam: “Teko Haxy - Ser Imperfeita” (2018), de Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro, obra premiada e aclamada por possuir um conteúdo intimista e nos mostrar, em dois mundos diferentes, os pontos de vista de ambas as cineastas; “As Hiper Mulheres” (2011) de Takumã Kuikuro; “Yãmĩyhex – As Mulheres-Espírito” (2019) de Sueli Maxakali e Isael Maxakali; “Guardiões da Floresta” (2019) de Jocy Guajajara e Milson Guajajara, obra que contém um teor policial. Temos também a obra de um diretor não-indigena, Luiz Bolognesi, que fez uma ótima animação brasileira chamada “Uma história de amor e fúria” (2013). Bolognesi é diretor também de “Ex-Pajé” (2018), que faz uma crítica substanciada e bem documentada da demonização de culturas indígenas por parte de religiões cristãs e da busca por evangelização desses povos também pelas práticas de doutrina cristã.
Retornando ao ponto inicial do texto. Sacheen Littlefeather veio a falecer em 2022 em decorrência de um câncer na mama. Academia de Artes e Ciências Cinematográficas publicou uma nota oficial de pedido de desculpas pelo o que ocorreu em 1973, somente 50 anos depois do fatídico dia. Nesse mesmo ano de 2022, na premiação que aconteceu em março, os atores Will Smith e Chris Rock protagonizaram outra cena marcante na cerimônia do Oscar. Rock recebeu um tapa ao vivo de Smith após o ator e comediante ter feito um comentário delicado e ofensivo à esposa (Jada Pinkett Smith) de Will Smith, atitude que foi interpretada de variadas formas. Mas talvez importe dizer que Will e Chris são atores negros, pertencentes a uma classe que também é minorizada pela indústria cinematográfica. Ou seja: mais uma vez, pessoas que são minorizadas servem de espetáculo para uma elite branca, servindo de palco para a afirmação de discursos coloniais ocidentais por parte da mesma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, José Ribamar Bessa. Cineastas Indígenas - Um outro olhar.1ª edição.SP:São Paulo. Câmara Brasileira do Livro, 2010. 75 p.
EX-PAJÉ. Direção de Luiz Bolognesi. Brasil. Produção: Buriti Filmes e Gullane, 2018. acesso: streaming online. 81 minutos.
PINHEIRO, Neide Garcia. O Cinema Indigena no Brasil e no Canadá Tecendo Culturas: Topawa e Waban-Aki: People from Where the Sun Rises. 2022. 21 p. Tese. (mestra e doutora em Letras Ingles e Literatura ) Universidade Estadual do Centro Oeste. PR: Guarapuava, 2022.
--------------------
Data de Publicação: 07/09/2023
Autoria: Marcones Portela
Como citar este ensaio:
Portela, Marcones. "A indústria cinematográfica e seus abusos em relação aos indígenas". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Dos despojos da escravidão:
A violência das palavras nos casos de Astolfo Marques e de Agnello Assumpção Lapa
Darville Lizis
Introdução
O corpo, território-fronteira entre o cativeiro e o não-cativeiro, trazia em si mesmo a marca do espectro da escravidão: a cor; e de uma ausência: a liberdade. Ser livre não bastava. O ser negro/a e o ser escravo/a confundiam-se como categorias sociais através daquilo que não se poderia esconder: o corpo. Em um passado-presente contínuo, ininterrupto, o ser-negro/ser-negra traz em seu corpo as marcas remanescentes da escravidão, da racialização que os hierarquizou e os marginalizou.
As maneiras pelas quais (res)significamos o ser-negro estimulam, validam e criam formas de violência que, entranhadas no imaginário, conduzem a uma seara contínua de destruição do Outro, sobretudo, e, primacialmente, através do discurso. As palavras não trazem em seu bojo uma brutalidade mais amena, por estarem somente alocadas nos planos das ideias. Lembrando Toni Morrison (2019), as palavras não são violentas, elas são a violência.
Objetificar o Outro, tratá-lo como dessemelhante radical, hostil e ameaçador mata e o extermínio extrapola o campo simbólico - como se, aliás, o campo simbólico não matasse por si mesmo – levando à morte do corpo. O alterocídio (MBEMBE, 2018) social e difuso empreendido pela branquitude deixa vestígios, marcas, cicatrizes e traumas contínuos. A branquitude cria padrões e expurga/parasita todo o desvio imaginado, transformando o Outro em aberração (FANON, 2008). Os dizeres e os modos de dizer produzidos em determinado espaço, tempo e lugar social fazem parte de toda uma rede de enunciados, de um archeion (MAINGUENEAU, 2016) no qual todos os textos escritos pelos homens e pelas mulheres compõem um legado. Os dizeres, os não dizeres, aquilo que é dito e não dito são atravessados por ideologias que, muitas das vezes, estão na superfície, nos interstícios.
Estruturas de poder atravessam os meios de produção, de circulação, de transmissão, de legitimação ou não dos discursos (VAN DIJK, 2008). A circularidade dos textos no fluxo- autor-leitor-público hierarquiza aquilo que se considera importante de ser lido, lembrado, refletido, armazenado e o que deve ser esquecido, ignorado, negligenciado e rasurado. O poder, ou melhor, as pessoas que exercem o poder econômico, simbólico, cultural regem, salvo rupturas, o archeion.
Trago dois casos: um do século XIX, outro do início do XX. No primeiro, temos Agnello de Assumpção Lapa. Ele, em uma publicação própria em um jornal de grande circulação local, no período pré-emancipação (1887), responde a uma acusação: ser escravo. No segundo caso, há, não a voz do negro, mas o discurso de alguém em relação ao negro, identificado, sobretudo, por meio do seu corpo, do seu ser-racializado. Humberto de Campos, em uma autobiografia escrita esparsamente ao longo dos anos, relembra a sua vida pregressa. No exercício de rememorar, Campos assinala vários personagens pelos quais cruzou o caminho, um deles, Astolfo Marques, escritor negro de origem humilde.
Agnello Assumpção Lapa por ele mesmo
Saidiya Hartman nos diz que “o arquivo sobre a escravidão repousa em uma violência fundadora; essa violência determinada, regula e organiza os tipos de enunciados que podem ser formulados sobre a escravidão” (2021, p. 120). Ao falarmos sobre a escravidão devemos lembrar do apagamento, do esquecimento, da não-presença naquilo que está inscrito. As fontes são, em grande parte, como nos lembra Trouillot (2016), oriundas do poder e a ele assujeitadas em um dado modelo/armazenamento de memória-história. Encontrar a voz ipis literis em um texto de um ser humano outrora escravizado refletindo sobre a própria condição e arrogando-se, claramente, uma identidade de ex-escravizado é, se não raro, incomum, pelo menos na historiografia brasileira.
Ao me aventurar nos mistérios da hemeroteca em busca de referências sobre a escravidão, encontro uma publicação singular, no jornal A Pacotilha, de 9 de maio de 1887, assinada por Agnello Assumpção Lapa. O texto dirigido a alguém sem nome, na seção ao público, respondia a uma ofensa à honra. O autor se diz não acostumado com as lides da imprensa, mas diante da calúnia de “um infame”, resolve defender-se. Além do adjetivo desairoso, o interlocutor de Lapa é igualado, pela sordidez da acusação, a um assassino e covarde. Ao longo do texto os nomes desprestigiosos: miserável, biltre, beberrão, farroupilhas, crapuloso, filho libertino, frequentador das casas de correção, covarde, facínora e, por ironia, cavaleiro da boa indústria.
A acusação do sujeito inominado: Lapa ser escravo. As estratégias de defesa ao autor da publicação diante da desfeita nos desvelam maneiras de ser e de pensar de alguém que, como observamos ao longo da publicação, fora escravizado. São raras as fontes nas quais alguém que fora cativo referencia a escravidão, além de instaurá-la na subjetividade. Os meandros discursivos de defesa do “acusado” revelam uma hierarquização moral. Ele, Lapa, se coloca em um patamar superior, pois não lhe pesava nenhuma acusação de mal-feito.
A resposta de Lapa, por sorte nossa, transborda de significados e sentidos atribuídos não à escravidão, mas ao “ser escravo” e, por oposição, ao “ser livre”. Ao tecer uma hierarquização moral, ele nos revela as estruturas de pensamento de alguém que foi escravizado. Palavras de Lapa: “fui escravo, mas hoje, apesar de tudo não me troco por esse infame”. Ter sido, outrora, cativo, mas hoje não sê-lo, marca uma cisão fundamental no discurso. Foi escravo, mas não é; além disso, apesar de tudo, não se troca pelo acusador. Convido a nos debruçarmos nas palavras ipsis litteris de Agnello, particularmente em três palavras que atravessam a frase de indignação do autor: apesar de tudo. Apesar marca uma oposição/ uma concessão àquilo que, em princípio, espera-se, mas é frustrado. Poderíamos, por analogia, utilizar o apesar de duas outras maneiras. Em sentido diacrônico a pesar – separado – significado com pesar, ou seja, com tristeza; ou, indo ao latim, pesare cujo sentido orbita em torno daquilo que se pondera/se reflete.
Após o apesar, ligada pela preposição de, há uma pequena palavra de quatro letras: tudo. Nos estudos da língua, tudo é chamado de pronome indefinido ou podemos também alcunhá-lo de referenciador. Tudo é um termo vazio de sentido por si mesmo, ou seja, a palavra precisa de um anteparo para significar. Tudo sempre encapsula algo anterior, seja dentro do texto, chamado cotexto, ou fora dele, chamado contexto. No caso de Lapa, tudo significa a escravidão e, ao se referir, ou melhor, ao se encapsular a escravidão em um termo antecedido por uma palavra opositiva ou concessiva – apesar – Lapa nos informa muitas coisas. A vida pregressa da escravidão e ainda contínua cuja marca, a sua cor, em constante estado de rememoração: tudo. Apesar de ter sido escravo, apesar do não-ser, por oposição livre, apesar de estar em cativeiro, apesar de ter a sua mobilidade restringida, apesar de seu corpo e seus movimentos pertencerem a alguém, apesar de ser propriedade de outro/outra, apesar de tudo, de todo o peso material, simbólico, político, social, ele, Agnello Assumpção Lapa, não se troca por um livre, supostamente, nato. Apesar de tudo, refletindo sobre seu passado-presente, com pesar do seu presente-passado, ele não se troca.
Lapa hierarquiza comportamentos seccionando-os da cor. Vergonha, segundo ele, é ter predicativos ruins de caráter, mas “nunca porém ter sido escravo”. Ainda mais: o autor afirma ter honra em pertencer à sociedade, pois “no meu procedimento passado como no presente, não encontrará esse facínora uma só falta que me faça corar perante a sociedade”. Lapa desracializa o caráter e quebra os liames entre liberdade-escravidão, onde o cativeiro seria nascedouro daquilo que Joaquim Manoel de Macedo, na coletânea de três novelas, As vítimas-algozes (1869), tentou demonstrar: a escravidão corroía o homem/a mulher degenerando-o.
As palavras de Agnello de Assumpção Lapa não bastam, a prova da sua liberdade é o discurso de autoridade do Outro. Ao arrogar a sua condição de livre, ele subscreve, ao fim da publicação, um documento, que, segundo as palavras dele, muito o honrava. Na transcrição, assinada por Isaura Amelia Lapa, escrita a rogo de D. Francisca Benedicta Pereira Lapa, descobrimos que Agnello, desde 1882 “é livre e senhor das suas vontades” e que a tem acompanhado desde a morte do seu irmão (de D. Francisca) prestando-lhe auxílio nas “suas precisões” e “podendo o mesmo fazer d’este, o uso que lhe convier”.
Do texto de D. Francisca entrevemos vestígios que não fogem aos inúmeros casos de seres humanos anteriormente escravizados/as que prestavam ainda auxílio aos seus antigos/as escravizadores/as. Pelo texto, não há menção à maneira pela qual Lapa logrou a alforria, se por vontade de D. Francisca ou do irmão dela. Talvez ele tivesse sido alforriado condicionalmente, como era comum, desde que assistisse D. Francisca até a morte? Ou, não é improvável, que Dona Francisca tivesse herdado do irmão o alforriado. Da família Lapa, Agnello herdou/comprou/negociou/regateou a liberdade mantendo com os seus antigos/as senhores/as – escravizadores/as, o sobrenome, Lapa e os laços de gratidão.
As palavras de Agnello de Assumpção Lapa, sintomas de uma estrutura discursiva, extrapolam o cotexto e o contexto imediato. O Outro define o discurso de Lapa e, a partir do revide, o imbróglio nos legou uma estrutura argumentativa de um ex-escravizado, sob a vigência da escravidão, tecendo considerações, ainda que brevíssimas, sobre o ser-escravo. O ethos dito e mostrado de Lapa exprime um homem firme, orgulhoso, destemido e seguro das suas próprias convicções morais - lembrem-se: ele hierarquiza categorias de moralidade. Apesar de tudo, há/existe um ser-homem, ser-consciente, ser-livre, ainda que racializado, seguro do seu ser-estar no mundo.
Astolfo Marques, um autor da província, pelo olhar do Outro
Astolfo Marques, quando reportado por Humberto de Campos nas suas memórias esparsas, tem as características físicas destacadas: homem de cor, tez escura e embaciada como as dos negros que sofrem do fígado, estatura mediana, fronte larga e fugidia, boca enorme, bigode ralo, dentes enormes e brancos, beiçorra da raça (2009, p 289). Palavras superlativas - enormes, larga, beiçorra – compõem a imagem racializada de Marques. Não era apenas um autor, mas um autor negro com todos os estereotipados traços. A escolha das palavras, ainda mais de um escritor apurado, nos indica intenções subjacentes que, apesar do autor, resvalam do texto. Humberto de Campos parece, entretanto, reconhecer concessões. Marques era amanuense da Biblioteca, mas... entre os mas, o autor negro permanece no seu lugar de subalternidade. Desempenhava todos os misteres de servente: varria o salão, espanava as estantes, etiquetava os livros, enchia filtro, molhava uma planta e se dirigia à Casa Trasmontana várias vezes ao dia para comprar refrescos de tamarindo para outros escritores (Idem). A bajulação rendeu-lhe frutos. Marques fez-se indispensável aos brancos, um corpo subalterno, espécie de faz tudo da repartição. Para Campos, os negros ascendem através da adulação e do trabalho excessivo, ou seja, doses bem medidas de meritocracia carregadas de chaleiragem são o “mapa do tesouro”.
Justifica-se a obscuridade de Marques por escrever “em estilo e sem brilho”. Nunca a escrita de um autor negro poderia, no horizonte de Campos, captado no texto, produzir uma literatura de brilho e de estilo. Talvez estivesse correto, em um mundo branco, destacar a raça na escrita. Talvez fugisse ao que se esperava da “boa literatura”/vivente. A mentalidade escravocrata fundiu submissão e subalternidade à cor preta. Condiciona-se a ilusória e frágil ascensão social, uma alforria atualizada, à subordinação absoluta. No caso de inadequação-insurreição à imagem exigida pelo outro, o negro/a negra submerge, torna-se, pelo olhar obnublado e racista, um corpo perigoso, atrevido. Três caminhos se apresentam: obliterar o texto, rasurá-lo, ou reescrevê-lo, ressignificando aquilo que o próprio Humberto de Campos nos revela.
Imaginemos, então, pelas fímbrias do texto de Campos, um outro Astolfo Marques: negro, filho de lavadeira e engomadeira de primeira, competente amanuense da Biblioteca pública, leitor obstinado, que galgou o posto de secretário-geral da Oficina dos Novos. Funcionário gentil, imprescindível e prestativo, apreciava manter o ambiente de trabalho meticulosamente limpo e agradável, seja pela presença de plantas, seja pelos sorrisos generosos que distribuía a todos. Impecável no figurino, Marques trazia sempre o terno azul-marinho e o colarinho esmerados. De olhar arguto e perspicaz, apresentando notável erudição, além de incursionar pela história, escreveu contos, romance, crônicas (1905; 1908; 1913), nos quais soube, com maestria, captar o cotidiano da capital maranhense.
Conclusão
Astolfo Marques e Agnello Lapa de Assumpção, dois homens livres marcados pela escravidão. Se sobre o primeiro, diante do corpo já morto, pesa um discurso (in)defensável; o segundo, reage, responde, sistematiza, descreve, tentando, em certa medida, colocar sob os seus termos aquilo que considerava injusto: ser acusado falsamente. Para Lapa, qualidades morais individuais maculam a respeitabilidade, o lugar social; ser livre ou cativo, não. Ele toma a palavra. Usa a palavra. Manipula a palavra, mobilizando a sua experiência e, a partir do seu lugar primeiramente imposto e depois disso, (re)construído por ele, Agnello faz da resposta ao acusador um ensaio de escrevivência (EVARISTO, 2009), trazendo o legado das vozes de uma coletividade e da sua própria voz no presente-passado.
Os despojos de Astolfo Marques são revirados. A sua pele, já desaparecida, torna-se uma questão. Não consigo afirmar se o posterior apagamento de Marques deve-se a acontecimentos específicos. Diante da conjuntura discursiva e de tantos enunciados ditos, não-ditos, (mal)ditos, Raul Astolfo Marques, em último caso, segundo alguns nomes da crítica, tem uma “obra menor”. Atravessam a arbitrariedade do cânone diversos matizes, não só de cor/raça, mas de gênero, origem social, lugar de nascimento, classe. Todas as intersecções interferem na presença ou na ausência, no já tão desprestigiado e combalido - não sem razão - cânone. Circunscrever o apagamento no mundo das letras às cambiantes e escorregadias qualidades estéticas não resolve o problema. Um simples passeio pelo cânone literário brasileiro faz cair por terra o incompreensível preciosismo estético.
Astolfo Marques, imerso em um país feito sob a escravidão, sobre a escravidão, da escravidão e pela escravidão, com a escravidão, faz da sua obra uma resposta. Responde, ainda que sem intenção, do passado-futuro ao presente-passado. Ao caminharmos pela literatura de Marques, ele, do passado, nos responde. Responde a Humberto de Campos, responde a mim, a nós. Ou, reconstruamos: Astolfo Marques, necessariamente, não precisaria responder, fazendo da sua palavra resultado direto da palavra do Outro. Astolfo Marques, o autor negro maranhense, existiu, existe e existirá por ele mesmo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, H. Memórias e Memórias inacabadas. São Luís: Instituto Geia, 2009.
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. Angela Corrêa & Ida Lúcia Machado. São Paulo: Contexto, 2008.
CHARAUDEAU, P. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.
EVARISTO, C. Depoimento cedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em: 20 de agosto de 2023.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Editora EDUFBA, 2008.
GATO, M. de J. Raça, literatura e consagração intelectual: leituras de Astolfo Marques (1876-1918). In: MARQUES, A. O 13 maio e outras estórias do pós-Abolição. Org. Matheus Gato. São Paulo: Fósforo, 2021.
HARTMAN, Saidiya. “Vênus em dois atos”. In: BARZAGHI, C; PATERNIANI, A; ARIAS, A. Pensamento negro radial: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo ; N-1, 2021.
LAPA, A. “Publicação a pedido.” A Pacotilha. 09 de maio de 1887.
MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Editora Contexto, 2016.
MARQUES, A. A nova Aurora. São Luís, MA: Tipografia Teixeira, 1913.
MARQUES, A. A vida Maranhense. São Luís: Tipografia Frias, 1905.
MARQUES, A. Natal (quadros). São Luís: Tipografia Teixeira, 1908.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2008.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
--------------------
Data de Publicação: 10/10/2023
Autoria: Darville Lizis
Como citar este ensaio:
LIZIS, Darville. "Dos despojos da escravidão: a violência das palavras nos casos de Astolfo Marques e de Agnello Assumpção Lapa". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Reflexões sobre os indígenas no Brasil e Estados Unidos
Ana de Melo
Pocahontas (Owen,1837) e Iracema (Alencar,1865) são dois ícones da literatura estadunidense e brasileira, respectivamente. Ambas as obras procuram retratar de uma maneira romantizada os conflitos oriundos das relações estabelecidas entre colonizadores e colonizados na América. A importância histórica dessas obras se dá pelo fato de serem considerados mitos fundadores da nacionalidade estadunidense e brasileira. Tais mitos tiveram grande alcance e podemos arriscar dizer que ocupam o imaginário dessas nações até os dias de hoje. Essas personagens femininas são emblemas do indígena que construiu a nação junto ao europeu, como colaborador e conciliador, seja pela miscigenação ou pela proteção que reivindicou junto ao seu povo para o colonizador. Nessa vertente, suavizam a imagem da colonização genocida e etnocida, que impôs a violência física e cultural.
Através de experiências particulares tais romances buscam deixar a entender que essa interação ocorreu sempre de forma harmoniosa. Entretanto, o sacrifício feito pela mulher indígena, que paga com a vida o nascimento de uma nação, é um estratagema literário que embeleza de uma forma tão grandiosa que esquecemos a crueldade que está sendo retratada. A morte das personagens vai muito além do particular, é a representação da morte de uma cultura de uma forma geral, que através da miscigenação com o europeu cria uma nação civilizada, que ruma ao progresso devendo deixar a cultura indígena somente como símbolo. De acordo com a professora Ria Lemaire (1989, p.270), a sedução literária de Iracema como obra de arte, faz com que o leitor sublime os fatos narrados e “a beleza redime a morte, faz com que o sujeito ultrapasse os limites de seu destino individual, se multiplique e eternize em símbolo”. Mas por que romances do século XIX que retratam mulheres indígenas subjugadas são transmitidos até os dias atuais como mitos fundadores? Pocahontas e Iracema são vistos como símbolos indigenistas que permeiam o imaginário contemporâneo. Foram retratadas em diversas obras de arte e Pocahontas virou animação pelos estúdios Disney com a mesma idealização da peça original. Iracema, que alguns autores dizem ser um anagrama da palavra América, é a imagem da pureza e do primitivismo delegados aos indígenas, e encontramos essa idealização também nos livros didáticos. Essa imagem está presente em nosso imaginário e reflete na maneira como vemos os indígenas na atualidade, inclusive nas políticas públicas destinadas a esses povos. A ideia de que desaparecerão conforme o avanço da civilização e os esforços para integrá-los são vistos tanto no Brasil como nos Estados Unidos, refletindo o ideário colonizador que persiste mesmo após os processos de descolonização desses países. Encontramos então uma vertente para responder a pergunta referente à continuidade e força desses mitos. O grupo dominantemente patriarcal não acabou com a independência desses países, e a propagação desse ideário dos indígenas serve a esse propósito.
Outra vertente para refletirmos sobre a importância de desconstruirmos esses mitos fundadores é analisar os fatos históricos que demonstram o genocídio. Estima-se que ao chegar no norte da América, os colonos encontraram cerca de 25 milhões de indígenas; hoje restam um pouco mais de 2 milhões. No Brasil não foi diferente, assegurando as devidas proporções territoriais. A maior parte dos estudiosos chegaram a um consenso de que os portugueses encontraram cerca de 5 milhões de indígenas. Hoje, segundo o censo de 2010 realizado pelo IBGE, restam pouco mais de 800 mil. Além do genocídio de proporções continentais, após a colonização o etnocídio continuou em curso. Etnocídio, como explica o antropólogo Pierre Clastres, é a destruição cultural desses povos. Para ele, “o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito” (CLASTRES, 2004, p.56). Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o progresso imposto por esses países dentro do sistema capitalista empurrou os indígenas para reservas menores que seus territórios originários, atendendo aos anseios econômicos, como a busca do ouro nos Estados Unidos no século XIX ou a abertura de estradas no Brasil no século XX.
Um exemplo emblemático foi a carta do Cacique de Seattle, em 1854, em resposta à proposta de compra de suas terras feita pelo presidente dos EUA. A carta ficou conhecida ao ser divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um pronunciamento em defesa do meio ambiente. O Cacique Ts’ ial-la-kun, vulgarmente chamado de chefe de Seattle, demonstra em suas palavras a relação que os indígenas têm com o território e com os seres que habitam nela; o respeito ao sagrado ancestral e a importância desse sagrado para a própria sobrevivência.
“Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhe vendermos a terra vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também, e, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que declaram a qualquer irmão”.
Nesse trecho podemos observar a abertura de diálogo com o outro e a ligação com a natureza. É uma relação de pertencimento, na qual o homem é tão importante quanto o rio, o solo, o ar, os pássaros, e não uma relação de dominação. E, nesse sentido, a terra na qual estão seus antepassados é sagrada para os indígenas. Por isso a resistência à manutenção do território original. Logo, podemos perceber o porquê da violência cultural ao transferi-los de território, como ocorreu tantas vezes no Brasil e nos Estados Unidos.
A reescrita de estudos sobre a história indígena americana e o debate sobre os indígenas na atualidade são requisições dos próprios indígenas que lutam por seus territórios e pelo direito de viverem conforme suas culturas. É um debate de todos nós! Queremos Iracema, “a virgem dos lábios de mel e com o cabelo mais negros que asa da graúna”, mais do que saber dos suicídios dos jovens Guarani-Kawá ou o abandono de mulheres e crianças nas estradas em busca da sobrevivência diária?
Até quando iremos evocar o indígena do passado em detrimento indígena do presente?
--------------------
Data de Publicação: 04/04/2024
Como citar este ensaio:
DE MELO, Ana. "Reflexões sobre os indígenas no Brasil e Estados Unidos". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
O conto do homem invisível
Paulo Neto
O homem invisível
Nasceu da floresta
Deus o fez d'água
Para viver na terra
Sua invisibilidade
Era na verdade percepção
De amigos, parentes
Ou latifundiários da região
Posterior a uma invasão
Um padre
Enxergou
O homem invisível
E com a bíblia na mão
Disse que era aliado
Seguidor da
Teologia da libertação
Deixou claro
Seu apoio e
Falou que o apresentaria
A outros homens invisíveis
E disse "para o que
precisar, vá para Brasília
Porque lá, é o lugar
De homem invisível cobrar"
Concordando com
A afirmação
Partiu para Brasília
Fazer uma reivindicação
Homens cegos
Forjaram documentos
E com a folha amarela
Ocuparam a sua terra
Era dia dos homem invisíveis
E o nosso homem invisível
Foi visto em Brasília
Saindo de um gabinete
Tinha uma reunião
No dia seguinte
Para tratar de assuntos
Urgentes com o Presidente
Já pensava no que ia falar
"Tomaram Caramuru-Paraguassu
Ou você me ajuda
ou vai tomar no...."
Seus pensamentos
O atrasaram
Não pôde adentrar
No hotel
Na calada da noite
Deitou sob um banco
Estava muito cansado
E para amanhã
Tinha que estar bem preparado
Acontecem que jovens
Duvidaram da sua composição
E com 2 litros de álcool
Atearam fogo naquele cidadão
O homem invisível
Se tornou visível
Com a repercussão
O chamaram de
Galdino Pataxó Hã Hã Hãe
Morto numa "brincadeira"
Tudo foi uma confusão
Era pra ter sido outro homem invisível
E não um indígena
Com grande reputação
Me perguntam hoje
Se a história
De Galdino
Foi em vão
Eis aí uma questão
27 anos depois
Mataram outra liderança
Da mesma etnia
Sob a justificativa de uma invasão
Mas eu diria que sim
Seu legado visibilizou
A re-existência indígena
Que de forma plural
Luta agora
Contra as todas
Repercussões
Do projeto genocida
Conhecido como colonização
--------------------
Data de Publicação: 01/10/2024
Como citar este ensaio:
NETO, Paulo. "O conto do homem invisível". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
--------------------
Feito no Brasil, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), todos os direitos reservados 2022. Esta página pode ser reproduzida com fins não lucrativos, desde que não esteja editada e a fonte completa e seu endereço eletrônico sejam citados. Caso contrário, requer autorização prévia por escrito da coordenação do projeto.