ABECEDÁRIO DA DESCOLONIZAÇÃO
ISSN: 2764-9393
ISSN: 2764-9393
EDIÇÃO ATUAL (VOL. 1 2024)
A
AFROCENTRICIDADE
Afrocentricidade é um termo cunhado em 1980 no livro "Afrocentricity: The Theory of Social Change", pelo filósofo e professor doutor estadunidense Molefi Kete Asante, que leciona na Universidade de Temple, onde ocupa o cargo de chefe do departamento de Africologia. Segundo sua proposição, Afrocentricidade é um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teóricos, é a colaboração do povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos. (ASANTE, 2014, p. 3). Dentro desse escopo, é necessário colocar esses sujeitos negros em questão no centro da análise para que as agências de pessoas africanas e afrodescendentes sejam reconhecidas nos períodos históricos estudados. Asante propõe, nesse sentido, que os períodos históricos sejam analisados considerando a agência dos sujeitos negros e sua participação dentro do contexto em que vivem.
Em relação à ideia de agência, Asante contesta a visão de que os africanos e afrodescendentes eram passivos nas sociedades em que viviam, pois, de acordo com o paradigma de análise da Afrocentricidade, ele defende que as populações negras assumiram funções ativas e participativas nas sociedades em que estava inseridas. Molefi Asante evidencia essa perspectiva no trecho a seguir:
Um agente, em nossos termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana. Em uma situação de falta de liberdade, opressão e repressão racial, a ideia ativa no interior do conceito de agente assume posição de destaque. Qual o significado prático disso no contexto da afrocentricidade? Quando consideramos questões de lugar, situação, contexto e ocasião que envolvam participantes africanos, é importante observar o conceito de agência em oposição ao de desagência. Dizemos que se encontra em desagência em qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo. Estou fundamentalmente comprometido com a noção de que os africanos devem ser vistos como agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. O que se pode analisar em qualquer discurso intelectual é se os africanos são agentes fortes ou fracos. Quando ela não existe, temos a condição de marginalidade - e sua pior forma é ser marginal na sua própria história (ASANTE, 2009, p. 94-95).
Quanto ao contexto brasileiro, o Afrocentrismo teve como figura central o nome de Zenaide Silva (1956-2011), que foi uma importante atriz e intelectual do movimento negro no Brasil. Zenaide Silva tinha por missão uma educação com base na Afrocentricidade, sempre buscando a face africana que o Brasil possui. Para explicar a Afrocentricidade, Zenaide Silva retoma a filosofia grega e diz que na verdade ela foi ‘‘roubada’’ pelos gregos, já que sua verdadeira origem é na África, mais especificamente no Egito, e que a associação do início da filosofia na Grécia é fruto de um constante apagamento europeu da produção africana. Tanto o fato exemplificado por Zenaide Silva, quanto outros apagamentos da cultura e história africana podem ser reexaminados a partir de uma educação com base no paradigma de análise da Afrocentricidade. Atualmente, o autor Renato Noguera é um proeminente nome na defesa da educação com base na Afrocentricidade. Para Noguera, é vital que os negros e negras se enxerguem como um elemento de destaque na constituição da sociedade brasileira. Segundo ele, uma educação com base na Afrocentricidade contribui para que a maioria da população brasileira se reconheça na produção histórica e cultural brasileira.
Em suma, a Afrocentricidade pode ser vista como uma mudança de paradigma, uma tentativa de ‘‘consertar’’ uma visão que por muitos anos foi eurocêntrica. A África e os africanos foram rebaixados a um papel secundário e de desvalorização por conta dos séculos e mais séculos de escravidão e colonização. Durante esse período, os brancos europeus mantiveram uma visão de superioridade sobre a cultura negra e africana, o que levou a uma subvalorização da produção intelectual e cultural da população negra de modo geral. A perspectiva de análise da Afrocentricidade é fundamental para o enfrentamento desse preconceito histórico e para que haja a reestruturação do papel dos negros e de seus lugares nas sociedades nas quais esses sujeitos estão inseridos. Para que ocorra sua valorização, é preciso que eles sejam visibilizados, só assim, esses indivíduos negros receberão o reconhecimento que por muitos séculos lhes foi negado.
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Data de Publicação: 22/10/2024
Autoria: Gustavo Rodrigues Vitório
Bibliografia
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa L. (org.). Afrocentricidade Uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 93-110.
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: a teoria de mudança social. Afrocentricidade Internacional, 2014.
NOGUERA, Renato. Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado. Revista África e Africanidades, v. III, p. 01-18, 2010.
TV CULTURA. Zenaide Silva quer introduzir conhecimentos de afrocentricidade (bloco 1). Youtube, 25 de abril de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VPoAfUN0Gk0. Acesso em: 19 de abril 2024.
Como citar este verbete:
VITÓRIO, Gustavo Rodrigues. "Afrocentricidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d ISSN 2764-9393
ISSN 2764-9393
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B
BUEN VIVIR
As ideias de “progresso” e de “desenvolvimento” predominantes no mundo atual se originam a partir da colonização das Américas, Ásia e África por diferentes nações europeias. A partir de extrema crueldade, diferentes povos, culturas, epistemologias e maneiras de se viver foram apagadas ou renegadas a uma posição subalterna nas sociedades que se seguiram após o fim dos regimes coloniais. Em muitos casos, inclusive, estes sofrem o mesmo nível de discriminação e perseguição dos tempos coloniais até os dias de hoje. Porém, juntamente com essa perseguição, movimentos de resistência e intelectuais começaram não só a resgatar estas epistemologias, como também a questionar a lógica europeia ligada a uma certa noção de “progresso”. Entre elas, o Buen Vivir se destacou nos últimos anos como uma forma de organização de sociedade completamente diferente da experienciada por boa parte do mundo atual.
O Buen Vivir (em português, “Bem Viver”) é considerado um conceito universal presente em diversas culturas ameríndias. Um dos principais trabalhos recentes sobre o conceito é do intelectual e político Alberto Acosta, traduzido em português para O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Além dele, outros acadêmicos como Walter Mignolo e Eduardo Gudynas também trabalharam a temática.
Mas afinal, o que o Buen Vivir defende? Visando a uma visão pluriversal do conhecimento humano, o Buen Vivir procura criticar a globalização, a modernidade capitalista e as limitações da sua noção de progresso, configurando um projeto colaborativo que visa a uma outra alternativa para um mundo que ainda sofre as mazelas do imperialismo e do colonialismo. Se baseando em cinco pontos principais, o Buen Vivir implica consigo: construir uma perspectiva alternativa; superar o conceito tradicional de desenvolvimento enquanto proposta unificadora global (baseado em uma perspectiva eurocêntrica); enfrentar a colonialidade do poder, do saber e do ser; repensar o Estado em termos plurinacionais e interculturais e repensar e aprofundar a democracia.
Dessa forma, o Buen Vivir se posiciona como uma alternativa de desenvolvimento que se coloca oposta ao desenvolvimento de matriz eurocêntrica e capitalista, almejando uma sociedade pensada de uma maneira plural e que possa abranger diferentes realidades de uma mesma localidade. Assim, seu apogeu na América não se dá por acaso, pois esta consiste em uma região afetada pela realidade colonial há mais de 500 anos.
É importante lembrar que o Buen Vivir, mesmo sendo baseado na filosofia e no estilo de vida dos povos originários, não é uma ideologia única, podendo variar de acordo com questões geográficas ou sociais de um grupo de pessoas. Outros pensamentos similares, por exemplo, podem ser encontrados em diferentes povos ao redor do mundo, como em partes da África e da atual Índia. Hoje, o Buen Vivir é mencionado nas Constituições do Estado Plurinacional da Bolívia e da República do Equador. Na Bolívia, o Buen Vivir está diretamente relacionado à mudança social promovida durante a década de 2000, com a ascensão de Evo Morales e de outras lideranças indígenas na política nacional, com a ideia de uma prática horizontal do Estado, com o exercício do plurinacionalismo jurídico, o autogoverno de suas comunidades e a criação de diferentes espaços comunitários. Embora nem todas estas ações tenham sido efetivamente e/ou completamente aplicadas na Bolívia, no Equador ou em qualquer outro Estado da América do Sul, o Buen Vivir cada vez mais aparece como uma alternativa a uma modernidade que vigorou por séculos na América, que sempre será desafiada por aqueles que não se veem incluídos nela.
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Data de Publicação: 19/02/2024
Autoria: Daria Fernandes Oliveira
Bibliografia
ACOSTA, Alberto. “El Buen Vivir como alternativa al desarrollo. Algunas reflexiones económicas y no tan económicas.” In Política y Sociedad. Vol. 52, Núm. 2 (2015): 299-330.
ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Editora Elefante, 2019.
Como citar este verbete:
OLIVEIRA, Daria Fernandes. "Buen Vivir". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
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G
GÊNERO
Pensar gênero a partir da decolonialidade nos convoca a estar em relação constante com a complexidade das perspectivas abertas pelo Sul Global. Traremos aqui um breve balanço de pontos importantes para pontuar essa discussão, iniciando pelo conceito de colonialidade de gênero. Em 2008, a filósofa argentina María Lugones publicou seu artigo “Colonialidade e Gênero”, partindo da investigação, realizada na Universidade do Estado de Nova York, de raça, classe, gênero e sexualidade em cruzamento com o conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, que a levou à afirmação do “sistema moderno-colonial de gênero” (LUGONES, 2020). Esse sistema de Lugones complexifica o modelo de eixos estruturais hierárquicos de Quijano e foca nos processos de entrelaçamento das categorias de raça e gênero, de modo a permitir acessar a profundidade das realidades históricas, sociais e culturais.
Reconhecendo a importância do Grupo Modernidade/Colonialidade para suas pesquisas, grupo do qual fez parte, Lugones afirma que Quijano percebe a intersecção de raça e gênero em termos estruturais amplos: raça e gênero ganham significados a partir do padrão de poder capitalista eurocêntrico e global. Quijano não teria levado em consideração que a permanência da diferença colonial pode estar fundada tanto na ordem capitalista econômica e na geopolítica do conhecimento, como também nas relações de gênero. Ou seja, não foi questionado o papel subalternizado das mulheres nessa forma de esquematizar as relações sociais e políticas, porque gênero era pensado a partir da binaridade dos sexos, como algo intrínseco ao sexo, e não como resultado de uma ação política colonial. Lugones fala de uma colonialidade de gênero complexificada, porque para ela as expressões de gênero marcadas, por exemplo, pela oposição entre as tarefas e comportamentos dos dois sexos, cabendo à mulher o ambiente doméstico separado do ambiente social e político, eram também um instrumento de dominação colonial que conseguiu, a partir da introdução do patriarcado, modificar significativamente comportamentos sociais que possuíam outra forma, entendimento e funcionamento. Para Cláudia de Lima Costa, “ao trazer a colonialidade do gênero como elemento recalcitrante na teorização sobre a colonialidade do poder, Lugones abre um importante espaço para a articulação entre feminismo e decolonialidade, cuja meta é lutar pelo poder interpretativo das teorias feministas a partir de um projeto de descolonização do saber eurocêntrico-colonial” (COSTA, 2022, p. 3).
A crítica de Lugones refere-se principalmente à sua leitura do conceito de interseccionalidade e à afirmação de que a introdução da divisão do trabalho pelo gênero se deu a partir do processo de colonização. Com relação à interseccionalidade, se distancia da proposta da defensora dos direitos civis estadunidense Kimberlé Crenshaw em dois pontos fundamentais: quando argumenta que a categoria mulher usada para pensar o processo de colonialidade de gênero exclui a mulher de cor, já que a inexistência da mulher negra é consequência da colonialidade do gênero; e pelo mal-entendido de sua interpretação de Crenshaw já amplamente registrado por várias teóricas, em que a lógica da teoria interseccional funciona como eixos vistos de forma separada, e por isso propõe um movimento para além da interseccionalidade rumo à fusão em seu feminismo decolonial (COSTA, 2022).
Com relação à divisão do trabalho pelo gênero, Lugones se utiliza os trabalhos da feminista nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí e da escritora feminista indígena Paula Gunn Allen para buscar fundamentar suas afirmações com relação à binarização das sociedades subalternizadas pelo processo colonizador, já que, segundo as autoras, o gênero não era um princípio organizador nas comunidades tribais, não existindo divisão sexual do trabalho. Essa leitura que Lugones faz tanto das autoras quanto da não existência da divisão sexual do trabalho foi contestada, por exemplo, por Rita Segato (2023), Julieta Paredes (2010), Catherine Walsh (2018) e Silvia Rivera Cusicanqui (2004), que forneceram amplas evidências da existência de estruturas patriarcais em que o gênero é utilizado como sistema opressor para a diferenciação social, mesmo sendo diferente do sistema ocidental, o que Segato denominou de patriarcado de menor intensidade, e Paredes de entroncamento de patriarcados.
Sobre esse ponto, a pesquisadora Claúdia de Lima Costa propõe ainda uma nova forma de abordagem, através da noção de cosmopolítica indígena, articulada pela antropóloga peruana Marisol de La Cadena (2010) e de tradução como equivocação, de Eduardo Viveiros de Castro (2004). Segundo Costa, essas abordagens:
[…] abrem a possibilidade de entendermos o gênero, tal qual outras categorias da diferença, como equivocações: isto é, como classificações que possuem diferentes representações a partir de perspectivas pluriversais. Se decidirmos por esse caminho, pondera Costa, teremos que nos engajar no difícil processo de tradução cultural, evitando as armadilhas da colonialidade da linguagem e da tradução colonial. Para permitir a existência de mundos heterogêneos e de categorias equívocas, o trabalho de tradução se faz necessário. Em outras palavras, o equívoco exige tradução: é a partir de traduções politicamente motivadas e infiéis, que a pluralidade de mundos se interconecta sem se tornarem comensuráveis. Resumidamente, gênero pode significar diferentes coisas a partir de diferentes formações onto-epistêmicas (COSTA, 2022, p. 4-5).
No entanto, apesar das críticas às formulações de Lugones nesse ponto, é inegável que a imposição de um sistema europeu de gênero tem efeitos profundos até o presente, sendo, nesse sentido, a conceituação de Lugones bastante útil por situar o gênero como parte indissociável da lógica genocida da colonialidade do poder. Abordar o gênero pela perspectiva decolonial é sempre um processo, ele está sempre em elaboração, ele não se fecha porque ele é movimento constante, e dessa maneira mantém sua força para questionar as institucionalizações.
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Data de Publicação: 02/04/2024
Autoria: Priscila Miraz de Freitas Grecco
Bibliografia
COSTA. Cláudia de Lima. Interrogando Lugones: reflexões sobre um debate inconcluso. In: Revista Estudos Feministas, vol. 30, núm. 1, 2022.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. “La noción de ‘derecho’ o las paradojas de la modernidad postcolonial: indígenas y mujeres en Bolivia”. Revista Aportes Andinos, p. 1-9, 2004.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feninsta hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar o Tempo, 2020.
PAREDES, Julieta. Hilando fino desde el feminismo comunitário. La Paz, Bolivia: Deutscher Entwicklungsdienst / Comunidad Mujeres Creando Comunidad, 2010.
SEGATO, Rita L. Género, política y hibridismo en la transnacionalización de la cultura Yorubá. Estudos Afro-Asiáticos, v. 25, n. 2, p. 333–363, 2003.
WALSH, Catherine E. Shifting the geopolitics of critical knowledge: decolonial thought and cultural studies ‘others’ in the Andes. Cultural Studies, v. 21, n. 2-3, p. 224-238, 2007.
Como citar este verbete:
GRECO, Priscila Miraz de Freitas. "Gênero". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h ISSN 2764-9393
ISSN 2764-9393
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SANTIDADE
Santidade é uma “expressão” ou “termo” comumente utilizado nas narrativas missionárias e crônicas quinhentistas, que nos século XVI e XVII designavam movimentos indígenas de cunho político e religioso, os quais desenvolveram formas de resistência e ação política indígena ao colonialismo. Ao desafiar a catequização e propor um “outro mundo possível” em que a experiência do cativeiro seria revertida para os colonizadores, estes movimentos causaram profundo desassossego a senhores de engenho, autoridades régias e representantes eclesiásticos que viam na sua propagação uma ameaça aos empreendimentos coloniais.
Nas fontes missionárias e inquisitoriais que se referem às Santidades, há uma polissemia de sentidos e significados, há também uma pluralidade de percepções e experiências desveladas pelos povos indígenas que construíram, adeririam e propagaram estes movimentos. Na carta anual dos jesuítas de 1585, a palavra Sanctitas, em latim, foi empregada “para se referir a uma experiência religiosa – o estado de exaustão ou a loucura que os seguidores da Santidade de Jaguaripe alcançavam através de seus rituais” (METCALF, 1999, p. 1545). Nesse sentido, a Santidade também serviu para caracterizar o estado de espírito em que se encontravam os adeptos do culto ao defumarem a erva santa. Descreve a carta anual: “Quando essas agitações são seguidas pelo silêncio de cansaço e, finalmente, eles são lavados com água e santificados [sanctus], e quem quer que tenha produzido os sinais mais horríveis é visto como o que atingiu maior santidade [Sanctitas] (Carta ânua, 1585 apud. METCALF, 1999, p. 1545).
Alida Metcalf esclarece que “nas fontes da Inquisição, Santidade também tem um significado religioso. Ao longo das fontes, refere-se tanto para o nome da seita ou ao estado de êxtase religioso realizado pelos crentes”. Esse significado é identificado nos testemunhos dos denunciantes e confidentes que “usaram Santidade para nomear a seita, mas qualificaram o uso da palavra”. O mameluco Gonçalo Fernandes teria afirmado “que Santidade era o nome que os crentes deram a sua religião: ele se referiu a ‘seu abuso [abusão] e idolatria que eles chamavam de Santidade’”. Ao referir-se “ao estado alcançado pelos crentes depois de beber o fumo sagrado, orando e falando em sua língua ‘inventada’”, Fernandes também empregou o termo Santidade (Idem, p. 1545-1546). Assim descreveu o mameluco: “eles beberam a referida fumaça, até que caíam bêbados com ela, dizendo que com a fumaça o espírito da Santidade entrava neles” (CONFISSÕES, 1997 [1592], p. 72). Através da defumação, que levava o devoto ao alcance da Santidade, era possível acessar um “fogo novo”, ou tempo novo. A possibilidade de um novo mundo era experenciada nesses cultos.
O alcance ou a restauração da terra sem males estaria sempre no horizonte cosmológico dos povos tupi-guaranis e seria com as suas cerimônias, seus rituais, crenças e modos de vida que eles poderiam reconstruí-la ou chegar em sua morada. Essa possibilidade era discernida coletivamente e nas relações recíprocas.
As notícias sobre a mais documentada Santidade começaram a circular por volta de 1580 quando Antônio Tamandaré, um caraíba, que era um líder espiritual, mas que em determinados contextos também agregava liderança política, fugiu de um aldeamento jesuítico em Tinharé, na região de Cairu, para o sertão do Orobó, localizado no centro-norte da Bahia entre os atuais munícipios de Ipirá, Itaberaba e Serra Petra. Neste sertão, Antônio começou a propagar sua mensagem contra a catequese e acabou por atrair muitos outros indígenas, que construíram uma comunidade na qual desfrutavam de certa liberdade para prática de cultos, ritos e costumes que invertiam o catolicismo aprendido nos aldeamentos. Era um processo de apropriação, mas sobretudo de contestação, dado o contexto em que estavam inseridos, já que a maioria dos membros desta Santidade eram fugitivos de aldeamentos e fazendas de engenhos, esses últimos majoritariamente escravizados tanto da terra (escravizados indígenas) quanto de Guiné (escravizados africanos). Após algum tempo a Santidade foi transferida para o engenho do senhor de engenho Fernão Cabral de Ataíde, que prometeu terras para os indígenas que descessem para a sua fazenda.
Profundamente incomodado com a propagação da Santidade, o então governador geral Manuel Teles de Barreto enviou uma expedição armada para destruir a Santidade. Mesmo com a contenção do principal grupo que estava em Jaguaripe, a Santidade já tinha se propagado em outros espaços, como Matoim, Sergipe do Conde, Paripe e Cachoeira, e continuou (r)existindo até meados do século XVII.
Em nossa perspectiva a Santidade ou as Santidades não são pensadas apenas como movimentos, as enxergamos como experiências históricas políticas protagonizadas pelos indígenas para a reinvenção de suas liberdades, em um processo no qual as cosmovisões e perspectivas indígenas, tão distintas do ideal cristão ocidental, foram ressignificadas e “as novas estruturas não se consolidaram de forma assimilacionista, como muitas vezes fomos levados a pensar”. Todo esse processo desencadeou-se por meio de conflitos e embates “a partir das próprias dificuldades na dinâmica de interação cultural e compreensões de mundos, assim, formas de enfrentamento foram construídas” e reelaboradas (JESUS, 2021, p. 27). Foram, portanto, expressão máxima de uma “luta ritualística” que atravessou séculos da nossa história.
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Data de Publicação: 19/09/2024
Autoria: Jamille Macedo Oliveira Santos
Bibliografia
CALASANS, José. Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe. Salvador: EDUNEB, 2011.
JESUS, Josene Antonia de Paula Neres de. O que há de indígena em nós? O ressoar da Santidade de Jaguaripe no Ensino de História. Dissertação de mestrado, Universidade do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus, 2021.
METCALF, Alida C. “Millenarian Slaves? The Santidade de Jaguaripe and Slave Resistance in the Americas”. In: The American Historical Review, Vol. 104, nº 5 (Dec., 1999), p. 1531-1559.
SANTOS, Jamille Macedo Oliveira. Ecos da liberdade: profetismo indígena e protagonismo tupinambá na Bahia quinhentista. Salvador: EDUFBA, 2019.
SZTUTMAN, Renato. O Profeta e o Principal: a Ação Política Ameríndia e seus personagens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1995.
_____. (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Como citar este verbete:
SANTOS, Jamille Macedo Oliveira. "Santidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/q-r-s-t ISSN 2764-9393
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