ABECEDÁRIO DA DESCOLONIZAÇÃO
ISSN: 2764-9393
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Os Saberes Indígenas, considerando-os necessariamente no plural, podem ser entendidos como uma prática vivencial que, além de permitir interagir com o mundo que rodeia aos ameríndios, torna possível habitar o tempo-espaço onde transcorre a existência. E, para que isso aconteça, é necessário considerar a noção de Mundo, tanto quanto a ideia e a prática de interagir, do modo mais abrangente possível. O Mundo que habitam os ameríndios é composto por variadas dimensões da existência. As mesmas podem ser articuladas entre si por meio de diversas práticas próprias dos xamãs, além de ser possível, para eles, se deslocar por diferentes cronotopos, conectando, e trazendo à tona, Saberes próprios de regimes históricos diversos. Contudo, os Saberes Indígenas não são uma "propriedade" exclusiva dos xamãs; todos interagem como partes daqueles Saberes e, como em toda sociedade, existem especialistas como os anciãos. Portanto, os Saberes Indígenas, para que possam ser entendidos por nós que não somos indígenas, e que fomos educados pela "máquina de guerra" da Ciência do Ocidente, com a sua proposta autopoiética (Deleuze & Guattari, 2017), necessitam de uma indefinição. Noção essa que permite sentir/pensar a prática da Ciência e da (nossa) existência, sobretudo com aqueles considerados outros e, claro, com a Natureza.
Infinir é uma forma distinta de ver/reconhecer, e de considerar, aquilo que pode ser enxergado, partindo da avaliação dos mecanismos, meios e formas de observar alguma manifestação daquele Mundo que nos rodeia. Infinir é, em segundo termo, uma forma de pôr em movimento aquilo que desejamos descrever (Holbraad, 2015, 131). É uma tecnologia sobre como intervir, sobre como fazer parte de uma descrição para que a mesma, a priori, não acabe com o movimento que um fenômeno x apresenta para nós. Toda observação é uma intervenção e aquela prática não tem que fechar os nossos sentidos, pelo contrário. A descrição tem que apresentar para nós, ou pelo menos tentar apresentar, as relações que acontecem/que fazem parte do entramado que sustenta os fenômenos sociais ameríndios para, a partir dela, poder pensar na ação mútua que tem lugar entre quem realiza uma ação - com uma intencionalidade determinada - e quem experimenta sobre si mesmo aquela ação, gerando como resultado uma transformação mútua. Uma mudança de sentido que acontece sobre pessoas, espaços, plantas e animais, assim como não-humanos, a partir das interconexões que podemos verificar no devir de uma prática cotidiana, ou bem atípica, mas que responde a uma necessidade, sobre a qual atuam os Saberes Indígenas. Portanto, podemos considerar os Saberes Indígenas como uma reflexão ontológica que visa explicar o seu lugar (o lugar deles) - e o lugar dos outros -, e as relações com o Mundo.
Os Saberes Indígenas, para serem abordados de melhor modo, devem levar em consideração a indicação de Daniel Munduruku sobre a necessidade de "esclarecer um pouco sobre o conhecimento indígena da natureza para, em seguida, dizer algo sobre a natureza do conhecimento indígena" (2020, 71), formulação que não se trata de um trava-línguas. Pelo contrário, trata-se de uma indicação de sentido sobre a relação existente, existencial e iniludível entre Natureza e Pessoa. Relação essa mediada pelo corpo e pelas imagens - o duplo do qual fala a Antropologia -, as mesmas que permitem conhecer tudo aquilo que existe. Portanto, os Saberes Indígenas só podem ser compreendidos como uma interação constante entre a Natureza e os sujeitos; uma interação que, no caso de ser dividida ou fatiada em porções, tal como nós consideramos os saberes e conhecimentos, v. g. sociais, econômicos, etc., perderia todo sentido, dado que para as populações ameríndias tudo está conectado entre si. O resultado dessa interconexão/ação é que os Saberes Indígenas são dinâmicos, pois acompanham os movimentos da Natureza, e são portadores de uma capacidade enorme para detectar anomalias nela. A observação dos ciclos naturais, durante milênios, configurou uma base de dados ampla demais que torna possível identificar, rapidamente, aqueles fatores que atrapalham as relações das quais falávamos anteriormente. Uma configuração histórica da qual partem as ações que visam alcançar um equilíbrio ou afetar as partes envolvidas. Os Saberes, então, são parte de uma Memória dinâmica que não se replica a si mesma - não é autopoiética. Se trata de uma Memória, de um saber-fazer, que disponibiliza todos os seus recursos para poder atuar. Os Saberes Indígenas são uma forma de estar – atuar no Mundo.
Na conformação, circulação e reprodução dos Saberes Indígenas - considerando a reprodução como um processo dinâmico-, mutatis mutandis, a oralidade tem um lugar privilegiado. Aqueles que conformam a "memória viva", narram para os seus netos, em rodas de conversa, que desafiam noções de tempo ocidentais, como o território é a base que permite conhecer sobre si mesmo e sobre os seus outros. “O território é o lugar onde se tem uma rede de relações [e, ...] por isso, é sagrado” (Kambeba, 2021, 134), assim como os Saberes produzidos a partir dele. Por isso, não é possível que os Saberes Indígenas continuem sendo produzidos se os indígenas são expulsos do seu território. Se o território não existe, não pode acontecer o Saber; e claro, mais uma vez temos que pensar no território como uma noção, uma categoria em aberto, que vai muito além de porção física que podemos enxergar.
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Data de Publicação: 14/02/2023
Autoria: Carlos Daniel Paz
Bibliografia
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 2017.
HOLBRAAD, Martin. Tres provocaciones ontológicas. Ankulegi. Revista de Antropología Social. Asociación Vasca de Antropología. Nro. 18; 2015, pp. 127-139. Disponível em: https://aldizkaria.ankulegi.org/index.php/ankulegi/article/view/69
KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do Saber Ancestral. São Paulo: UK’A, 2021.
MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando, 1. Sobre saberes e utopias. Lorena: UK’A, 2020.
Como citar este verbete:
PAZ, Carlos Daniel. "Saberes Indígenas". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/q-r-s-t
ISSN 2764-9393
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SANTIDADE
Santidade é uma “expressão” ou “termo” comumente utilizado nas narrativas missionárias e crônicas quinhentistas, que nos século XVI e XVII designavam movimentos indígenas de cunho político e religioso, os quais desenvolveram formas de resistência e ação política indígena ao colonialismo. Ao desafiar a catequização e propor um “outro mundo possível” em que a experiência do cativeiro seria revertida para os colonizadores, estes movimentos causaram profundo desassossego a senhores de engenho, autoridades régias e representantes eclesiásticos que viam na sua propagação uma ameaça aos empreendimentos coloniais.
Nas fontes missionárias e inquisitoriais que se referem às Santidades, há uma polissemia de sentidos e significados, há também uma pluralidade de percepções e experiências desveladas pelos povos indígenas que construíram, adeririam e propagaram estes movimentos. Na carta anual dos jesuítas de 1585, a palavra Sanctitas, em latim, foi empregada “para se referir a uma experiência religiosa – o estado de exaustão ou a loucura que os seguidores da Santidade de Jaguaripe alcançavam através de seus rituais” (METCALF, 1999, p. 1545). Nesse sentido, a Santidade também serviu para caracterizar o estado de espírito em que se encontravam os adeptos do culto ao defumarem a erva santa. Descreve a carta anual: “Quando essas agitações são seguidas pelo silêncio de cansaço e, finalmente, eles são lavados com água e santificados [sanctus], e quem quer que tenha produzido os sinais mais horríveis é visto como o que atingiu maior santidade [Sanctitas] (Carta ânua, 1585 apud. METCALF, 1999, p. 1545).
Alida Metcalf esclarece que “nas fontes da Inquisição, Santidade também tem um significado religioso. Ao longo das fontes, refere-se tanto para o nome da seita ou ao estado de êxtase religioso realizado pelos crentes”. Esse significado é identificado nos testemunhos dos denunciantes e confidentes que “usaram Santidade para nomear a seita, mas qualificaram o uso da palavra”. O mameluco Gonçalo Fernandes teria afirmado “que Santidade era o nome que os crentes deram a sua religião: ele se referiu a ‘seu abuso [abusão] e idolatria que eles chamavam de Santidade’”. Ao referir-se “ao estado alcançado pelos crentes depois de beber o fumo sagrado, orando e falando em sua língua ‘inventada’”, Fernandes também empregou o termo Santidade (Idem, p. 1545-1546). Assim descreveu o mameluco: “eles beberam a referida fumaça, até que caíam bêbados com ela, dizendo que com a fumaça o espírito da Santidade entrava neles” (CONFISSÕES, 1997 [1592], p. 72). Através da defumação, que levava o devoto ao alcance da Santidade, era possível acessar um “fogo novo”, ou tempo novo. A possibilidade de um novo mundo era experenciada nesses cultos.
O alcance ou a restauração da terra sem males estaria sempre no horizonte cosmológico dos povos tupi-guaranis e seria com as suas cerimônias, seus rituais, crenças e modos de vida que eles poderiam reconstruí-la ou chegar em sua morada. Essa possibilidade era discernida coletivamente e nas relações recíprocas.
As notícias sobre a mais documentada Santidade começaram a circular por volta de 1580 quando Antônio Tamandaré, um caraíba, que era um líder espiritual, mas que em determinados contextos também agregava liderança política, fugiu de um aldeamento jesuítico em Tinharé, na região de Cairu, para o sertão do Orobó, localizado no centro-norte da Bahia entre os atuais munícipios de Ipirá, Itaberaba e Serra Petra. Neste sertão, Antônio começou a propagar sua mensagem contra a catequese e acabou por atrair muitos outros indígenas, que construíram uma comunidade na qual desfrutavam de certa liberdade para prática de cultos, ritos e costumes que invertiam o catolicismo aprendido nos aldeamentos. Era um processo de apropriação, mas sobretudo de contestação, dado o contexto em que estavam inseridos, já que a maioria dos membros desta Santidade eram fugitivos de aldeamentos e fazendas de engenhos, esses últimos majoritariamente escravizados tanto da terra (escravizados indígenas) quanto de Guiné (escravizados africanos). Após algum tempo a Santidade foi transferida para o engenho do senhor de engenho Fernão Cabral de Ataíde, que prometeu terras para os indígenas que descessem para a sua fazenda.
Profundamente incomodado com a propagação da Santidade, o então governador geral Manuel Teles de Barreto enviou uma expedição armada para destruir a Santidade. Mesmo com a contenção do principal grupo que estava em Jaguaripe, a Santidade já tinha se propagado em outros espaços, como Matoim, Sergipe do Conde, Paripe e Cachoeira, e continuou (r)existindo até meados do século XVII.
Em nossa perspectiva a Santidade ou as Santidades não são pensadas apenas como movimentos, as enxergamos como experiências históricas políticas protagonizadas pelos indígenas para a reinvenção de suas liberdades, em um processo no qual as cosmovisões e perspectivas indígenas, tão distintas do ideal cristão ocidental, foram ressignificadas e “as novas estruturas não se consolidaram de forma assimilacionista, como muitas vezes fomos levados a pensar”. Todo esse processo desencadeou-se por meio de conflitos e embates “a partir das próprias dificuldades na dinâmica de interação cultural e compreensões de mundos, assim, formas de enfrentamento foram construídas” e reelaboradas (JESUS, 2021, p. 27). Foram, portanto, expressão máxima de uma “luta ritualística” que atravessou séculos da nossa história.
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Data de Publicação: 19/09/2024
Autoria: Jamille Macedo Oliveira Santos
Bibliografia
CALASANS, José. Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe. Salvador: EDUNEB, 2011.
JESUS, Josene Antonia de Paula Neres de. O que há de indígena em nós? O ressoar da Santidade de Jaguaripe no Ensino de História. Dissertação de mestrado, Universidade do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus, 2021.
METCALF, Alida C. “Millenarian Slaves? The Santidade de Jaguaripe and Slave Resistance in the Americas”. In: The American Historical Review, Vol. 104, nº 5 (Dec., 1999), p. 1531-1559.
SANTOS, Jamille Macedo Oliveira. Ecos da liberdade: profetismo indígena e protagonismo tupinambá na Bahia quinhentista. Salvador: EDUFBA, 2019.
SZTUTMAN, Renato. O Profeta e o Principal: a Ação Política Ameríndia e seus personagens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1995.
_____. (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Como citar este verbete:
SANTOS, Jamille Macedo Oliveira. "Santidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/q-r-s-t ISSN 2764-9393
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