ABECEDÁRIO DA DESCOLONIZAÇÃO
ISSN: 2764-9393
ISSN: 2764-9393
EDIÇÃO 2 (VOL. 1 2023)
A
Referência intelectual e política nos movimentos negros e de mulheres no Brasil e através da diáspora, Lélia Gonzalez (Belo Horizonte, 1935 — Rio de Janeiro, 1994) propõe a categoria político-cultural da amefricanidade de modo a abrir caminhos para perceber a especificidade da constituição do território que ela renomeia de Améfrica Ladina. Entendendo a linguagem como epistêmica, essa reinscrição possibilita um descentramento dos métodos eurocentrados de pensar o nosso presente herdado, e ampara uma releitura da história da região em pretugûes – o nome que ela dá para a língua falada no Brasil, que carrega as marcas da africanização da sociedade brasileira.
É essa perspectiva que Gonzalez traz para repensar a formação histórica do nosso país em conjunturas regionais e transnacionais, redimensionando as heranças indígenas, africanas e europeias que nos constituem – que não começam, nem terminam, com as fronteiras erguidas pelo projeto colonial europeu de base escravista. Aqui se encontra um convite para pensar diasporicamente, e ampliar o nosso campo de visão com uma nova ótica – a da amefricanidade. Só reconhecendo a presença negada, embranquecida, reapropriada e aniquilada das contribuições de povos indígenas e africanos em resistência desde o início do projeto moderno colonial, se torna possível recentrar os métodos de análise rumo à descolonização efetiva das estruturas vigentes de poder, saber e ser.
Ao nos localizar na Améfrica Ladina, Gonzalez rompe com uma leitura do chamado Novo Mundo centrada na perspectiva do Velho Mundo, cuja chamada latinidade se firmou em disputas imperiais contra forças anglo-saxônicas no continente europeu. Sua rearticulação no outro lado do Atlântico se deu através dos interesses de conservar um elo possível com a alvejada civilização europeia, por intermédio de uma elite dirigente local em busca de governabilidade, que, na época da consolidação do Estado-nação e processos decorrentes da construção de uma identidade nacional, era mais instruída na história, geografia, línguas e disciplinas da Europa do que naquelas do nosso próprio continente.
Essa reinscrição, que se vale da política de autonomeação como base para políticas de autodeterminação e respeito à pluralidade da sociedade brasileira, também confronta o essencialismo que relega o país a uma espécie de não-lugar ou entre-lugar, em vez de uma localização própria, uma localização amefricana. Historicamente falando, não tem sentido pensar as ideias fora do lugar, mesmo diante de imposições exógenas que se fazem presentes em qualquer projeto da colonialidade imperialista.
Por essa categoria, torna-se possível compreender o processo histórico encadeado pela colonização e colonialidade vivenciada no Brasil na base de uma disposição afrocentrada, que enfrenta as hierarquizações, desvalorizações e apagamentos do modo eurocentrado com que continuamos a narrar a história moderna colonial global. Nas palavras de Gonzalez:
As implicações políticas e culturais da categoria amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular).
Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. [...] Seu valor metodológico, a meu ver, está no fato de permitir a possibilidade de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo (GONZALEZ, 1988, pp. 76-77).
Atenta aos processos históricos de “adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas”, uma abordagem amefricana nos permite acessar as complexidades das relações de poder que não se resumem à lógica binária de ação ativa ou passiva, registrando cada ação nos termos que lhe cabe em contexto e que estruturam o campo político de im/possibilidades. Olhando para a experiência diaspórica fruto dos processos de colonização na Améfrica Ladina, alargamos o nosso campo de visão para conjugar as relações internas e externas, ou mais precisamente, as relações inter/nacionais da constituição de nosso país e do sistema-mundo no qual se insere.
O prisma da amefricanidade não se vale de encontrar o que sobreviveu de civilizações africanas do outro lado do oceano, como nos alerta Gonzalez, mas assume como ponto de partida a criação afrocentrada de novas formas na diáspora que foi gerada pelas práticas de resistência e reinvenção na luta contra a escravidão, o genocídio e a exploração colonial no continente amefricano. Em suas palavras: “foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação” (GONZALEZ, 1988, p. 138).
Tal recentramento conceitual, metodológico e historiográfico gera re/conhecimentos que têm como base a memória de povos engajados nesta luta por liberdade e uma efetiva descolonização nos territórios amefricanos. Deste modo, recomeçamos a narração da história brasileira afirmando a percepção do Quilombo dos Palmares (1595-1695) como uma das primeiras sociedades registradas, efetivamente democrática na Améfrica Ladina. O berço da democracia brasileira.
Amefricanizar a nossa história é trabalhar todas as implicações políticas de desafiar o sujeito e objeto do conhecimento tido como legítimo pela academia moderna colonial, em uma sociedade regida por o que a Gonzalez identifica como o racismo por denegação e os seus mitos de democracia racial, como ideologias de branqueamento que mascaram as ações e omissões da violência racial que fundou os Estados-nações da região.
Quando enfrentamos os termos por meio dos quais os nossos territórios foram forjados na Améfrica Ladina, em bom pretuguês, como Gonzalez diria, torna-se imperativo focar o racismo/sexismo epistêmico que invalida qualquer perspectiva que não reflita uma visão eurocentrada de mundo. O que o Samba Enredo da Mangueira (DOMÊNICO et al, 2019) colocou em xeque, em plena Sapucaí no Carnaval de 2019, como “o avesso do mesmo lugar”, convidando à toda sociedade para refletir sobre “a história que a História não conta”.
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Data de Publicação: 28/03/2023
Autoria: Andréa Gill e Thula Pires
Bibliografia
DOMÊNICO, Deivid; MIRANDA, Tomaz; MAMA; BOLA, Marcio; OLIVEIRA, Ronie; FIRMINO, Danilo. Samba Enredo 2019: História pra Ninar Gente Grande. Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. 2019. Disponível em: https://mangueira.com.br/site/sambas-enredo/.
GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. In Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1988, n. 92/93, pp. 69-82.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Coletânea organizada por Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as Rosa Negras. Coletânea organizada pela União de Coletivos Pan-Africanistas - UCPA. Diáspora Africana, 2018.
Como citar este verbete:
GILL, Andréa; PIRES, Thula. "Amefricanidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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Pela etimologia da palavra, o significado de Ancestralidade refere-se ao que é ancestral. A nossa raiz ancestral, o que é profundo, ou seja, o que é depreendido como sendo do “passado”. Ampliaremos essa terminologia para “Ancestralidade Indígena”, assim, chegaremos a um conceito histórico carregado de significados, pois a Ancestralidade não deve ser compreendida como um sinônimo do passado, mas sim como um sentimento intrínseco e extrínseco expresso pelos “sujeitos históricos” ao longo do tempo e no tempo presente.
Conceitualmente, quando ampliamos a nossa capacidade de interpretação para a terminologia Ancestralidade Indígena, como um conceito que, conforme entendemos em Michel-Rolph Trouillot, não são palavras, pois, entre os dois, “há camadas de teoria acumulada” (TROUILLOT, 2016, p. 18), a Ancestralidade Indígena passa a ser um “juntado” de experiência que se modifica ao longo do Tempo, visto que, segundo Reinhart Koselleck, o Tempo Histórico “pode ser deduzido da coordenação variável entre experiência e expectativa” (KOSELLECK, 2006, p. 309). Ou seja, das nossas histórias e/ou memórias. Nós, povos indígenas, temos uma ligação bastante profunda com essas experiências que passam a significar a nossa ancestralidade.
Nesse sentido, há algumas possibilidades que nos permitem compreender a Ancestralidade Indígena. Seja pelas nossas experiências históricas acumuladas ao longo do tempo, pela memória de pertencimento que é “construída, (re)construída e repassada de geração para geração numa interação também cosmológica do nosso 'Eu"' (XOKÓ SANTOS, 2022, p.4); pelas experiências culturais e espirituais (modos de enxergar as coisas ao nosso redor); pelas experiências políticas e sociais, a exemplo, das lutas pelos territórios indígenas que são marcadores identitários. Assim, conforme Adilbênia Freire Machado, a “ancestralidade é o jeito de ser, reconhecendo-se ser essência para a existência do mundo em que vivemos. É reconhecer-se construtor das nossas realidades, daquilo que existe. Do que somos! Ancestralidade" (MACHADO, 2014, p. 139). Ou melhor, tudo passa a ser ancestralidade.
A Ancestralidade Indígena está nas memórias individuais, manifestando-se nos nossos sentimentos de pertencimento e, também, de forma coletiva. Em relação a essa última característica, há questões singulares, como a aceitação e reconhecimento do grupo étnico e/ou social pelo qual indicamos o nosso pertencimento ancestral. Assim, para a parente Macuxi Julie Dorrico, a “voz coletiva de reafirmação da identidade indígena surge como elemento de referência à coletividade e à ancestralidade. A voz coletiva se imbrica à individual de forma tal que […], ressoa a voz de toda uma tradição” (DORRICO, 2015, p. 46). Nesse sentido, o sujeito tende a ser reconhecido pelo grupo histórico. Esse reconhecimento se dá pelas vivências cotidianas, familiares e coletivas, pelas práticas tradicionais, pelas narrativas históricas e orais. Ou seja, pelo modo ser do coletivo.
Ao conectar com as nossas memórias e com as nossas histórias, a Ancestralidade Indígena, o nosso “Eu” pertencimento, indica quem somos: é a nossa autoafirmação identitária. Assim, cada ancestralidade tem suas particularidades e suas subjetividades psicológicas — uma é mais espontânea, outra mais silenciosa. É justamente essa última que só aflora em tempo de barbárie, como nos casos das Retomadas Territoriais e de autoafirmação identitária indígena. A parente Eliane Potiguara, pergunta: “por que aguentamos tanta violência subliminar? A intuição é a mensageira da alma; a intuição é a força do conhecimento tradicional, ancestral. A tocha da ancestralidade deve ser trabalhada dentro de cada um de nós, pois, ela é riquíssima em conhecimentos, sejamos indígenas, negros, amarelos ou brancos” (POTIGUARA, 2018, p. 90). É justamente essa ancestralidade que desabrocha como uma flor da caatinga para nos fazer lutar e (re)existir ao cotidiano da colonialidade que trabalha diariamente para nos exterminar. A força e o conhecimento que temos, vêm da ancestralidade. É ciência!
Quando falamos em Ancestralidade Indígena, estamos nos referindo a toda uma vida de história, de memória e de luta por quem somos e lutamos. Luta pelos nossos direitos sociais, culturais e territoriais, pois, este é também um marcador identitário: nasci naquele território. O território que nos cria, que nos alimenta. A nossa Mãe Terra, ela é ancestralidade!
A parente Daniely Silva dos Santos Lima Xokó nos ajuda a esclarecer esse sentido, a Mãe Terra “é a nossa raiz, a razão de nossa existência […], possuímos uma ligação intensa com a terra, pois, ela tem uma forte representação sagrada em nossas vidas […]. A terra também é fonte de autoafirmação” (XOKÓ LIMA, 2012, p. 48). Ou seja, o nosso vínculo com esse lugar de história e memória, um marcador de nossa identidade indígena, como podemos perceber na música/poesia de Paulo Acácio dos Santos Xokó, quando expressa a saudade da nossa terra ancestral, assim ele canta e encanta: “Olha o sol vem saindo / Com raios da bela aurora / Esta é a terra querida / Por nós preferida / É a terra por vitória […]” (XOKÓ SANTOS, 1980, p. 3). É a terra ancestral.
A Ancestralidade Indígena ataca os nossos sentimentos, emoções, ilusões e perspectiva futura no tempo e espaço, é um movimento sincrônico e diacrônico que se liga ao passado e ao presente, “possibilitando um futuro. Conectando o visível e o invisível […], ultrapassam o tempo, reconhecem sua origem e encantam-se. Ancestralidade é uma teia constituída de movimento, pensamento, sentimento, ação” (MACHADO, 2014, p. 169). Toda (re)existência que temos, as estratégias articuladas nos Movimentos Indígenas, o nosso protagonismo, vem da ancestralidade que nos guia diariamente. Quando nos falam: os povos indígenas têm muito a nos ensinar, então! Esse é transmitido pela nossa ancestralidade. Eduardo David de Oliveira, enfatiza que a ancestralidade “é enigma-mistério e revelação-profecia. Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo de interpretar e produzir a realidade. Por isso a ancestralidade é uma arma política. Ela é um instrumento ideológico (conjunto de representações) que serve para construções políticas e sociais” (OLIVEIRA, 2005, p. 258).
Portanto, como pronuncia Ailton Krenak: “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p. 9). Assim, entendemos que a Ancestralidade é o ponto central do nosso equilíbrio universal, falamos da nossa cosmologia, do nosso Bem Viver, é Ancestralidade Indígena!
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Data de Publicação: 23/05/2023
Autoria: Ivanilson Martins dos Xokó Santos
Bibliografia
DORRICO, Julie Stefane Peres. Autoria e performance nas narrativas míticas indígenas Amondawa. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Programa de Pós- Graduação Mestrado Acadêmico em Estudos Literários (MEL), Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Porto Velho, 2015.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução do original: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Revisão da tradução: César Benjamin. - Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e encantamento como inspirações formativas: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira. 2014. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2014.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da Educação Brasileira. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 2005.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Grumin, 2018.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: huya, 2016.
XOKÓ LIMA, Daniely Silva dos Santos. "A importância da terra para o povo Xokó". In: ALMEIDA, Eliene Amorim de; MASCARENHAS, Maria da Conceição, (Org.). Os Xokó: História de luta e resistência. Aracaju: SEED - Secretaria de Estado da Educação, 2012.
XOKÓ SANTOS, Ivanilson Martins dos. História/Memória e Narrativa Decolonial: identidade cultural e diáspora indígena Xokó (1978 – 2021). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, v. 2, n. 51, p. 339 a 362, 15 jun. 2022. Disponível em: <https://www.seer.ufs.br/index.php/rihgse/issue/view/1173>. Acesso em: 10 de julho de 2022.
XOKÓ SANTOS, Paulo Acácio dos. A ilha da vitória: caminhada dos Xokó. Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). “Povos Indígenas do Brasil”. Instituto Socioambiental (ISA). Código de Referência: XOD00016. Data da Produção. 28/03/1994 [1980].
Como citar este verbete:
XOKÓ SANTOS, Ivanilson Martins dos. "Ancestralidade indígena". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
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A concepção de Antropoceno surge como nomenclatura para definir uma nova época geológica, posterior ao Holoceno, sendo caracterizada pelo enquadramento da humanidade enquanto modificadora do planeta, assumindo papel de agente geológico. O termo foi apresentado pelos químicos Paul Crutzen e Eugene Stoermer. Tais autores apontam seu marco no final do século XVIII, a partir das crescentes concentrações globais de dióxido de carbono e metano, junto ao projeto da máquina a vapor. Como apontado por Rodrigo Turin, são diversas as datas potenciais para o início desta época geológica. Assim, enquanto alguns estudiosos destacam a crescente dos combustíveis fósseis e a revolução industrial, outros chamam atenção para o século XVI com a expansão marítima, colonização e início de um “sistema-mundo” moderno. Dessa forma, percebemos diferentes prognósticos e planos de historicidade distintos: “E cada uma delas traz implicações políticas diferentes ao presente, desenhando formas e horizontes de ação possíveis, algumas mais convergentes ou divergentes das outras.” (TURIN, 2022, p.148).
O estudo do Antropoceno faz parte de um campo interdisciplinar e não apenas geológico ou das ciências da natureza. Na historiografia, ele aparece desde a década de 1970, a partir da história ambiental, na dimensão da relação entre natureza e sociedade. Entre os nomes de destaques vinculados a tal conceito, destacamos o do historiador indiano Dipesh Chakrabarty. Com fortes influências das teorias subalternas e pós-coloniais, Chakrabarty discorre sobre a relação entre meio ambiente e história, argumentando que é preciso incorporar a dimensão ambiental à narrativa histórica, considerando as consequências do impacto humano no planeta. O autor explora, entre outras questões, a noção de habitabilidade como um termo técnico que se refere a toda vida multicelular, para além da vida humana no planeta.
Alguns pesquisadores trabalham com concepções críticas ao redor do conceito de Antropoceno, como no caso de Donna Haraway. A autora compreende que o sistema de plantação de larga escala baseado no trabalho escravo, as plantations, seriam um ponto de inflexão. Assim, é uma das que propõe a ideia de Plantationoceno, onde o agronegócio, monocultura e a produção global de carne seguem entre as principais influências para tamanha modificação planetária. A partir de tal perspectiva, tal modificação no planeta não seria algo produzido enquanto um ato da “espécie” humana como um todo, mas responsabilidade de uma parcela da população que acumula riqueza e o poder de transformação global. Por sua vez, Jason Moore defende o conceito de Capitaloceno, já que o capitalismo seria o responsável pela crise ecológica contemporânea: “O capitalismo definitivamente mudou a dinâmica de apropriação da natureza de forma dramática, ao submeter essa dominação à lógica do capital e justificá-la por uma ideologia do progresso.” (MARQUES, 2023, P.53).
Rodrigo Turin compreende que a ideia de habitabilidade de Chakrabarty veio se transformando em uma das principais referências diante do limite dos protocolos climáticos da justiça social e climática. Contudo, atenta para a dimensão política das ciências e de termos técnicos. Com base em Isabelle Stengers, o autor aponta para a reflexão a respeito das diversas maneiras de habitar o tempo e o espaço, a partir de uma dimensão cosmopolítica: “Não teorizar sobre o tempo do outro, mas teorizar com o outro, dialogando com seus tempos e suas linguagens.” (TURIN, 2022, p.159).
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski entendem o Antropoceno como parte do tempo presente, mas não de um futuro para a espécie humana: “Embora tenha começado conosco, muito provavelmente terminará sem nós.” (CASTRO; DANOWSKI, 2014, p.16). Os autores enxergam o Antropoceno a partir da perspectiva empírica do fim do mundo causado pela economia industrial com base na energia fóssil e no consumo cada vez mais crescente de espaço, tempo e matérias-primas. Os mesmos acreditam em um olhar mais profundo direcionado às cosmogonias ameríndias, para pensar, inclusive, sobre a crise climática. Apontam que esses povos utilizam há séculos manobras e estratégias de resistência para que seus mundos e subjetividades continuassem a existir, contrariando previsões de desaparecimento. Assim, esses autores mobilizam importantes sínteses conceituais como o perspectivismo ameríndio, que se refere a concepções originárias de uma humanidade compartilhada entre seres humanos e não humanos, onde a natureza é possuidora de subjetividades.
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Data de Publicação: 02/11/2023
Autoria: Bianca Costa de Matos
Bibliografia
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, v. 91, 2013, p. 2-22.
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, Florianópolis, Desterro, Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014.
MARQUES, Leonardo. Sobrevivendo ao inferno: a escrita da história na eco-crise global. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 43, nº 92, 2023.
STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, 2018, p. 442-464.
TURIN. Rodrigo. A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: MULLER, Angelica e IEGELSKI, Francine (orgs). História do Tempo Presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora/Faperj, 2022, p.143-164.
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Termo cunhado pelo antropólogo da ciência Bruno Latour, presente no subtítulo de sua obra Jamais fomos modernos: ensaio sobre antropologia simétrica, de 1994. Neste ensaio, Latour busca mobilizar a noção de simetria como fundamento de uma abordagem etnológica das sociedades modernas e ocidentais. Segundo Latour, o pensamento antropológico tradicional, calcado nos pressupostos da modernidade, foi responsável por edificar uma leitura assimétrica dos fenômenos estudados por esta ciência. Essa assimetria é expressa pela dicotomia entre natureza e cultura presente na teoria do conhecimento e ontologia dos modernos. Diante da perspectiva antropológica tradicional, aponta Bruno Latour (1994), a ontologia moderna se baseia em dois pólos distintos: o pólo do mundo natural, no qual a natureza tomaria contornos de uma entidade transcendente, pregressa às paixões e opiniões humanas e totalmente independente delas, e o do mundo da cultura, em que a sociedade aparece como produto imanente e imediato das relações sociais constituídas.
Para esta concepção, a matriz antropológica moderna se define em oposição às sociedades arcaicas e selvagens, nas quais não haveria distinção entre natureza e cultura da mesma forma que ela se configura nas sociedades ocidentais. Portanto, os estudos etnográficos das sociedades arcaicas e pré-modernas produzidos pelos antropólogos, que buscam compreender os entrelaçamentos de uma natureza-cultura, e que reconhecem a ausência de distinções ontológicas entre esses elementos nessas sociedades, não seriam aplicáveis, segundo a antropologia tradicional, ao mundo moderno, pois partilhamos de uma matriz antropológica distinta daquelas sociedades. Opera assim uma grande divisão, entre nós e eles, que impossibilitaria o trabalho etnográfico do mundo sobre o mundo moderno. Os modernos seriam assim incapazes de produzir uma reflexão a respeito de si mesmos. Não obstante, Latour rejeita o postulado desses antropólogos que afirmam a impossibilidade de se fazer uma antropologia do moderno e do ocidente. Em contrapartida, ele destaca que devemos encontrar a resolução desse dilema retomando a indagação clássica "como definir o que é o moderno?" para então viabilizar a prática de uma antropologia da modernidade. Sendo assim, o moderno se definiria a partir de duas condições assimétricas basilares, a primeira estaria associada à noção de que a modernidade se constitui como uma ruptura na passagem do tempo, em contraste a um passado arcaico. A construção do moderno pressupõe a existência de seu par conceitual oposto, que seria o antigo. Já a segunda condição assimétrica estaria relacionada ao fato de que a modernidade depende de batalhas que contenham vencedores e perdedores. Nesse sentido, os vencedores estariam na posição de porta-vozes das luzes e da crítica, crítica essa passou a qualificar toda forma pensamento advindas dos pré-modernos como inepta e ilusória.
Entretanto, devemos compreender que o moderno se refere, sob o ponto de vista da antropologia simétrica, a dois conjuntos de práticas distintas que para se manterem eficazes necessitam estar separadas. Essas práticas são descritas por Latour enquanto trabalhos de tradução/mediação e purificação. A primeira prática expande a proliferação daquilo que Latour chama de híbridos. Esses mistos entre natureza e cultura são produtos da construção do conhecimento em rede responsável pela mobilização e conexão dos atores em cadeia. A segunda prática diz respeito à tarefa realizada pelo moderno de dividir o mundo da natureza, independente dos interesses da sociedade e dos homens. Disso resulta a criação da distinção entre os seres humanos e não humanos. Separar ambos os trabalhos é o movimento identificador do moderno. A antropologia simétrica busca, pelo contrário, reatar a ligação entre os trabalhos de tradução/mediação e purificação, desvelando o que, segundo Latour, a constituição moderna esconde. Ele denomina de constituição uma série de garantias responsáveis por estabilizar as controvérsias produzidas pela modernidade.
As garantias constitucionais estabelecem o caráter transcendente da natureza, assegurando que não foram os homens que construíram a natureza, ela sempre esteve presente e obedece a um regime ontológico autônomo. As garantias constitucionais também asseguram o aspecto imanente da cultura, ao afirmar que a sociedade é produto da ação dos homens. A constituição opera também a separação radical entre estes dois poderes que resulta na distinção dos trabalhos de tradução/mediação e purificação. Para explicar a lógica constitucional da modernidade, Latour utiliza a metáfora jurídico-constitucional, demonstrando como essas garantias funcionam tal como o sistema de freios e contrapesos, que delimita as atribuições dos poderes constituídos em uma democracia contemporânea. A última garantia da constituição diz respeito à presença divina, na qual a supressão do divino em ambos os mundos, seja o da natureza ou da cultura, faz com que Deus intervenha em casos limítrofes de controvérsias envolvendo natureza e sociedade.
Latour levanta a hipótese em seu ensaio de que as garantias constitucionais responsáveis por distinguir o trabalho medição e purificação, ou seja, os processos que criam a separação entre natureza e cultura nunca se realizaram de fato. O paradoxo do mundo moderno está na constatação de que quanto mais nos proibimos de pensar nos híbridos, mais eles se expandem e se proliferam. Portanto, chega-se à conclusão de que jamais fomos modernos, no sentido de realizar a pretensão de controlar a proliferação dos híbridos. A distinção essencial entre a nossa matriz antropológica e a dos pré-modernos está no fato de que eles, ao pensar conjuntamente natureza e cultura, limitam assim a expansão dos híbridos.
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Data de Publicação: 27/06/2023
Autoria: Ana Clara Dutra Barros e Renan Viana Fabiano
Bibliografia
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
Como citar este verbete:
BARROS, Ana Clara Dutra; FABIANO, Renan Viana. "Antropologia simétrica". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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C
Ch’ixi é um conceito central nas reflexões de Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana que se reconhece como descendente aimará, uma das etnias mais populosas da América do Sul e a segunda maior da Bolívia. Esse termo foi gestado de forma conjunta pelo Coletivx Ch’ixi, um espaço de autogestão criado em 2008, localizado em La Paz e formado por diversos colaboradores, entre os quais indígenas aimarás (GONÇALVES, p. 76, 2019).
Embora essa palavra de origem aimará tenha vários significados, em seus textos Silvia Rivera Cusicanqui procura definir um sentido que permita utilizá-lo como um recurso conceitual para a compreensão da história e da sociedade andina.
O termo se refere a uma cor, o gris (cinza) e representa, na análise da socióloga, a metáfora para o encontro entre dois mundos que vivem em constante contradição. Quando utilizado neste sentido, o termo ch’ixi apresenta uma potencialidade problematizadora, já que faz referência a uma mescla de cores (o branco e o preto ou o verde e o vermelho). Essas cores se cruzam, se perpassam, mas não se fundem a ponto de se reduzirem a uma única cor. Conforme a socióloga, “a noção ch’ixi, como muitas outras, obedece a ideia aimará de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja, a lógica do terceiro incluído.” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 10)
Silvia Rivera Cusicanqui explica que aprendeu a palavra ch’ixi com um escultor aimará chamado Víctor Zapana, segundo o qual as entidades ch’ixis são indeterminadas e por isso muito poderosas, não são brancas nem negras mas são as duas coisas. Um dos exemplos fornecidos pela socióloga é a serpente que é masculina e feminina ao mesmo tempo, que não pertence nem ao céu e nem a terra, mas habita ambos os espaços “como chuva ou como rio subterrâneo, como raio ou como veio de uma mina” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p.80).
Para a socióloga, o ch’ixi é uma imagem poderosa que pode ser acionada para pensar “a coexistência de elementos heterogêneos” que não se submetem um ao outro, não se prestam a fusão e não produzem um novo termo capaz de englobar ou se sobrepor à ideia dessa existência dupla (2010, p. 7). Para ela, é necessário trabalhar nesta contradição “fazendo de sua polaridade o espaço de criação.” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p. 83).
O ch’ixi faz referência ainda à indiferenciação, à potência do indiferenciado que conjuga os opostos, como é o caso da pedra ch’ixi, conforme exemplo fornecido pela socióloga. A pedra agrega animais míticos como o lagarto, o sapo e a serpente dos tempos da indiferenciação, dos tempos imemoriais, quando não existiam as nomenclaturas das espécies operando a partir da razão moderna, época na qual seres humanos e outros seres não se distinguiam (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 69).
A categoria Ch’ixi, portanto, pode ser lida como a conjunção do mundo índio com seu oposto, mas nunca a mesclagem de ambos. Para Rivera Cusicanqui esse conceito pode ser pensado como uma alternativa a binarismos e posturas que procuram identificar os grupos indígenas a partir de uma identidade rígida, monolítica ou ainda a partir da chave de leitura da hibridação. (2010, p. 7). A crítica à ideia da cultura híbrida é questionada já que pressupõe a junção de duas partes puras, não misturadas, que se mesclam resultando em uma fusão.
Rivera Cusicanqui diferencia ainda o termo ch’ixi de chhixi, duas palavras aimarás muito parecidas na grafia, mas cujos significados são distintos. A noção de chhixi representa o insubstancial, o inconsciente, o aquoso. É utilizado como metáfora para entender a ala masculina da estrutura social. É o mestiço sem memória, sem compromisso com o passado; ele é oportunista, caminha conforme soprar o vento, está preso ao Estado, é o patriarca estatal. Já o ch’ixi é explosão, é a síntese da contradição, é o espaço da criação do tecido intermediário. É uma atividade produtiva, capaz de criar um outro espaço público. A contradição neste caso não pode ser pensada como paralisante, como irredutível, mas como potência explosiva e criadora.
A categoria ch’ixi também coloca em questão a reflexão sobre a postura do intelectual mestiço que convive com a estrutura colonial e, ao mesmo tempo, busca o rompimento em relação a essa condição. Para a socióloga, o colonialismo nos habita e não é possível se livrar dele para se posicionar em relação à América Latina, mas é ele também por sua vez que alimenta uma escrita e uma posição ch’ixi.
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Data de Publicação: 03/10/2023
Autoria: Liz Andréa Dalfré
Bibliografia
GONÇALVES, Chryslen Mayra Barbosa. Epistemologias manchadas: mestiçagem e sujeitos políticos da descolonização na Bolívia andina. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas-SP, p. 187, 2019.
LÂNES, Patrícia. "?Un mundo ch?ixi es posible?, de Silvia Rivera Cusicanqui." Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia. Dossiê: Giro decolonial, Parte 1: Artes visuais, arquiteturas e alteridades., v. 3, p. 210-217, 2019.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax Utxiwa: uma reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires, Tinta Limón, 2010.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’ixi es posible. Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: Tinta Limón, 2018.
Como citar este verbete:
DAFRÉ, Liz Andréa. "Ch'ixi". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
ISSN 2764-9393
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E
Nas últimas décadas, a palavra “eurocentrismo” vem sendo usada com bastante frequência por sociólogos, antropólogos, filósofos, pedagogos, ensaístas, críticos literários e historiadores. Apesar dessa ampla difusão na literatura contemporânea, não é sempre que a palavra vem acompanhada de uma definição ou de uma matização teórica. Parte-se do princípio que todos sabem seu significado, ainda que suas consequências, seu alcance ou, até mesmo, a veracidade de sua existência sejam alvo de acalorados debates. A ausência de uma descrição mais precisa pode fazer com que “eurocentrismo” seja facilmente confundido com “etnocentrismo”, fator que limita o poder explicativo que pode ser vinculado ao primeiro termo. Um exemplo disso é a definição bastante sintética do dicionário de antropologia de Mike Morris, onde o eurocentrismo é caracterizado como uma noção básica que defende que os valores europeus são naturalmente superiores aos de outros povos, postura que pode ser facilmente descrita como etnocêntrica.
Um entendimento um pouco mais refinado desta temática é esboçado no verbete do New Dictionary of the History of Ideas, no qual “eurocentrismo” é apresentado como uma “tendência discursiva para interpretar as histórias e culturas das sociedades não ocidentais a partir de uma perspectiva europeia (ou ocidental) [tradução livre]”. O verbete identifica como traço comum do eurocentrismo a superestimação das sociedades não europeias, atitude que poderia ser facilmente descrita como etnocêntrica. Todavia, o texto vai adiante e realça um elemento que será particularmente relevante para a reflexão historiográfica sobre o assunto, qual seja: a prática eurocêntrica de instituir uma visão das trajetórias históricas das sociedades não europeias, a partir de pressupostos unicamente europeus. Um desdobramento dessa prática seria a interpretação das histórias das “outras” partes do mundo como partes complementares da grande narrativa da expansão da Europa e de sua influência civilizatória sobre o globo.
Uma reflexão bastante instrutiva sobre o tema do eurocentrismo pode ser encontrada no livro do economista Samir Amin, Eurocentrism. Na obra, Amin chama nossa atenção sobre a importância de diferenciar eurocentrismo de etnocentrismo. Isto porque, ainda que não possa ser considerado estritamente uma teoria, o eurocentrismo não é uma simples forma de etnocentrismo, este sim uma manifestação que pode ser encontrada em diversas culturas ao longo do tempo e do espaço, não sendo, portanto, uma exclusividade europeia. O eurocentrismo, por outro lado, seria uma “construção relativamente moderna” [tradução livre], um fenômeno que pode ser considerado vigente do século XVIII, em diante. Para o autor, mais do que um conjunto de erros, preconceitos e enganos que os ocidentais possam ter cometido ao observar e interagir com outras culturas, o eurocentrismo implica em uma teoria da história mundial que, a seu turno, pode ser empregada como instrumento de determinados projetos políticos.
O exame da produção dessa metanarrativa da superioridade europeia deveria interessar mais à comunidade historiográfica, até porque tal metanarrativa constitui um enorme obstáculo para uma compreensão mais adequada do passado da Europa, bem como das “outras” partes do mundo, mas também das relações entre as diferentes sociedades e culturas. Em certo sentido, essa é uma das críticas presentes na obra do antropólogo Jack Goody que recebeu o sugestivo título de O Roubo da História. No livro, publicado pela primeira vez em 2007, Goody produz uma contundente crítica, não isenta de fragilidades, ao que ele classificou como “a dominação da história pelo Ocidente”, e que corresponde à apresentação e à conceituação do passado global em conformidade com a lógica, restrita e provincial, da Europa Ocidental. Argumento semelhante, porém, com desenvolvimento bastante distinto, é esboçado no livro do geógrafo James Blaut, no qual o autor afirma que o eurocentrismo, muito mais que um conjunto de preconceitos contra povos não-europeus, é um problema que concerne à ciência e à produção de conhecimento especializado. Aprofundando a reflexão sobre o tema, Blaut afirma que é um problema central para a historiografia e para a história das ideias compreender como o discurso histórico ocidental assimilou – creio ser acertado acrescentar que tal discurso não apenas assimilou, bem como produziu e difundiu – afirmações eurocêntricas que, todavia, são frágeis do ponto de vista metodológico. Acerca da centralidade desse problema, creio ser difícil divergir do autor.
O sociólogo Immanuel Wallerstein, reconhecido principalmente pelo sólido e amplamente difundido trabalho acerca do sistema mundial moderno, refletiu em diferentes escritos a respeito do arcabouço teórico das ciências sociais, e de suas relações com os desafios colocados pelas transformações das estruturas políticas e sociais globais, no final do século XX. Após analisar a história social da epistemologia das ciências sociais, o autor defendeu, ainda em 1998, que muitas das suposições e princípios que servem como base para as ciências sociais, além de serem enganosos, representam verdadeiras amarras ao pensamento crítico. A origem de tais amarras e enganos pode ser encontrada, muitas vezes, na lógica eurocêntrica que acompanhou o momento de fundação das ciências humanas, deixando marcas significativas também em seu arcabouço teórico.
Importa registrar, como nos recorda Wallerstein, que a crítica ao eurocentrismo ganha força em 1945, nos quadros dos movimentos de descolonização da África e da Ásia, cenário no qual as denúncias e críticas efetivadas pelos discursos anticoloniais – nas vozes de autores como Aimé Césaire e Franz Fanon, para citar dois exemplos emblemáticos – ocuparam um lugar preponderante. Também não custa assinalar que a perspectiva teórica pós-colonial, em alguma dimensão herdeira do discurso anticolonial, se afirma no cenário intelectual como crítica ferrenha ao eurocentrismo, para tanto, basta lembrar de uma das referências mais elementares dessa perspectiva, o livro Orientalismo de Edward Said.
No entanto, dentre as muitas reflexões de Immanuel Wallerstein sobre o eurocentrismo, a que nos interessa é aquela que poderá nos auxiliar a compreender o que o autor denominou de “avatares do eurocentrismo”. Tais avatares seriam uma espécie de encarnação do eurocentrismo, em outras palavras, as formas através das quais o eurocentrismo se manifesta no mundo. Wallerstein enumera cinco campos de ação dos avatares do eurocentrismo: historiografia, universalismo, civilização, orientalismo e progresso. O exame das categorias, em que são agrupados os avatares do eurocentrismo, é uma operação particularmente importante para o campo das humanidades, tendo em vista que a bibliografia e as fontes primárias com as quais operamos regularmente estão apinhadas de manifestações diretas e indiretas destes avatares. Assim, por exemplo, o termo civilização é usualmente empregado em contraposição às noções de primitivo ou bárbaro, concepções já francamente contestadas pela antropologia. Já a noção de progresso, que em muitos casos serviu como um substituto para civilização, forneceu o fundamento racional das teses que descrevem as sucessivas etapas de desenvolvimento das sociedades que, por sua vez, embasam as teorias de modernização, também já amplamente criticadas. Em linhas muitíssimo gerais, as teorias de modernização e as formas etapistas de compreensão da história acabam sendo eurocêntricas porque supõem, declarada ou implicitamente, que a trajetória histórica europeia não é apenas o modelo, mas, também, a meta a ser alcançada no final da corrida pelo desenvolvimento.
Aqui reside uma das muitas armadilhas da lógica eurocêntrica, ela se encontra tão impregnada nos valores e concepções majoritárias do mundo contemporâneo que corre o risco de passar desapercebida. O problema ainda é mais profundo do que aparenta, uma vez que mesmo aqueles pesquisadores que estão compromissados em identificar e combater o eurocentrismo, podem eles mesmos continuar perpetuando sua lógica através da adoção de premissas eurocêntricas para criticar o eurocentrismo, uma armadilha descrita por Wallerstein como “anti-eurocentrismo eurocêntrico”.
Assim, é possível perceber que muito mais do que uma atitude etnocêntrica por parte de europeus em relação a outros povos, é recomendável entender o eurocentrismo como uma lógica discursiva que governou, e em alguns casos ainda governa, os protocolos epistemológicos de produção das ciências humanas na sociedade ocidental.
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Data de Publicação: 05/09/2023
Autoria: Rachel Williams
Bibliografia
AMIN, Samir. Eurocentrism; modernity, religion, and democracy; a critique of eurocentrism and culturalism. (Second edition). New York: Monthly review press, 2009.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Frantz Fanon; a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. São Paulo: Intermeios, 2020.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial; pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu editora, 2022.
GOODY, Jack. O roubo da História; como os europeus se apropriaram das ideias e das invenções do Oriente. São Paulo: Editora Contexto, 2008. E-book.
GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo; uma nova história da humanidade. São Paulo: Companhia das letras, 2022. E-book.
HOROWITZ, Maryanne Cline (ed.). New dicionary of the history of ideas (vol. 2). New York: Charles Scribner's Sons, 2005.
MORRIS, Mike. Concise dictionary of social and cultural anthropology. Chichester: Wiley-Blackwell, 2012.
REVEL, Jacques. A história redescoberta? In:BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas. Por uma história-mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. p. 21-28.
SAID, Edward. Orientalismo; o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de bolso, 2007.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 129.
WALLERSTEIN, Immanuel. El eurocentrismo y sus avatares: los dilemas de las ciencias sociales. Revista de Sociologia, n°. 15, 2001, pp. 27 - 39.
Como citar este verbete:
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h
ISSN 2764-9393
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I
O conceito de interculturalidade surge na América Latina associado ao contexto educacional indígena. Na década de 1970, Mosonyi e González, dois linguistas e antropólogos venezuelanos, aplicaram o conceito para descrever suas experiências com os indígenas arhuacos, da região do Rio Negro.
Contudo, a interculturalidade também pode se referir ao projeto alternativo de caráter ético, ontológico, epistêmico e político, alinhado ao surgimento de sociedades democráticas que proponham alternativas ao caráter monocultural e ocidentalizante imperante na maior parte dos países da América Latina.
A intelectual estadunidense Catherine Walsh, conhecida como "pedagoga da decolonialidade", considera a diferença colonial como locus privilegiado para a construção de uma lógica contra hegemônica intercultural, capaz de transgredir as fronteiras da subalternização e de desmantelar a suposta universalidade do conhecimento ocidental. Para Walsh, a interculturalidade é uma forma de pensamento que ao mesmo tempo se relaciona e se opõe à modernidade/colonialidade, visando à construção de um novo espaço epistemológico fundado na negociação e no diálogo, mas não na homogeneidade. A interculturalidade é um outro paradigma, que questiona e modifica a colonialidade do poder ao tornar visível a diferença colonial; é um caminho para pensar novos mundos a partir de um "posicionamento crítico fronteiriço".
Nesse sentido, a interculturalidade representa uma lógica epistêmica construída a partir do lugar de enunciação da diferença colonial: ao mesmo tempo em que torna visível essa diferença, modifica a colonialidade do poder. Através do conhecimento dominante, gera-se um "outro" conhecimento, descolonizado. Difere-se em muitos aspectos do multiculturalismo, atrelado à ideia de uma diversidade de representações subjetivas e parciais que incidem sobre uma natureza una e total. Ao pressupor uma geopolítica do conhecimento que tende a obscurecer a diversidade e a impor um sentido "universal", o multiculturalismo reproduz a lógica da dominação colonial e os interesses hegemônicos. Enquanto o multiculturalismo é postulado por um Estado que reproduz a lógica neoliberal e o colonialismo interno, a interculturalidade relaciona-se a um Estado que reconhece a diferença colonial (ética, política e epistêmica) e questiona os paradigmas e estruturas dominantes.
Em suma, para Catherine Walsh, a interculturalidade significa: um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condição de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade; um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas e as relações e os conflitos de poder da sociedade não se mantêm ocultos, mas sim são reconhecidos e confrontados; uma tarefa social e política que se dirige ao conjunto da sociedade em busca da criação de modos de responsabilidade e solidariedade. A interculturalidade é, ao fim e ao cabo, uma meta a alcançar.
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Data de Publicação: 19/01/2023
Autoria: Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack
Bibliografia
WALSH, Catherine. "Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento "otro" desde la diferencia colonial". In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (editores). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, pp.47-62.
WALSH, Catherine (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito: Ediciones Abya Yala, 2013.
Como citar este verbete:
SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. "Interculturalidade". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/i-j-k-l
ISSN 2764-9393
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Invenção da cultura foi um conceito desenvolvido em meados da década de 1970 pelo antropólogo estadunidense Roy Wagner em seu livro A Invenção da Cultura. Apesar de ter demorado um pouco mais de três décadas para a tradução do livro para o português, o conceito de invenção da cultura, sem dúvidas, influenciou toda uma geração de antropólogos não só nos Estados Unidos e na Europa, mas também no Brasil. Sendo assim, a ideia da invenção da cultura passa a ser fundamental para discutir conceitos antropológicos.
Em primeiro lugar, para compreendermos esse conceito devemos perceber que é um dever do antropólogo não hierarquizar as culturas. Sendo assim, ele não deve achar que a sua cultura é a “correta”, mas sim que é apenas uma cultura outra, como qualquer cultura que ele possa conhecer e estudar ao longo de sua vida. A partir disso, ele deve ter consciência de que inventa a cultura, na medida em que percebe outra cultura a partir dos conceitos já definidos da sua própria cultura. Dessa forma, um antropólogo estuda outras culturas a partir das diferenças e semelhanças que ele percebe com a sua própria cultura e, como consequência, começa a traçar paralelos entre esses dois universos. Isto posto, podemos notar que, para Roy Wagner, a ideia de cultura não é algo fixo, inflexível e engessado, pois o autor considera a cultura apenas como uma “muleta” para o antropólogo.
Portanto, é função do antropólogo inventar a cultura para poder fazer uma comparação de um campo de estudo com a sua realidade e assim perceber as diferenças culturais existentes entre esses dois mundos. Essa invenção é feita a partir do estudo de uma outra cultura e da comparação ativa entre dois mundos, sendo um deles o mundo do próprio antropólogo que representaria sua cultura e o outro mundo inventado para representar a cultura que está sendo estudada. Não podemos deixar de destacar que esse processo ocorre de maneira concomitante entre antropólogo e nativo. Com isso fica claro que ambos estão fazendo esse processo de estudo e invenção de cultura. Por isso, Wagner também propõe o conceito de antropologia reversa, a antropologia que reconhece a reflexividade dos outros, isto é, a capacidade analítica das pessoas estudadas. Nesse sentido, considera que os povos estudados refletem sobre a cultura do antropólogo, mas o fazem em seus próprios termos.
Em resumo, o conceito de invenção da cultura, elaborado pelo antropólogo estadunidense Roy Wagner, foi essencial para a construção do debate antropológico de toda uma geração de pesquisadores, os quais foram influenciados por esse conceito desenvolvido em 1975. Essa invenção da cultura consiste em um processo ativo, no qual tanto o antropólogo quanto o nativo fazem a invenção da sua própria cultura e da cultura do outro ao se relacionarem com tradições e costumes de um mundo diferente do seu.
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Data de Publicação: 27/06/2023
Autoria: Marcos Gabriel Pita da Costa
Bibliografia
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Editora Ubu, 2017.
Como citar este verbete:
COSTA, Marcos Gabriel Pita da. "Invenção da Cultura". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/i-j-k-l
ISSN 2764-9393
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O
O conceito de outsider within foi utilizado pela socióloga e pesquisadora do feminismo negro Patricia Hill Collins em seu artigo “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”, originalmente escrito em 1986 como “Learning from the outsider within: the sociological significance of black feminist thought”. Outsider within refere-se, em tradução livre, a mulheres (em especial mulheres negras) que, mesmo inseridas dentro dos espaços acadêmicos e/ou espaços de sociabilidade pertencentes à classe dominante, mantêm-se excluídas por conta da sua condição social e racial.
O conceito de outsider within pontua que mulheres negras têm um ponto de vista especial sobre seu pertencimento em relação à família e à sociedade. No entanto, é necessário compreender que existem benefícios que a posição de outsider within proporciona em relação aos insiders que, acostumados àquele estilo de vida e modo de pensar desde o nascimento, não têm a capacidade de enxergar para além dos limites de sua própria bolha. Estando a mulher negra inserida em diversos ambientes, e por que não dizer em diversas “bolhas” sociais, ela possui a capacidade de enxergar a partir de múltiplas lentes, enriquecendo o processo científico e o discurso sociológico.
Enquanto os insiders, ou seja, aqueles já inseridos em e pertencentes à uma academia notadamente branca, masculina e elitista, têm de forma quase que orgânica as mesmas referências, os mesmo apontamentos e a mesma forma de pensar e enxergar o mundo, a outsider within transita dentro do ambiente formal da academia e fora, onde outras realidades acontecem. Ela é considerada uma intelectual marginal, podendo assim questionar os modelos epistemológicos e ontológicos tidos como verdades concretas e universais engendrados por um grupo hegemônico.
Uma outsider within pode se deparar com diversas anomalias (COLLINS, 2016, p.119) no pensamento sociológico que acabam por reforçar estereótipos inclusive sobre as mulheres negras que constituem o imaginário dos insiders. O esforço de se fazer presente no meio acadêmico trazendo novas informações não consensuais entre os sociólogos brancos tende a tornar-se exaustivo, uma vez que ser um outsider within é ser modificado pelo seu status de pessoa à margem do processo de produção intelectual/científica predominante ao mesmo tempo que inserida nele. Tanto enriquece a pesquisa como pode se sentir confrontada ao perceber certas afirmações e percepções da realidade que não condizem com suas próprias experiências dentro da mesma realidade.
Um dos caminhos que a outsider within pode tomar em relação à essas questões é tentar introduzir-se totalmente dentro do modo de pensamento dos insiders (o que é muito difícil, uma vez que as anomalias propagadas por eles chocam-se com o conhecimento empírico vivido diariamente pelas outsiders within). Outro caminho é tornar-se uma outsider, ou seja, abandonar a academia mesmo após ser perpassada pelos conceitos e aprendizados vividos na sociedade acadêmica. Uma outra possibilidade, ainda mais vantajosa para o conhecimento científico, é utilizar a tensão criativa que existe na posição de outsider within para legitimar e institucionalizar suas perspectivas de modo a contribuir de maneira mais plural a um processo de desenvolvimento científico que não esteja preso às fórmulas de se pensar a vida advindas da comunidade acadêmica hegemônica, mas como forma de repensar essas fórmulas sempre que possível.
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Data de Publicação: 01/08/2023
Autoria: Juliana de Souza Santos (integrante do Projeto Prodocência HistoriDelas)
Bibliografia
HILL COLLINS, Patricia. "Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro", Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016, p.99-127.
Como citar este verbete:
SANTOS, Juliana de Souza. "Outsider Within". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/m-n-o-p .
ISSN 2764-9393
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P
O perspectivismo ameríndio é um conceito desenvolvido pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro e pela etnóloga Tânia Stolze Lima. Ele se baseia na ideia de que parte das sociedades indígenas da América possuem uma cosmogonia distinta da ocidental, na qual o mundo é visto a partir de múltiplas perspectivas.
Partindo deste pressuposto, as diferentes formas de vida (animais, plantas, humanos, etc.) não são encaradas como categorias fixas e separadas, mas sim como perspectivas diferentes de uma mesma realidade. Diante disso, muitas populações indígenas acreditam que existe uma troca constante de perspectivas entre os seres vivos e, por isso, cada um pode se transformar em outra forma de vida. Com a concepção de que todos possuem uma alma, é possível transitar entre mundos.
Além disso, o perspectivismo ameríndio destaca a importância da relação entre as sociedades indígenas e a natureza, na qual todos os seres vivos são vistos como participantes de uma mesma rede de interações. Natureza e cultura não são opostos irreconciliáveis, mas partes de um mesmo processo, que faz com que cada indivíduo seja um universo em si mesmo e, ao mesmo tempo, parte constituinte de universos que convergem. Entretanto, esta convergência não é, necessariamente, harmônica. O conflito é admitido como integrante da teia que compõe as interações sociais.
O homem, portanto, não é visto como o centro do universo, mas um participante igual a todos os outros animais, em contraponto ao perspectivismo ocidental, onde a realidade é apenas uma, porém observada a partir de diferentes pontos de vista. Na concepção dos povos ameríndios, a realidade pode assumir inúmeras facetas, constituindo múltiplas historicidades.
Sendo assim, é possível reconhecer que todo indivíduo é um agente histórico, não apenas um objeto de estudo, incapaz de produzir e partilhar conhecimento. Ao fim e ao cabo, o perspectivismo ameríndio é uma concepção alternativa da realidade, ao admitir realidades coexistentes, destacando a integração entre o ser humano e a natureza, baseando-se em uma ontologia própria.
Aqui estão alguns exemplos de como o perspectivismo ameríndio pode ser observado na prática:
Transformação de seres vivos: em muitas culturas indígenas, as pessoas acreditam que é possível reconhecer a subjetividade dos outros seres, como animais, plantas ou mesmo objetos. Em algumas tradições, o xamã pode assumir o ponto de vista de um animal para obter informações e realizar tarefas que seriam impossíveis como humano, pois exerce o papel diplomático de transitar entre mundos sem ter sua alma capturada permanentemente por outra perspectiva. Em vez de um líder coercitivo, o xamã assume a responsabilidade de ser o único capaz de negociar o resgate das almas. Davi Kopenawa, líder espiritual yanomami, conta como já adoeceu por ter sido capturado pelas imagens dos queixadas que caçou na floresta. Foi um xamã que o resgatou e, a partir deste contato, sua jornada no xamanismo foi iniciada.
Relações entre seres vivos: a integração mencionada anteriormente pode ser observada através das relações de amizade e parentesco entre humanos, animais, plantas e até mesmo objetos, sendo ligações profundas, que se perpetuam por gerações, tratadas com respeito e cuidado.
Comunicação entre seres vivos: muitas culturas indígenas acreditam que todos os seres vivos podem se comunicar uns com os outros, mesmo que esta comunicação não seja compreendida pelos humanos. Em algumas tradições xamânicas, os animais são vistos como fontes de sabedoria e conselhos, sendo consultados para ajudar na tomada de decisões.
Relações de poder: o poder é visto como sendo distribuído de forma relativa entre os seres vivos, e não como algo concentrado em uma única entidade ou grupo.
Interdependência dos seres vivos: o perspectivismo ameríndio destaca a importância da interdependência entre todos os seres vivos. A saúde e o bem-estar de cada entidade depende da saúde e do bem-estar de todas as outras.
Essas são apenas algumas das muitas nuances do perspectivismo ameríndio. É de suma importância destacar que essa teoria se aplica às culturas indígenas da América, mas as interpretações podem variar de acordo com a sociedade e tradição específicas.
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Data de Publicação: 25/04/2023
Autoria: Ana Paula Alvarez Ribeiro Lopes, Bernardo Barreto Mattos e Lucas Pereira Arruda
Bibliografia
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora, n-1 edições, 2018.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Como citar este verbete:
LOPES, Ana Paula Alvarez Ribeiro; MATTOS, Bernardo Barreto; ARRUDA, Lucas Pereira. "Perspectivismo ameríndio". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/m-n-o-p
ISSN 2764-9393
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S
Os Saberes Indígenas, considerando-os necessariamente no plural, podem ser entendidos como uma prática vivencial que, além de permitir interagir com o mundo que rodeia aos ameríndios, torna possível habitar o tempo-espaço onde transcorre a existência. E, para que isso aconteça, é necessário considerar a noção de Mundo, tanto quanto a ideia e a prática de interagir, do modo mais abrangente possível. O Mundo que habitam os ameríndios é composto por variadas dimensões da existência. As mesmas podem ser articuladas entre si por meio de diversas práticas próprias dos xamãs, além de ser possível, para eles, se deslocar por diferentes cronotopos, conectando, e trazendo à tona, Saberes próprios de regimes históricos diversos. Contudo, os Saberes Indígenas não são uma "propriedade" exclusiva dos xamãs; todos interagem como partes daqueles Saberes e, como em toda sociedade, existem especialistas como os anciãos. Portanto, os Saberes Indígenas, para que possam ser entendidos por nós que não somos indígenas, e que fomos educados pela "máquina de guerra" da Ciência do Ocidente, com a sua proposta autopoiética (Deleuze & Guattari, 2017), necessitam de uma indefinição. Noção essa que permite sentir/pensar a prática da Ciência e da (nossa) existência, sobretudo com aqueles considerados outros e, claro, com a Natureza.
Infinir é uma forma distinta de ver/reconhecer, e de considerar, aquilo que pode ser enxergado, partindo da avaliação dos mecanismos, meios e formas de observar alguma manifestação daquele Mundo que nos rodeia. Infinir é, em segundo termo, uma forma de pôr em movimento aquilo que desejamos descrever (Holbraad, 2015, 131). É uma tecnologia sobre como intervir, sobre como fazer parte de uma descrição para que a mesma, a priori, não acabe com o movimento que um fenômeno x apresenta para nós. Toda observação é uma intervenção e aquela prática não tem que fechar os nossos sentidos, pelo contrário. A descrição tem que apresentar para nós, ou pelo menos tentar apresentar, as relações que acontecem/que fazem parte do entramado que sustenta os fenômenos sociais ameríndios para, a partir dela, poder pensar na ação mútua que tem lugar entre quem realiza uma ação - com uma intencionalidade determinada - e quem experimenta sobre si mesmo aquela ação, gerando como resultado uma transformação mútua. Uma mudança de sentido que acontece sobre pessoas, espaços, plantas e animais, assim como não-humanos, a partir das interconexões que podemos verificar no devir de uma prática cotidiana, ou bem atípica, mas que responde a uma necessidade, sobre a qual atuam os Saberes Indígenas. Portanto, podemos considerar os Saberes Indígenas como uma reflexão ontológica que visa explicar o seu lugar (o lugar deles) - e o lugar dos outros -, e as relações com o Mundo.
Os Saberes Indígenas, para serem abordados de melhor modo, devem levar em consideração a indicação de Daniel Munduruku sobre a necessidade de "esclarecer um pouco sobre o conhecimento indígena da natureza para, em seguida, dizer algo sobre a natureza do conhecimento indígena" (2020, 71), formulação que não se trata de um trava-línguas. Pelo contrário, trata-se de uma indicação de sentido sobre a relação existente, existencial e iniludível entre Natureza e Pessoa. Relação essa mediada pelo corpo e pelas imagens - o duplo do qual fala a Antropologia -, as mesmas que permitem conhecer tudo aquilo que existe. Portanto, os Saberes Indígenas só podem ser compreendidos como uma interação constante entre a Natureza e os sujeitos; uma interação que, no caso de ser dividida ou fatiada em porções, tal como nós consideramos os saberes e conhecimentos, v. g. sociais, econômicos, etc., perderia todo sentido, dado que para as populações ameríndias tudo está conectado entre si. O resultado dessa interconexão/ação é que os Saberes Indígenas são dinâmicos, pois acompanham os movimentos da Natureza, e são portadores de uma capacidade enorme para detectar anomalias nela. A observação dos ciclos naturais, durante milênios, configurou uma base de dados ampla demais que torna possível identificar, rapidamente, aqueles fatores que atrapalham as relações das quais falávamos anteriormente. Uma configuração histórica da qual partem as ações que visam alcançar um equilíbrio ou afetar as partes envolvidas. Os Saberes, então, são parte de uma Memória dinâmica que não se replica a si mesma - não é autopoiética. Se trata de uma Memória, de um saber-fazer, que disponibiliza todos os seus recursos para poder atuar. Os Saberes Indígenas são uma forma de estar – atuar no Mundo.
Na conformação, circulação e reprodução dos Saberes Indígenas - considerando a reprodução como um processo dinâmico-, mutatis mutandis, a oralidade tem um lugar privilegiado. Aqueles que conformam a "memória viva", narram para os seus netos, em rodas de conversa, que desafiam noções de tempo ocidentais, como o território é a base que permite conhecer sobre si mesmo e sobre os seus outros. “O território é o lugar onde se tem uma rede de relações [e, ...] por isso, é sagrado” (Kambeba, 2021, 134), assim como os Saberes produzidos a partir dele. Por isso, não é possível que os Saberes Indígenas continuem sendo produzidos se os indígenas são expulsos do seu território. Se o território não existe, não pode acontecer o Saber; e claro, mais uma vez temos que pensar no território como uma noção, uma categoria em aberto, que vai muito além de porção física que podemos enxergar.
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Data de Publicação: 14/02/2023
Autoria: Carlos Daniel Paz
Bibliografia
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 2017.
HOLBRAAD, Martin. Tres provocaciones ontológicas. Ankulegi. Revista de Antropología Social. Asociación Vasca de Antropología. Nro. 18; 2015, pp. 127-139. Disponível em: https://aldizkaria.ankulegi.org/index.php/ankulegi/article/view/69
KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do Saber Ancestral. São Paulo: UK’A, 2021.
MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando, 1. Sobre saberes e utopias. Lorena: UK’A, 2020.
Como citar este verbete:
PAZ, Carlos Daniel. "Saberes Indígenas". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/q-r-s-t
ISSN 2764-9393
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EDIÇÃO 1 (VOL. 1 2022)
C
O regime de historicidade monohistórico, decorrente da lógica cognitiva da colonialidade, parte da premissa de que existe um único mundo natural e humano, com um só cronotopo. Baseia-se em certezas como a linearidade e o caráter progressivo do tempo, a homogeneidade do espaço, a separação absoluta entre presente e passado e o avanço inexorável rumo ao progresso. Ao estabelecer uma verdade universal, pautada pelas dicotomias corpo/alma, natureza/cultura, objetivo/subjetivo, animalidade/humanidade, imanência/transcendência, não reconhece que outras formas de conhecimento, distintas da ciência moderna, são igualmente capazes de representar o mundo. Dessa forma, concebe o "cosmos" como uma globalidade organizada, como uma homogeneidade que tolera outras existências, mas que as silencia, as despreza e as desqualifica.
No intuito de desconstruir as pretensões universalistas da história ocidental, que durante séculos pretendeu-se porta voz da humanidade em sua totalidade, o historiador mexicano Federico Navarrete Linares propõe o conceito de cosmohistória. O regime de historicidade cosmohistórico é aquele capaz de reconhecer a existência das diversas historicidades ou de mundos históricos diferentes, que produzem cronotopos distintos, incluem diversos protagonistas (muitos deles não humanos) e concebem formas alternativas do devir histórico. Preocupa-se em compreender as interações sempre complexas, multifacetadas e frágeis entre mundos históricos cuja totalidade é desconhecida, para poder construir verdades históricas parciais e negociadas.
Ao reconstruir os terrenos comuns, sempre precários e mutáveis, que os mundos históricos estabelecem por meio de enfrentamentos violentos, diálogos ambíguos e negociações intrincadas, a cosmohistória combate a ideia de uma verdade histórica única. Nessa perspectiva, os diferentes modos de constituir o mundo podem ser interpretados a partir de conceitos próprios às culturas que os fundamentam. Segundo Navarrete Linares, não se trata de buscar a "verdade histórica" objetiva, mas sim de compreender como se constroem as limitadas e precárias verdades entre mundos diferentes.
Para Navarrete Linares, a cosmohistória é indissociável da cosmopolítica, conceito proposto pela filósofa belga Isabelle Stengers. Na verdade, o termo cosmopolítica foi cunhado pelo cínico Diógenes de Sinope no século IX a.C e retomado por Immanuel Kant, que o associou ao projeto de uma paz perpétua entre as nações, decorrente da possibilidade de unificação de todo gênero humano sob certas leis universais (Kant, 2010). Contudo, na série Cosmopolitiques (1997), Stengers elaborou um novo tipo científico, chamado de "sofista não relativista", que se distancia do cosmopolitismo kantiano e se aproxima de uma nova postura ética e epistêmica, disposta a dialogar com outras práticas, normalmente desqualificadas pela ciência moderna. Tendo como interlocutores Bruno Latour, Félix Guattari e Gille Deleuze, entre outros intelectuais, Stengers busca dar conta das divergências, incertezas, fricções e disputas entre a multiplicidade dos mundos pela definição do real. A cosmopolítica, nesse sentido, refere-se ao trabalho político de construção de relações entre mundos diferentes, tanto no interior de cada sociedade como entre grupos humanos distintos. Parte da premissa de que fazer ciência é fazer mundos, é registrar a polifonia, sem medo da dissonância.
Longe de estabelecer um regime de verdade, visto como representação do mundo que pode ser acessada apenas por determinadas formas de conhecimento, a cosmopolítica de Stengers é um modo de olhar e de aproximar-se de algo, é uma maneira de pensar; em outras palavras, um "não saber". Aponta para as constantes bifurcações e para a impossibilidade de alcançar uma síntese, dada a inexistência de um sistema que possa englobar todas as diferenças. Demarca, portanto, um limite ético para o conhecimento, ressaltando que alguns espaços permanecem inalcançáveis e que algumas "verdades históricas" não podem ser reveladas, tal como pretendeu a colonialidade.
Ao fim e ao cabo, podemos dizer que a prática cosmohistórica não pode prescindir da operação cosmopolítica. Para nós historiadores, trata-se, afinal, de estabelecer uma posição de equivalência - mas não de igualdade - entre as distintas visões históricas existentes. Diante de visões históricas subjetivas, que interpretam à sua própria maneira o mundo ao seu redor e sua relação com os Outros existentes fora dele, não podemos esperar nada além de relações marcadas por desacordos profundos, mal entendidos deliberados ou involuntários, más interpretações e omissões.
Navarrete Linares ressalta que a cosmohistória não é uma invenção da modernidade em crise. Na realidade, ela esteve presente ao longo de séculos de encontros, guerras, relações diplomáticas e intercâmbios entre indígenas, africanos e europeus no continente americano.
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Data de Publicação: 28/09/2022
Autoria: Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack
Bibliografia
MARTÍNEZ RAMÍREZ, María Isabel; NEURATH, Johannes (coord.). Cosmopolítica y cosmohistoria: una anti-síntesis. Ciudad de México: Sb. Editorial, 2021.
NAVARRETE LINARES, Federico. "Hacia una cosmohistoria: las historias indígenas más allá de la monohistoria occidental". In SIMSON, Ingrid; ZERMEÑO PADILLA, Guillermo (coord.). La historiografía en tiempos globales. Berlim: Edition Tranvía, 2020, pp-227-252.
STENGERS, Isabelle. Cosmopolitics I. London, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
Como citar este verbete:
SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. "Cosmopolítica/Cosmohistória". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/a-b-c-d
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H
Entre as marcas da tradição crítica do pensamento latino-americano encontra-se a criação permanente de conceitos que permitam descrever/explicar/interpretar a realidade do subcontinente. Essas ferramentas heurísticas têm servido de esteio e âncora para uma revisão hermenêutica dos textos que compõem o acervo do arquivo das memórias latino-americanas desde as crônicas do século XVI até as reflexões filosóficas dos latino-americanistas atuais.
A obra do crítico literário peruano Cornejo Polar, Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas, é, sem dúvidas, uma das investigações mais bem sucedidas nesta linha de raciocínio. Ao reler a literaturas andinas desde uma perspectiva que evidencia a coexistência conflitiva de elementos heterogêneos que remetem às memórias e universos socioculturais distintos, Cornejo Polar descortina um horizonte de interpretação sobre as contradições instauradas pelo colonialismo. A heterogeneidade, enquanto categoria analítica do pensamento, funda uma reflexão sobre a diversidade cultural latino-americana que se afasta das soluções propostas pelas teorias da miscigenação e das filosofias da história que se utilizam das sínteses dialéticas enquanto chaves de compreensão da sucessão de ocorrências históricas. A recorrência da violência enquanto método de ordenamento das sociedades latino-americanas opera como um dispositivo que impede o estabelecimento de uma relação dialógica entre as memórias culturais e produz e reproduz uma hierarquização entre esses universos.
A oralidade e a escrita, a metafísica cristã e as metafísicas indígenas, a propriedade dos meios e os modos de produção, a divisão do trabalho e da vida social, estão desde o século XVI atravessados por uma rede de violências amparada em uma visão da superioridade epistemológica das culturas europeias sobre as culturas não-européias. Nesta perspectiva de abordagem, a heterogeneidade expõe a intencionalidade do projeto colonial que oculta, sob a égide da trama da história universal, o aniquilamento de formas da vida social associadas a cosmovisões e memórias estranhas à racionalidade europeia. A recuperação destas vozes, destas memórias e destas formas do ser social, proposta por Cornejo Polar, distancia-se assim dos projetos folcloristas e de suas versões contemporâneas pós-modernas tão caras à indústria do turismo e seus catálogos de lugares e práticas exóticas. Ao contrário, reler a história da multiplicidade cultural latino-americana pelo prisma da heterogeneidade é repensar sobre a potência política de poéticas da história que não se dissolveram na narrativa proposta pela razão histórica triunfalista. Refletir sobre esta história é também, em mais de um sentido, assinalar a presença de uma série de práticas culturais suficientemente vivas para integrar projetos políticos e formas estéticas capazes de estabelecer parâmetros críticos às contradições sociais latino-americanas e aportar rumos na construção de uma utopia e de uma outra modernidade.
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Data de Publicação: 08/12/2022
Autoria: Nuno Gonçalves Pereira
Bibliografia
CORNEJO-POLAR, Antonio. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Centro de Estudios Literarios “Antonio Cornejo Polar”, 2003.
Como citar este verbete:
PEREIRA, Nuno Gonçalves. "Heterogeneidade sociocultural". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h
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