EXPERIÊNCIAS DE DESCOLONIZAÇÃO DOS CORPOS E SABERES
ISSN: 2764-9407
ISSN: 2764-9407
EDIÇÃO ATUAL (VOL.1 2023)
Enter the Wu – Tang: Entre barras e espadas.
Resistência cultural e a experiência afro-americana nos EUA do Século XX
Bernardo de Melo Scalercio
Resumo: O presente artigo tem como objetivo produzir uma reflexão acerca da formação do hip hop como movimento musical e político e sua consolidação comercial durante a década de 1990. Originalmente um gênero musical associado a festas e comemorações, o hip hop notoriamente se tornou uma forma explícita de expressão política afro-americana. Sob essa perspectiva, o artigo procura apresentar e discutir as representações de resistência cultural e a experiência afro-americana no álbum de estreia do grupo de Nova Iorque Wu-Tang Clan, que muitas vezes tem sua expressão política suprimida entre seus contemporâneos.
Palavras-chave: hip hop, Wu Tang Clan, Estados Unidos.
Abstract: The aim of this article is to reflect on the formation of hip hop as a musical and political movement and its commercial consolidation during the 1990s. Originally a musical genre associated with parties and celebrations, hip hop notoriously became an explicit form of African-American political expression. From this perspective, the article seeks to present and discuss the representations of cultural resistance and the African-American experience in the debut album by the New York group Wu-Tang Clan, whose political expression is often suppressed among their contemporaries.
Keywords: hip hop, Wu Tang Clan, United States.
Introdução
“You are now about to witness the strength of street knowledge” (Você está prestes a presenciar a força do conhecimento das ruas, em tradução livre). É assim que Dr. Dre inicia a primeira faixa do clássico álbum Straight Outta Compton do grupo californiano N.W. A, lançado em 1988. Dizer que o grupo é um dos marcos universais do rap é quase pleonasmo. O álbum é um marco para o gênero, para a costa oeste e para muito do que seria visto no hip hop nos anos seguintes. Mas a frase anunciada por Dre não serve só para definir Straight Outta Compton como uma experiência musical homônima, mas também nos serve perfeitamente para definir o que seria visto no rap americano na década de 1990.
Essa foi a era de ouro, e a produção musical estava a todo vapor. Seja Compton, Long Beach City na costa oeste, seja nos Projects em Nova York, o período não é valorizado como tal apenas por ser onde as bases e estruturas comuns do estilo foram sedimentadas, mas também pela revelação de artistas atemporais como 2Pac, The Notorious B.I.G, Nas, Jay – Z, Outkast, Snoop Dogg e a lista continua. A discografia de muitos desses artistas é indispensável quando pensamos na construção da história e legado do hip hop. Seria simplesmente impossível pensar o rap como gênero que conhecemos hoje sem citar Doggystyle (1993), Illmatic (1994), Ready to die (1994) ou The Chronic (1992), por exemplo.
Ainda que sua origem remonte há pelo menos 2 décadas, das chamadas block parties em Nova York, os meados da década de 1980 representaram de fato o refinamento do gênero e a década seguinte definiu de fato a popularização do estilo e a criação de subgêneros mais específicos como Gangsta Rap, G – Funk e Alternative hip hop. Olhando para um contexto em que originalmente o gênero foi criado para festas, onde se buscava exaltar o quão bom se podia ser – o que nunca foi dissolvido com o tempo, a autoestima e a ostentação se tornaram quase que inerentes ao rap durante os anos 90 com artistas como 2Pac – a música The Message (1982) do grupo Grandmaster Flash and the Furious Five surge descrevendo problemas sociais presentes e vivenciados na Nova York dos anos 80, como desemprego, criminalidade, o sistema educacional e as drogas. Com a possibilidade de expansão da música, o rap também deixou de ser um estilo tocado somente em festas e fez seu nome nas ruas, o que possibilitou que mais músicas relatando a realidade dos artistas ascendentes da época pudessem ser produzidas.
Logo, a ideia de relatar sua realidade e suas vivências se tornou algo comum para o hip hop, de uma forma bem generalista. Nunca houve uma produção tão consciente e real da vivência afro-americana quanto no período de meados da década de 1980 e 1990. Ainda que com a popularização e início inevitável da comercialização em massa do rap como estilo musical as letras tenham virado um outro cosmos a ser explorado, o que não está para ser debatido é se isso diluiu o peso do gênero ou não. Quando se remonta às suas origens e seus fundamentos, é simplesmente impossível separar o rap da política. É de extrema importância que ainda nos dias de hoje não esqueçamos de onde o hip hop surgiu, quem o construiu e como o construiu. Hip hop is black culture. E sempre vai ser.
É preciso relembrar quem construiu essa cultura que se tornou tão popular e universal. E ainda que tantas portas tenham sido abertas para novos artistas fazerem seu nome e expressarem sua arte de forma livre, em um mundo marcado pelo consumo rápido e acessível de todo tipo de conteúdo, a música se tornou de valor baixíssimo pelo ponto de vista de uma cultura completamente dominada pelo Tik Tok e a ascensão de “rappers” brancos falando futilidades. É necessário que se relembre onde tudo começou e como isso tudo foi possível.
Enter the Wu-Tang (36 Chambers)
Nesse sentido, Enter the Wu – Tang (36 Chambers), álbum lançado em 1993 e um dos mais influentes de sua década, pode nos ajudar a entender a política, musicalidade, estilo e o retrato de toda uma época, da história e da música. Assim como The Chronic está para a costa oeste, Enter the Wu – Tang está para a costa leste. Dois álbuns fundamentais que ajudaram a moldar a estética e estilo de suas respectivas localidades, em seu próprio mérito. Não se pode falar do hip hop na costa oeste sem citar Dr. Dre, assim como não se pode falar da costa leste e esquecer o Wu Tang Clan.
Wu Tang Clan é um grupo formado por nove integrantes e que surgiu na Ilha de Staten, em Nova York, tendo os “Projects” como cenário – conjuntos enormes de prédios construídos pelo governo de NYC como forma de moradia popular. A história desses, literalmente, “projetos”, é bastante interessante e nos ajuda a esclarecer melhor o contexto que o grupo cresce e reproduz em sua arte.
O NYCHA – New York City Housing Authority – foi um órgão criado em 1934 como uma forma de combater a péssima condição de moradia na cidade em consequência da crise de 1929. A construção de grandes complexos de moradia pública surgiu como solução para limpar e reconstruir a paisagem urbana da cidade que foi dominada por cortiços. Entretanto, inicialmente esses complexos não eram destinados a pessoas de baixa renda. Durante o período de 1953 a 1968, o NYCHA excluía a maioria dos presentes no programa de assistência do governo através de uma série de fatores como histórico de trabalho irregular, mães solteiras, falta de mobília e alcoolismo. Em 1968, por pressão de movimentos sociais e do próprio governo federal, o órgão diminuiu sua seletividade e ao longo da década de 1970 a porcentagem de moradores em programas de assistência do governo dobrou, assim como o número de moradores afro-americanos.
Durante esse mesmo período, a cidade enfrentou diversas dificuldades. Com a transição entre as fábricas e o trabalho baseado em tecnologias e informações, essas empresas procuravam por localidades com menos impostos e mão de obra mais barata. Nesse contexto, o governo cortou verbas para serviços sociais e a construção de prédios luxuosos criou uma situação em que havia poucas escolhas de moradia, oportunidades de emprego e os programas vigentes de assistência social se tornaram quase mínimos. Não podemos esquecer o grande movimento de migração para os subúrbios, intensificado no período pós Segunda Guerra Mundial, que tornou os centros urbanos grandes espaços de segregação, de classe e raça. O padrão de vida americano estava se tornando o subúrbio da classe média e não mais a vida urbana. Tal transição gerou um vácuo de investimento público que afetou principalmente a população mais pobre.
Então, no ano de 1975, a cidade de Nova York enfrentava uma séria crise econômica, que foi balanceada com um empréstimo com o próprio estado de Nova York, o que resultou em cortes severos nos serviços da cidade. Como consequência, a cidade enfrentava pobreza, altas taxas de criminalidade, falta de moradia, emprego e uma ascensão do tráfico de drogas. Problemas esses que afetaram principalmente a população negra, que vivia nos complexos de moradia popular do governo – os Projects.
Entretanto, esse é um contexto histórico e social comum aos rappers que estavam produzindo em Nova York na década de 1990. Dessa forma, a vivência nos Projects é inseparável de obras de artistas como Jay-Z, Mobb Deep, Nas e KRS – One, por exemplo. Sendo assim, o que diferencia o Wu-Tang Clan desses artistas?
Em uma visão extremamente supérflua, e comparado com alguns de seus contemporâneos, como KRS – One, por exemplo, o grupo pode ser visto como “menos político”, na medida em que em seu primeiro álbum não se encontra uma música explicitamente reivindicadora ou um grito de revolta, como Sound of da Police do anteriormente citado KRS – One. De certa forma, o grupo comumente é valorizado por seus ideais empreendedores, não só vistos no chamado “plano dos cinco anos” do líder RZA, que conta em seu livro The Wu-Tang Manual que antes de formar o grupo oficialmente, pediu aos integrantes que colocassem suas carreiras individuais em pausa, mas que em cinco anos os levaria ao sucesso.
A ideia era juntar todos os integrantes, produzir um álbum e colocar seus nomes no mapa. E com o sucesso do primeiro álbum, abrir espaço para que cada um dos integrantes pudesse explorar sua carreira solo. E isso deu certo demais. A quantidade de conteúdo solo de membros do coletivo vistos entre 1993 (com o lançamento de Enter the Wu Tang) e 1997 (lançamento de Wu-Tang Forever, segundo álbum de estúdio do grupo) foi gigantesca. O que rendeu álbuns mais que clássicos do hip hop como Only Built 4 Cuban Linx de Raekwon, Tical de Method Man, Ironman de Ghotsface Killa, Liquid Swords de GZA e Return to the 36 Chambers: Dirty Version de ODB.
De certa forma, a estrutura do primeiro álbum possibilitou muito que isso acontecesse. A produção densa, porém simples, de RZA misturava samples de filmes de artes marciais chineses com batidas sujas, o que torna a sonoridade do álbum inteiro incomparável e extremamente única. Até os dias de hoje nada soa igual a Enter the Wu-Tang. Junte a produção singular com nove membros sedentos pelo microfone e nenhum deles soa igual. A individualidade dos membros se apresenta de forma bem orgânica e natural, possibilitando a expansão de suas carreiras individuais.
Além disso, esse ideal empreendedor também é presente em diversas de suas letras, como em Glaciers of Ice, por exemplo, faixa presente no álbum solo de Raekwon, Only Built 4 Cuban Linx (1995), onde Ghostface Killah afirma “My seeds, run with his seeds, marry his seeds. Thats how we keep Wu-Tang money all up in the family.”
A problemática de resumir o grupo a essa única faceta é que a posição empreendedora de RZA não deixa de representar uma forma de resistência, de superar um contexto de opressão e dificuldades diversas. Entretanto, para o pesquisador estadunidense Michael Blum, pós-doutor em História pela Universidade de Memphis, muitos estudos que não compreendem o grupo como político ou consciente apresentam uma falta do contexto histórico ou cultural necessário para compreender as questões políticas apresentadas em sua obra. Dessa forma, ele define que existem três conceitos fundamentais para compreender por completo a obra do Wu-Tang Clan: os filmes de Kung Fu, o 5% da Nação do Islã e as “crônicas das ruas” como um espaço de resistência ao racismo nos Estados Unidos (BLUM, 2021, p. 1).
Talvez a parte mais genial da produção de RZA é como ele utiliza desses pedaços de diálogos, sons de batalha, adagas e espadas dos filmes de Kung Fu para complementar seus beats, tornando todo seu trabalho mais visual. O próprio nome do grupo se refere ao filme Shaolin VS Wu Tang, lançado em 1983 e dirigido por Gordon Liu. É interessante pensar como o grupo se apropria da estética desses filmes e os adapta ao seu cenário. Em um tempo dominado pelo Blaxploitation, filmes que apresentavam estereótipos de pessoas pretas como o cafetão ou o gângster, os filmes de Kung Fu apresentam muitas vezes um guerreiro ou grupo que é oprimido por uma figura mais poderosa e que usa de sua raiva, força ou determinação para lutar contra essa força opressora maior.
Essa referência parece na superfície puramente estética, mas está fortemente enraizada na negação de estereótipos racializados e na construção de uma nova identidade. Ainda que esses estereótipos criados nos anos 1970 tenham sido depois apropriados pelo hip hop e transformados por outras interpretações, a inspiração do grupo nos personagens desses filmes de Kung Fu representa uma busca por construção de autoestima negra que de certa forma é intrínseca a obra do Wu, que também pode ser vista na relação do grupo com o 5% da Nação do Islã ou a Nação dos Deuses e Terras.
Em 1964, Clarence 13X, então membro da Nação do Islã, decidiu abrir sua própria academia nas ruas. Ele basicamente condensou o conhecimento presente nas “Nation’s Lost-Found Lessons” e decidiu espalhar esse conhecimento, sob o nome de Allah. Assim como a Nação do Islã, a escola de Clarence 13X negava a história oficial e a maioria das religiões organizadas com a ideia de um “Deus misterioso sobrenatural”, substutuindo-a pela ideia de que o próprio homem negro é Deus. Segundo sua descrição no The Wu Tang Manual, um Deus de sua família, universo e destino.
O nome 5% da Nação do Islã vem da crença de que seus adeptos são o 5% da humanidade que reconhecem o aspecto divino do homem negro e vivem uma vida justa. 85% são as pessoas cegas mentalmente, que ainda não descobriram a verdade sobre o mundo, enquanto os últimos 10% são demônios que reconhecem a verdade, mas a negam para manter o restante ignorante.
13X, sabendo que aquela juventude preta precisava do acesso mais rápido ao conhecimento que a Nação do Islã oferecia, dividiu esse conhecimento em 120 lições, que deveriam ser decoradas e que, segundo RZA, a qualquer momento poderiam ser testadas por irmãos nas ruas. Eles então fariam um círculo e questionariam sobre seu conhecimento nas 120 lições. Essa prática era chamada de “Cypher”, gíria comum no hip hop até os dias de hoje.
Por fim, dentro do conhecimento dos 5% da Nação do Islã junto às 120 lições estão a Matemática Suprema e o Alfabeto Supremo. Uma lista de princípios, onde cada letra e cada número representam um conceito, que ajudariam seus seguidores a compreenderam a relação do homem com o universo. Pela memorização dessa miríade de conceitos, segundo RZA, os membros do 5% eram conhecidos pela sua destreza com as palavras. Essas interações foram responsáveis por grande parte da popularização do Islã na juventude negra nas décadas de 1960 e 1970.
A relação do Wu Tang Clan com o 5% da Nação do Islã é um dos maiores construtores da ideia de que sua obra não só representa a resistência cultural ao racismo estadunidense, como está diretamente relacionada à construção da autoestima negra. Como o próprio RZA afirma:
Vivendo na pobreza e sendo de um dos povos oprimidos na América, você sabe que é limitado, mas sente que não deveria ser. Esses professores nos ensinavam, você é o homem original de toda a civilização. Ouvindo isso quando criança, é tipo, “Uau. Quem, eu?” Era poder. Mas você cresce para entender que esse conhecimento não é só para pretos ou brancos. É algo que toda humanidade precisa saber. (RZA, 2005, p. 41, tradução nossa)
Após a fala de RZA é difícil complementar com argumentos como o 5% da Nação Islã representa um elemento importante na luta antirracista. Apenas o conhecimento de que o próprio homem negro é Deus é um enorme empoderador dessa população que foi e ainda é sistematicamente oprimida pela sociedade estadunidense. Entretanto, é compreensível como tal conhecimento passou batido dentro da obra do Wu Tang Clan. Ainda que esteja fortemente presente no álbum Enter the Wu Tang, muitas referências se encontram na Matemática Suprema, como no início da faixa 7th Chamber, onde U-God comenta sobre estar vindo buscar sua “Culture Cypher”. Buscando na Matemática Suprema, “Culture” representa o número 4, enquanto “Cypher” representa o número 0. Nesse contexto, “40 ounce Beer”, uma cerveja de 40 onças.
Por fim, a última peça necessária para compreender a obra do Wu Tang Clan, segundo Blum, é o uso das “crônicas das ruas”, onde os artistas utilizam da música para explicitar suas vivências, problemáticas ou não, e sua relação com o seu local de origem – nesse caso, a Ilha de Staten, Nova Iorque. Em Enter the Wu-Tang e talvez em grande parte da discografia do grupo de uma forma geral (senão em sua totalidade) não existe uma música que apresente um tom além de depoimento, o que é muito interessante.
Uma das músicas mais famosas do grupo é a faixa “C.R.E.A.M (Cash Rules Everything Around Me), onde Raekwon e Inspectah Deck contam sobre suas dificuldades na infância com uso de drogas, envolvimento no crime e o estado da juventude, se perdendo nas mesmas coisas que eles. “C.R.E.A.M.” é um som reflexivo, assim como “Can It Be All So Simple” e “Tearz”. São abordagens diferentes de explicitar problemas sociais que lembram muito mais The Grandmaster Flash do que N.W.A, por exemplo, muito mais assertivos, violentos e viscerais em suas afirmações. Para Blum, explicitar tais problemas cria um ambiente onde a mudança se torna algo possível, além de dar uma qualidade visual à sua obra (BLUM, 2021, p. 4).
A questão central que precisamos tomar nessa discussão, e que pesquisadores mais atuais como Michael Blum ajudaram a construir, é que mesmo essas músicas representam sim uma ação política e de resistência, assim como o hip hop de uma forma geral. A relação da música com a experiência afro-americana urbana é inseparável e Enter the Wu Tang (36 Chambers) poderia facilmente ser resumido por essa expressão. Nove jovens negros que viveram o apogeu da crise na cidade. A violência policial, a degradação da moradia popular, o uso e tráfico de drogas, a criminalidade. Relatar isso de forma explícita, em cima de beats fortes e marcantes, não deixa de ser um ato político, que expôs ao país a realidade daqueles conjuntos de moradia popular, assim como muitos outros rappers fizeram. Isso, somado aos outros fatores como a apropriação dos filmes de Kung Fu e o 5% da nação do Islã, somente nos prova o quão político e denso é o álbum. Uma relíquia dos anos 1990.
Referências Bibliográficas
BLUM, M. The Wu-Tang Clan and Cultural Resistance. Ethnocentrism and Its Many Guises: Proceedings of the Southern Anthropological Society, 2017, 46, 97–115. (2021)
RAEKWON. Only Built 4 Cuban Linx. RCA Records, New York, 1995.
THE RZA. The Wu- Tang Manual. Riverhead Books, United States of America. 2005.
THE WU-TANG CLAN. Enter the Wu-Tang (36 Chambers). Sony Music Entertainment, New York, 1993.
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Data de Publicação: 24/10/2024
Como citar este artigo:
SCALERCIO, Bernardo de Melo. "Enter the Wu – Tang: Entre barras e espadas. Resistência Cultural e a experiência afro-americana nos EUA do Século XX". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/artigos
ISSN 2764-9407
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Colonialidade local do discurso e o lugar da branquitude em uma perspectiva indígena Payayá
Francisco Gonçalves Queiroz
Resumo: Este artigo procura investigar, através da abordagem contracolonial, as narrativas negacionistas da branquitude nas fontes jornalísticas. Para isto, foi necessário responder ao seguinte questionamento: De que forma o discurso da branquidade está imerso nos territórios indígenas? O discurso dos juruá (brancos) está localizado dentro do seu tempo presente, buscando se apropriar das contra-narrativas aborígenes na tentativa de se auto afirmarem “donos dessas terras” ou colocando os nativos-brasileiros como invasores. No primeiro momento, me dedico a apresentar a herança colonial dos europeus em Pindorama e sua ocupação no território; em sequência exponho, numa perspectiva indígena Payayá confluente com a cosmologia dos Guarani, como enxergamos a branquitude e por fim, identifico as influências da colonialidade local no discurso vigente entre os não-brancos. Finalizando, este trabalho tem por objetivo acadêmico contribuir para a compreensão dos diversos modos que as colonialidades do poder, do saber e do ser impactam a maneira de estar no mundo dos povos colonizados.
Palavras-chave: Perspectiva Payayá; Colonialidade; Branquitude; Discurso contracolonial.
Resumen: Este artículo busca investigar, a través de un enfoque contracolonial, las narrativas negativas de la blancura en las fuentes periodísticas. Para ello, fue necesario responder a la siguiente pregunta: ¿Cómo está inmerso el discurso de la blancura en los territorios indígenas? El discurso de los juruá (blancos) se sitúa en su tiempo presente, buscando apropiarse de las contranarrativas aborígenes en un intento de afirmarse como "dueños de estas tierras" o de situar a los nativos brasileños como invasores. En primer lugar, presento la herencia colonial de los europeos en Pindorama y su ocupación del territorio; a continuación, explico, desde una perspectiva indígena payayá confluente con la cosmología de los guaraníes, cómo vemos la blancura y, por último, identifico las influencias de la colonialidad local en el discurso vigente entre los no blancos. En conclusión, el objetivo académico de este trabajo es contribuir a la comprensión de las diferentes formas en que las colonialidades del poder, del saber y del ser impactan en la forma de estar en el mundo de los pueblos colonizados.
Palabras clave: Perspectiva Payayá; Colonialidad; Blanquitud; Discurso Contracolonial.
Introdução
O presente artigo visa elucidar, através da abordagem contracolonial, o termo que intitulo "colonialidade local do discurso", no qual me debruço para trazer narrativas da branquitude presentes no Jornal da Chapada (2023) e Brasil de Fato (2023). Nessas fontes, procurei identificar as formas de "inversão colonial", conceito este utilizado pela autora Geni Daniela Núñez Longhini (2022) da etnia Guarani para se referir à relação de conflito entre aborígenes e pessoas brancas, e as manifestações do "pensamento abissal", termo cunhado por Boaventura de Santos Sousa (2009) e que busca entender as variadas maneiras de exclusão do pensamento dos povos não-brancos, privilegiando o saber hegemônico.
Destarte, para identificar quem são os juruá (pessoas brancas, na língua Guarani e Guarani Mbyá) e qual o seu lugar no território nacional, se faz necessário refletir sobre a herança colonial do século XVI. Neste sentido, no decorrer dos anos, o crescente povoamento nas regiões contribuiu para uma centralidade desta discussão, tendo como pauta a tentativa de pôr os indígenas como invasores ou, em outros casos, fazendo uso de mecanismos político-institucionais para promover a anti-demarcação de terras com o discurso de que “há muita terra, para pouco índio”, facilitando assim o debate ideológico desumanizante contra as nações autóctones, nos colocando como falsos indígenas.
De acordo com a visão de mundo acerca da branquitude dos Guarani e do povo Payayá, ao qual eu pertenço, nós indígenas identificamos essa minoria percentual no Brasil além dos seus fenótipos, afinal sabemos que seu saber euro-etnocêntrico não se limita apenas a eles, estendendo-se às demais sociedades que foram colonizadas. Seguindo esta linha de raciocínio, do mesmo modo que a urbanização invadiu as aldeias, o pensamento aborígene também foi colonizado. O caso retratado no jornal O Globo (2023) demonstra o medo reacionário dos aliados dos colonizadores: a deputada Silvia Waiãpi, do Partido Liberal do Amapá, justifica seu posicionamento a favor do Marco Temporal a partir da ideia de que outros nativos “desejariam” voltar ao passado, impedindo o desenvolvimento do neoliberalismo no país. Isso demonstra como essa colonialidade não se resume aos povos europeus.
O lugar da branquitude
Pensar o lugar do homem branco como ser universal: Aníbal Quijano (2009, p. 81-83) se debruça sobre esses aspecto para esclarecer as relações de trabalho entre o colonizador e o colonizado, nas quais foi se estruturando o poder da branquidade sobre os povos originários. Para compreender esta dinâmica, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa M. M. Starling descrevem o processo que levou à colonização em Pindorama como o interesse dos portugueses em explorar a mão de obra indígena e a partir disso estabelecer, ao longo do tempo, a divisão territorial em capitanias hereditárias como forma de facilitar os negócios entre eles (2015, p. 37-44).
Para que houvesse o povoamento desses locais, foi necessário para a Coroa portuguesa enviar donatários, aos quais cabia administrá-los e repassar o lucro para a metrópole. Mesmo assim, o envio dos Governadores Gerais para a Bahia era imprescindível, porque além de terem a função de fiscalizar, eles também administravam esses locais trazendo consigo jesuítas e degredados para construírem amizades amistosas com os nativos. A atuação dos missionários na catequização dos aborígenes possuía um valor específico para eles, porque além de precisarem de fiéis, os cristãos em parte tinham uma concepção romântica sobre os povos originários, até descobrirem seu modo de vida cultural. Entretanto, cada jesuíta, ao longo contato com os autóctones, defendeu perspectivas distintas, atuando ora como aliados dos colonos, ora como contrários ao trabalho compulsório (FAUSTO, 2006, p. 43-51).
Como o processo de colonização pode ser analisado através da ótica da desumanização do outro e das atrocidades, nas quais se reflete o etnocídio, hoje no Brasil busca-se pensar o lugar social da branquidade inserido em uma herança colonial geradora de privilégios materiais e simbólicos, os quais se fixaram no decorrer dos séculos, produzindo desigualdades étnico-raciais entre grupos historicamente excluídos, conforme apontaram Aimé Césaire (1978), Lia Vainer Schucman (2012) e Cida Bento (2022). Portanto, entender o pensamento dos brancos por meio dos discursos produzidos por eles é necessário para desmistificar a lógica colonialista presente ainda hoje e a maneira como ela é estabelecida pelo racismo institucional. Antônio Bispo dos Santos (2023, p. 8-9), autor quilombola, em sua confluência afro-pindorâmica não se exime de contraloconizar essas narrativas negacionistas que almejam o desenvolvimento e de criticar esses espaços que foram demarcados em cidades por se sustentarem em perspectivas que não mais funcionam.
A parenta Geni Núñez, pertencente ao povo Guarani, em sua tese intitulada Nhande ayvu é da Cor da Terra: Perspectivas Indígenas Guarani sobre Etnogenocídio, Raça, Etnia e Branquitude (2022), analisa como sua nação identifica quem é branco e como a linha de raciocínio em relação a este tema segue uma cosmovisão que perpassa as características físicas das pessoas. Neste entendimento, reconhecer os brancos por meio dos seus pensamentos seria em certos casos algo incompreensível. Sua averiguação parte da premissa de relacioná-los à ligação com a propriedade privada, algo característico desde a invasão em 1500. Contudo, nesta compreensão, o parente Hugo de Oliveira Karai, também mencionado pela autora, percebe que os juruá colocam os indígenas como invasores, o que estabeleceria relações de conflito entre eles, compreendendo este e tantos outros casos como uma inversão colonial (LONGHINI, 2022, p. 90-92).
A narrativa, como apresenta o filósofo Michel Foucault (1996, p. 24-28), está sempre carregada de poder e se localiza em um determinado espaço-tempo das mais variadas formas. Com o homem branco não é diferente e é a partir desta lógica, que denomino de colonialidade local do discurso, que ele tende a expulsar aqueles que tem um tekó diferente do seu, sendo imigrantes ou não de determinado país. Ou seja, os juruá se reconhecem através dos seus ancestrais que emigraram para Pindorama e a partir disso se fixaram, gerando descendentes pelos quais se mantêm contemporaneamente e exigindo comprovações jurídicas das terras indígenas de acordo com o caso narrado abaixo (SANTOS, 2009, p. 23-28; BENTO, 2022, p. 22).
O Jornal da Chapada (2023) remonta a um fato ocorrido em 2023, quando o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) foi exposto por um vídeo que denunciava sua postura infringindo os Pataxó de Barra Velha, em Porto Seguro, no estado da Bahia. O argumento do deputado se configura nesta linha de raciocínio da colonialidade local do discurso, ao afirmar “que a propriedade tinha sido invadida” pelos nativos da região. Em outro meio de comunicação, o Brasil de Fato (2023), Luciano Zucco, também deputado federal, diz: "Uma família que tinha toda uma história nesse espaço, vocês arrancaram a força”. Em contraposição ao seu discurso, uma das lideranças indígenas, Zeca Pataxó afirma: “Isto é território indígena”, “Chegaram lá sem mandato judicial, afrontando o cacique e as demais lideranças. É inadmissível”. Segundo Zeca Pataxó, eles ocuparam a fazenda porque estavam esperando a assinatura do Ministério da Justiça para confirmar a retomada do território, afinal já seria concedida pelos meios legais. De acordo com o jornal, esta área reivindicada pelos deputados foi transferida para uma empresa privada, que comandaria o Parque Nacional Pau Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro.
Sobre esta situação, Albert Memmi, em sua obra clássica O Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador (1977), consegue identificar toda a estrutura que nos segrega mediante a legitimação do poder da branquidade, cujo objetivo principal consta na aceitação do colonizador, o qual pretende destruir a vida que os nativos possuem porque estes podem atrapalhar seus propósitos econômicos e políticos em prol do avanço do neoliberalismo. A construção dessa ideologia não está mais ligada à fase mercantil do capitalismo, contudo permanece contrária aos direitos originários, que não se baseiam no contato com a terra como uma propriedade. Entretanto, por ingenuidade, eles negam a conexão que esses povos têm com seu território. E muitas vezes, a lei é utilizada na tentativa de favorecer seus interesses e dos grupos pelos quais se articulam entre si, infringindo a Constituição Federal.
“Procura tirá-lo do pensamento, imaginar a colônia sem o colonizado. Um refrão mais sério do que parecia afirma que ‘Tudo seria perfeito… se não houvesse os indígenas’. Mas o colonialista se dá conta de que, sem o colonizado, a colônia não teria sentido algum.” (MEMMI, 1977, p. 51-72). Em suma, toda sistematização da narrativa histórica que busca estabelecer o progresso está fundada nas alianças que os europeus tiveram, embora estes detenham bem menos aliados. Todavia, o intuito ainda é dividir para conquistar os aldeados, enfraquecendo-os e garantindo-lhes a submissão em troca de garantias quando lhes convêm.
Neste sentido, os indígenas compromissados com o discurso progressista e anti-demarcação de terras, como ilustra a defesa feita pela deputada Silvia Waiãpi do Partido Liberal (PL-AP) para o jornal O Globo (2023), remetem à projeção que o colonizado tem em se tornar o colonizador, já que foi induzido para tanto. Não obstante, o caso da deputada que afirma que o Marco Temporal é necessário para impedir que o Brasil regrida a Pindorama, configura uma tentativa complexa de compreender sua identidade, pelo fato da mesma se autodeclarar aborígene pertencente à etnia Waiãpi do estado do Amapá. Contudo, do mesmo jeito que ela reivindica sua ancestralidade utilizando-se da linguagem dos brancos, Silvia renega o direito de ser reconhecida pelo próprio povo. Apesar dessa falta de identificação por parte dos Waiãpi a seu respeito, é imprescindível reconhecer que a deputada jamais deixará de ter sua origem étnica, afinal todos nós temos interesses e muitas das vezes eles podem não ser honestos, incluindo todos que compartilham o mesmo local (FANON, 2008, p. 33-40).
O jornalismo, por ter uma função importante como meio de comunicação, também é fruto de invenções dos não-indígenas, pois em sua arquitetura institucional nada tem de indígena ou contracolonial. Contudo, independente se o autor do texto seja uma pessoa preta/negra, amarela ou branca, a corporação atende o que é relevante para si, pois:
“São capazes, os jornais, de revelar verdades e aspectos da realidade que certos interesses políticos e econômicos preferiria conservar ocultos; mas também é dos jornais a possibilidade de construir meias-verdades, de silenciar sobre certos fatos e não outros, de selecionar e redefinir a informação a ser transmitida. A um só tempo, os jornais retratam e elaboram representações da realidade e já modificam e interagem sobre esta mesma realidade” (BARROS, 2023, p.12-13).
O medo do colonizador e do seu aliado de que possa existir um retorno ao passado, pensamento particularmente reacionário, se deve ao fato de entender a insustentabilidade das suas mitologias. Em suma, milhões de pessoas ainda acreditam ser possível a permanência do capitalismo neoliberal. Suas percepções são capazes de destruir essa natureza indócil que os mesmos necessitam para produzir e, por sua vez, procuram construir nestes lugares “caminhos de ferro através da selva, secagem dos pântanos, inexistência política e econômica da população autóctone, são na realidade uma e a mesma coisa” (FANON, 1961, p. 263). Isto significa que, para os brancos, o “índio” sem terra representa a assimilação, posto que não haveria como reivindicar seu direito originário de acesso a ela - algo realizado durante anos pelo censo demográfico nas décadas de 1940 a 1980, ao integrá-lo como pardos - e a negação de sua identidade, pois se pauta em arquétipos essencialistas, esperando por purezas raciais inexistentes conforme aponta Felipe Tuxá (2021, p. 23-31).
Metodologia
Como aponta Antônio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer (2023), o ceticismo entre os indígenas e quilombolas acerca da vida que estamos vivenciando atualmente faz parte da retirada de nosso direito de escolha. Por isto, é inocente pensar/falar o seguinte: “E ainda tem gente que diz que o colonialismo acabou!”. Crer no fim do colonialismo exclui toda a possibilidade de que para tudo exista um fim, porém Nêgo Bispo nos faz uma provocação sobre a maneira de estar no mundo e de contracolonizar esse negacionismo, pensando de forma cíclica para entender a essência do colonialismo (p. 64-67). Boaventura de Santos Sousa (2009), Aníbal Quijano (2009), entre outros intelectuais decoloniais que se debruçaram em compreender esta base estruturante em Abya Yala, buscaram conceber como essas feridas coloniais estão inseridas nas sociedades colonizadas. Em uma análise indígena é necessário se questionar: De que forma o discurso da branquidade está imerso nos territórios indígenas? O conceito por mim designado debruça-se numa perspectiva onde a narrativa da branquitude está posicionada sempre no tempo presente e quando procura falar do passado, sua posição se reflete como “donos da terra”. Neste sentido, o modo como eles enunciam parte da mesma premissa violenta que é a inversão colonial de dizer: “há muita terra, para poucos índios”, justificando a diminuição dos povos originários no país, sugerindo que a população aborígene que luta pela demarcação de terras não seria, neste caso, “índios de verdade”, negando toda história do etnogenocídio em Pindorama.
Outrossim, quando assisti ao filme O Grande Mestre 4 (2019) na Prime Vídeo há exatamente uns cinco anos, me deparei com uma cena que me chamou bastante atenção, que trata do contexto racial contra os povos amarelos e mais especificamente do discurso que a branquitude estadunidense possui no espaço norte-americano. Acerca disso, pude perceber o quanto esse grupo têm semelhanças entre si, enquanto pessoas brancas - racialmente falando -, independente do lugar onde estejam. A conjuntura que os povos originários possuem no atual Brasil não se distingue daquela porque os descendentes dos portugueses, espanhóis, holandeses, entre outras nações de origem europeias, dispõem do mesmo posicionamento, o qual denominei de "colonialidade local do discurso". Neste artigo procuro me posicionar numa abordagem contracolonial, cujo objetivo é identificar, através das fontes jornalísticas, essas narrativas que a branquidade propaga ao utilizar a inversão colonial e a desumanização inserida no racismo anti-indígena sob os direitos originários dos aborígenes.
Considerações Finais
O contato que os europeus tiveram durante o século XVI transformou radicalmente a vida das populações que aqui habitavam e ainda permanecem existindo, seja em contexto rural ou urbano. Deste modo, algumas questões que levam os indígenas a lutarem pelo seu território fazem parte de sua própria retomada, onde existe também o reconhecimento como cidadãos plenos em direitos e deveres, respeitando sua autodeterminação e a garantia constitucional. Todavia, em meio a conflitos territoriais entre os povos originários e fazendeiros, essas situações se alastram em diversas regiões do Brasil, dificultando assim a retomada, devido aos seguintes fatores: o primeiro se deve ao apoio que os ruralistas recebem de determinados partidos da extrema-direita e neoliberais, que buscam o desenvolvimento político-econômico; o segundo, o fato de alguns indígenas apresentarem discursos e mentalidades reacionárias que a branquitude possui historicamente sob a extensão geográfica do país, como se fossem suas. Isto significa que o lugar dos brancos em possuir fácil acesso tanto meios de comunicação em massa, aos aliados indígenas e não-brancos na política e à economia somente fortalece essa estrutura narcísica/racista de poder que eles detêm para nos manter numa realidade que seus antepassados desejavam.
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Data de Publicação: 29/04/2024
Como citar este artigo:
QUEIROZ, Francisco Gonçalves. "Colonialidade local do discurso e o lugar da branquitude em uma perspectiva indígena Payayá". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2024. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
ISSN 2764-9407
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A experiência afrodiaspórica brasileira sob o olhar do carnaval contemporâneo
Gabriela Barros Vasconcelos
Resumo: O presente artigo busca pensar o carnaval contemporâneo a partir de suas múltiplas facetas, partindo de uma análise descolonizadora que interpreta a festividade como produtora/reprodutora de conhecimento, trazendo sujeitos, até então excluídos do palco principal, para o centro dos debates sociais e culturais. Em um primeiro momento é traçado um panorama histórico da reemergência das identidades africanas através do Entrudo, festividade luso-brasileira precursora do carnaval e importada durante a segunda metade do século XVIII, em um contexto de escravização e intensa repressão social. Em um segundo momento, é abordado um dos maiores símbolos de expressão da resistência negra presentes no carnaval contemporâneo: o Ilê Aiyê, primeiro bloco negro brasileiro responsável por resgatar a ancestralidade africana e torná-la pauta política através da fundação de inumeras ações afirmativas.
Palavras-chave: Carnaval; resistência negra; Ilê Aiyê.
Abstract: This article seeks to think about contemporary carnival from its multiple facets, starting from a decolonizing analysis as it interprets thes festivity as a producer/reproducer of knowledge, bringing subjects, until then excluded from the main stage, to the center of social and cultural debates. At first, a historical overview of the reemergence of African identities is drawn through Entrudo, a Luso-Brazilian festival that preceded carnival and was imported during the second half of the 18th century, in a context of enslavement and intense social repression. Soon after, there is an exhibition of one of the greatest symbols of expression of black resistance present in contemporary carnival: the Ilê Aiyê, the first Brazilian black block responsible for rescuing african ancestry and making it a political agenda through the foundation of numerous affirmative actions.
Keywords: Carnival; Black resistance; Ilê Aiyê.
Introdução
Formado em fins da década de 1990, o Grupo Modernidade/Colonialidade tem por objetivo a ruptura com a visão eurocêntrica em relação à América Latina, promovendo intensos debates sobre as especificidades históricas e diferentes formas de colonização ainda vigentes no continente americano. A partir da perspectiva decolonial proposta pelo grupo, pode-se notar o quão forte é a presença das ditas “normas” europeias que atuam sobre os campos do ser e saber, ou seja, sobre o modo como cada indivíduo deve agir e pensar, influenciando diretamente a produção de conhecimento. Pode-se também contestar a validade do conhecimento “universal” tão valorizado no interior do ambiente acadêmico. Afinal, será mesmo possível produzir um discurso neutro falando de um lugar específico marcado por grandes desigualdades na divisão de cargos hierárquicos?
O racismo apresenta-se como uma das principais armas atuantes na manutenção das relações de poder presentes nas sociedades ocidentais, fruto de uma longa construção simbólica e escravista criada para fortalecer a ideia de uma suposta superioridade branca e ocidental em prol de seus interesses econômicos, infiltrando-se nos setores sociais e moldando as interações neles existentes. A implementação do racismo implicou consequentemente a exclusão de indivíduos pretos das estruturas políticas e sociais, relegando-os às margens das estruturas oficiais e criando um grande fosso de desigualdade representativa expressa através da dificultação do acesso ao mercado de trabalho e do tratamento social desigual praticado pelas autoridades institucionais. Portanto, ao partir da análise histórica e social, todo e qualquer discurso, seja de caráter político ou científico, estará submetido às forças simbólicas e suas às consequências dentro de determinada sociedade, onde, em sua maioria, há o endossamento do discurso do grupo dominante em detrimento do discurso do “Outro”, inviabilizando um pleno exercício da cosmopolítica.
Basta olhar para o contexto atual brasileiro referente ao crescente contingente de movimentos sociais como, por exemplo, os movimentos da diáspora africana, para entender melhor esta dimensão. Intelectuais como Lélia Gonzalez (1935-1994) lutaram, e ainda lutam, contra a exclusão de trabalhos acadêmicos centrados na situação da comunidade preta no contexto brasileiro, a fim de descolonizar o pensamento e propor novas epistemologias para a investigação dos fenômenos sociais existentes. Aqui o apreço ao estudo dos fenômenos sociais com base na subjetividade dos sujeitos ganha outra dimensão, ou seja, as experiências vividas por sujeitos oprimidos ganham um novo olhar e valorização dentro do campo da produção de conhecimento, ocorrendo uma subversão de valores entre conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo.
Diante da análise dos fenômenos sociais e culturais faz-se notória a inviabilidade de produzir um conhecimento universal seguindo as normas científicas do Ocidente, uma vez que a história da humanidade é marcada por disputas e construções de estruturas hierárquicas, enraizadas e transportadas ao longo dos séculos, incorporadas por um grupo dominante que sustenta seu poder até o presente momento. Daí surge a seguinte questão: como produzir conhecimento científico baseado na diversidade, sendo que o mesmo é produzido e legitimado pelo grupo dominante? Com certeza uma das maneiras mais eficazes para resolver essa problemática é abrir caminho para uma teorização da experiência, que se torna um valioso exercício para a descolonização do conhecimento.
A produção de conhecimento sobre o “dominado” encontra-se muitas vezes dentro da própria comunidade excluída, sendo expressado por meio de atividades comunitárias que impactam a vida política e cultural cotidiana. A carga de subjetividade dessas atividades expressa a constante luta e resistência contra um sistema violento, luta essa que frequentemente faz usos do passado para fugir de sua historicidade opressora e subverter os papéis entre oprimidos e opressores. Atualmente, um dos meios de maior expressão da subjetividade, ou resistência, presentes no Brasil são as manifestações artísticas, seja a música, a poesia ou a dança. Por intermédio delas, muitos indivíduos que habitam as margens da sociedade brasileira têm a chance de se expressar politicamente a fim de trazer à tona sua realidade. Além disso, as manifestações artísticas servem como potenciais veículos de propagação do conhecimento para temas que são constantemente discriminados e desvalorizados dentro do pensamento ocidental.
Entre as manifestações artísticas de maior impacto presentes no Brasil pode-se destacar o carnaval, celebração na qual fica evidente a grande diversidade cultural presente no país, de modo que não podemos mais falar de um carnaval, mas sim de carnavais. Devido à extensão territorial e às diferentes culturas aqui presentes, cada região interpreta a festividade a partir da sua visão de mundo, traduzida através da incorporação de sua religiosidade, sua música e seus ideais. Uma característica comum à maioria das regiões brasileiras é o uso do carnaval como instrumento de crítica social, que expõe as problemáticas políticas, sociais e raciais nas quais a maioria da população brasileira se encontra inserida. Um claro exemplo são os desfiles promovidos pelas escolas de samba, sendo estes importantes receptores e propagadores das cosmovisões africanas através de suas músicas, elemento central dentro do universo religioso e cultural de muitas etnias.
No universo carnavalesco da Bahia podemos destacar o papel exercício pelo Ilê Aiyê, um bloco de carnaval afrodiaspórico criado em 1974 com foco em promover a valorização da cultura africana e o orgulho negro. Surgido em um contexto onde as dinâmicas raciais ditavam quem era digno de participar das sociedades carnavalescas da época, o Ilê Aiyê, criado a partir do terreiro Ilê Axé Jitolu, se propôs a ser não somente uma festividade que abraçasse as camadas mais populares da sociedade baiana, mas também um projeto político social capaz de combater a desigualdade e desconstruir a narrativa ocidental.
A apropriação do carnaval pela população afro-brasileira tem suas raízes no século XVIII com a comemoração do Entrudo, sendo palco de diversas proibições e resistências. Mas afinal, como o carnaval contemporâneo tornou-se essa potência política e cultural capaz de pôr em evidência culturas e sujeitos que por séculos foram, e ainda são, excluídos da narrativa histórica brasileira?
Do Entrudo às comunidades-terreiros: uma perspectiva histórica da reemergência das identidades africanas através da festividade portuguesa
O Entrudo foi inserido no Brasil durante a segunda metade do século XVIII, trazido por imigrantes portugueses pertencentes à Ilha da Madeira, Cabo Verde e Açores. Durante a Idade Média, a comemoração iniciava-se às vésperas da Quaresma e marcava o começo de grandes festas onde se permitia a prática dos excessos. O Entrudo caracterizava-se por danças como o maxixe e as batucadas de origem africana e brincadeiras típicas como, por exemplo, o arremesso de limão de cheiro, jogar água e farinha em desconhecidos na rua, assoprar feijão e milho pelo canudo, entre outros. Era o momento da liberação da sensualidade e liberdade, último dia em que se podia comer carne vermelha e beber em excesso, além de ter relações sexuais.
A festividade era também marcada por uma forte presença popular, sendo muitas vezes taxada de incivilizada por intelectuais e membros da aristocracia e alvo de constantes proibições e críticas. Importante salientar que até mesmo a população negra escravizada era liberada por seus senhores para a celebração e, coincidentemente, há poucos registros de fuga durante o período (GÓES, 2020, p. 2).
Mesmo com este cenário de maior liberdade ética e moral, fora dos padrões rígidos impostos pela igreja, fez-se necessária a fixação de normas que reafirmassem o lugar de cada indivíduo dentro da sociedade colonial. Com isso, mesmo que os escravizados pudessem usufruir da festividade, ainda eram submetidos a duras restrições sociais como serem proibidos de praticar as brincadeiras típicas de carnaval contra indivíduos brancos, enquanto estes teriam passe livre para tal ato. Também tinham o acesso restringido aos famosos bailes de máscaras, que representavam uma tentativa da elite colonial de apagar a herança “pagã” do Entrudo (que segundo o pensamento ocidental, seria fruto de toda selvageria e incivilidade daquela sociedade) e associá-lo aos costumes europeus tidos como mais civilizados. Independente de tais restrições, o Entrudo proporcionava à população negra um instrumento vital de crítica social através do ato de fantasiar-se de velhos europeus e membros da aristocracia, utilizando vestimentas e adereços típicos destas classes, podendo ser interpretado como um claro exercício de crítica à configuração social da época.
Os estilos musicais africanos inseridos na festividade consistiram em importantes atos de resistência diante do cenário excludente do pensamento ocidental. Os chamados batuques, palavra generalizante que designa as danças e bailes provenientes da cultura africana, na qual o samba se encontra inserido, eram populares entre uma parcela significativa da população brasileira colonial, sendo apreciados tanto por negros, mestiços e brancos. Os batuques foram introduzidos na cultura brasileira colonial através da vinda de grupos africanos e da incorporação de seus costumes. Pelo seu forte poder simbólico dentro das cosmovisões africanas, e por sua consequente popularização, os batuques em diversas oportunidades foram proibidos ou rechaçados pelas elites e autoridades governamentais, sendo alvo de constantes legislações e críticas de intelectuais da época. Desse modo torna-se evidente o forte incômodo causado no homem ocidental pelas manifestações simbólicas do Outro, pelas formas de ver e atuar no mundo que não condizem com o pensamento europeu. Para ilustrar melhor tal visão podemos recorrer aos relato do naturalista francês Alcide Orbigny (1802-1857) sobre os batuques, em sua publicação Viagem pitoresca através do Brasil:
Essa dança que reproduz no meio da semicivilização daquele país, quadros cínicos, só autorizados pela barbárie mais completa, não deixa de ser no Brasil a dança favorita de todas as classes e a única contra a qual os esforços da religião tem sido sempre vãos. (FLORES, 1996, p. 149-161)
Nota-se tal cenário repressivo até meados de 1888, com o fim do processo de abolição da escravidão. A partir daí há o florescimento de blocos e organizações, tanto comemorativas como religiosas, centradas especificamente em promover manifestações do universo simbólico africano, apresentando suas próprias narrativas em combate às teorias ocidentais que tentavam retratá-los como seres inferiores, desprovidos de cultura e intelecto. Os ranchos carnavalescos representam um belo exemplo de tais organizações. Nascidos em fins do século XIX e início do século XX, apresentam-se como um tipo de cortejo de caráter popular, fato que não atrapalhou sua crescente difusão entre a elite. Precursores das famosas escolas de samba, por meio deles organizavam-se desfiles e promovia-se a valorização do samba, da irmandade e das culturas africanas.
Nascidas dentro dos quintais de Mães de Santo e consideradas parte fundamental para o florescimento do samba, as comunidades-terreiros também desempenharam um importante papel de resistência no que tange às manifestações africanas de cunho cultural, social e ideológico, ao passo que se traduziram em um local de intensa troca e aliança entre a comunidade negra. Dentro do sistema de funcionamento das comunidades-terreiros, as dinâmicas sociais baseiam-se no parentesco comunitário, onde cada indivíduo exerce e participa ativamente das atividades a serem desenvolvidas. Um papel especial é reservado às mulheres, por serem consideradas integrantes fundamentais dentro da administração do terreiro e dos próprios rituais religiosos, na medida em que são as principais receptoras e distribuidoras espirituais. Já o sistema de conhecimento funciona por meio da vivência do rito. É a partir da experiência e participação ativa que o indivíduo iniciado na comunidade vai ter a oportunidade de reatualizar o universo simbólico negro. A tradição oral desempenha um papel fundamental nesse cenário uma vez que “há uma simbiose especial entre a expressão dinâmica oral e a estrutura rítmica" (THEODORO, 2009, p.227), transformando o poder dinâmico do som em um dos pilares dos rituais religiosos e da força da palavra, revestido-os de uma atmosfera de poder.
Foi ocupando esses espaços que a musicalidade negra, mais especificamente o samba, encontrou as condições favoráveis para o seu desenvolvimento e alcance nacional, tornando-se um dos estilos musicais mais populares do Brasil. O samba foi alvo de constantes apropriações para a legitimação de uma identidade nacional, o que pôs em evidência um grande paradoxo: promove-se a valorização de um estilo musical negro e genuinamente do povo, ao mesmo tempo em que há a tentativa de apagamento dos sujeitos por ele responsáveis, seja pela prática do racismo ou pela sua exclusão através da falta de políticas sociais efetivas.
Ilê Aiyê: O carnaval contemporâneo
“Que bloco é esse? Eu quero saber.
É o mundo que viemos mostrar pra você…”
O bloco Ilê Aiyê foi criado em 1974 por Antonio Carlos dos Santos, mais conhecido como Vovô, em colaboração com jovens afrodescendentes integrantes do terreiro de Mãe Hilda, Mãe de Santo do terreiro Ilê Axé Jitolu, localizado no bairro da liberdade em Salvador (BA). O projeto nasceu a partir da experiência de exclusão sofrida por Vovô na tentativa de inserir-se em clubes carnavalescos predominantemente brancos, sofrendo discriminação na hora de adquirir ingressos. Vovô percebeu então a necessidade de criar um ambiente em que negros, e todos que quisessem contribuir, pudessem desfrutar da festividade e sentir-se incluidos e representados de alguma forma. A iniciativa buscava radicalizar o modelo de carnaval até então vigente, dominado pela classe média-alta e desvinculado da diversidade cultural brasileira, desconstruindo o padrão estético dos blocos, da música e dos costumes, e atribuindo uma dimensão política à festividade para reivindicar a pauta racial. Importante salientar o contexto internacional da década de 70, quando houve o crescimento do setor musical de cunho ideológico entre a comunidade negra estadunidense, atribuindo lugar de destaque ao estilo musical soul, que consistia em um meio de comunicação efetivo de conhecimento e exaltação da cultura africana. Esse contexto claramente inspirou os fundadores do projeto Ilê Aiyê.
Não demorou muito para o projeto ser alvo de duras críticas por parte da mídia brasileira, sendo taxado de radicalista e intolerante por “atingir” a perfeita “democracia racial” defendida por aqueles que fecham os olhos para o passado e acabam por transplantá-lo em nosso presente. Em uma matéria do “Jornal a tarde”, publicada em 12 de fevereiro de 1975, ano da primeira apresentação do bloco, podemos ter noção da gravidade da denúncia:
BLOCO RACISTA – NOTA DESTOANTE - Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: Mundo Negro, Black Power, Negro para você, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de Bloco do Racismo, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte americano, revelando enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê, todos de cor, chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição existente no país contra o racismo é de esperar que os integrantes do Ilê voltem de outra maneira no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do instinto característico do carnaval. (VERGARA, 2017, p. 101)
Independente das críticas, o Ilê Aiyê hoje é considerado patrimônio cultural da Bahia, responsável por diversos projetos sociais em prol das parcelas sociais mais desfavorecidas da cidade de Salvador. Promove ações que vão muito além de apenas festejar os moldes de sua cultura; cria as condições necessárias para combater a narrativa ocidentalizante, ao descolonizar o pensamento de quem aceita o convite de imergir em um universo totalmente fora da sua zona de conforto e ao nos convidar a fugir de todos os conceitos que nos foram ensinados como os únicos válidos.
O Ilê Aiyê fundou inúmeras ações afirmativas. O concurso cultural para a escolha da canção-tema consiste na realização de um festival meses antes do carnaval, onde compositores são convidados a apresentar suas músicas para a escolha da canção-tema do ano, de acordo com o tema anunciado pela diretoria. Geralmente os temas giram em torno da própria história africana e diáspora, ressaltando personagens muitas vezes esquecidos pela narrativa ocidental, adotando um forte tom de protesto em suas letras e apresentações. Além de promover o concurso de canção-tema, hoje o Ilê Aiyê forma um grupo musical, intitulado Band’Aiyê. Composto por artistas afrodescendentes, o grupo conta com diversas músicas e 4 discos lançados, fazendo apresentações por todo Brasil e outras partes do mundo.
A partir das experiências musicais vividas pelo grupo, em 1992 foi fundado o projeto Band’Erê dentro do terreiro de Mãe Hilda com o intuito de promover a educação musical de crianças e jovens do bairro e localidades próximas, envolvendo expressões artísticas baseadas nas culturas africanas.
A Escola Mãe Hilda é uma instituição de ensino fundada em 1988 dentro da propriedade do terreiro Ilê Axé Jitolu, tendo por objetivo a promoção do ensino básico, destinado a crianças de 7 a 12 anos. Baseada em uma educação alternativa, a Escola usa diferentes metodologias de ensino para fugir da educação eurocentrada e inserir o estudo da cultura negra no currículo escolar. Todo o material utilizado em sala de aula é pensado e projetado para tal função. A Escola é financiada, assim como o projeto Band’Erê, pela própria Mãe Hilda e pelo dinheiro arrecadado durante os ensaios de carnaval que ocorrem na Senzala do Barro Preto, sede do bloco carnavalesco Ilê Aiyê.
Não podemos negar o valor simbólico que a Escola Mãe Hilda carrega consigo. Todo seu esforço para construir uma educação centrada na inclusão racial demonstra o quão defasado está o currículo escolar brasileiro, na medida em que não consegue dar conta de uma das maiores virtudes de nossa nação: a diversidade. A iniciativa não promove somente uma educação baseada na equidade, mas possibilita que cada sujeito negro saiba seu lugar no mundo; saiba que possui uma história, uma cultura e um motivo de esperança diante desse sistema que constantemente o inclui em categorias com as quais ele não se identifica e, consequentemente, o fazem se sentir sozinho e sem relevância, algo parecido com o "nada".
A Noite da Beleza Negra, concurso rebatizado por Vovô em 1988, tem por finalidade escolher a mulher, chamada de Deusa do Ébano, que irá representar o bloco carnavalesco durante o ano. De início pode até parecer um concurso de beleza nos moldes em que estamos acostumados: eleger mulheres predominantemente brancas, traços finos e representando os valores do ocidente, porém a noite da beleza negra vai além. No concurso há a análise de padrões que fogem do modelo ocidental ao levar em consideração o trabalho realizado na elaboração de vestimentas tradicionais, os trançados do cabelo, o gracejo da dança e, principalmente, o papel ativo da candidata dentro da comunidade negra, assumindo sua negritude e se orgulhando da mesma.
Considerações finais. O carnaval para além da festividade e do orgulho negro
Conforme exposto, pode-se perceber o papel central que o carnaval desempenhou ao longo dos séculos na reemergência da identidade africana no Brasil. Contudo, a festividade gera consequências em um país com uma herança predominantemente racista e misógina. O carnaval constrói uma imagem paradoxal da mulher preta: a mulher racializada, tida como inferior pelo sistema patriarcal branco, e a mulher hipersexualizada, tratada como um objeto de desejo primitivo e selvagem pelo mesmo sistema que a oprime. Tal aspecto pode ser encontrado na música “A mulher do fim do mundo” (2015), presente no álbum de mesmo nome e estrelado por Elza Soares (1937-2022). A letra da melodia carrega um alto grau de subjetividade à medida em que expõe as dores e fugas da realidade vivenciadas por mulheres pretas durante o carnaval:
“Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor”
No trecho acima fica evidente o contraste da vivência das mulheres pretas dentro da sociedade brasileira a partir de dois pólos diferentes. Um deles é o da mulher preta considerada “inculta” e “desqualificada”, que sofre com os efeitos de uma estrutura político-social racista e machista, sendo constantemente colocada às margens da sociedade. O outro é a hiper-sexualização da mesma durante o período do Carnaval, quando ocorre uma subversão de valores. A mulher preta, de uma simples doméstica por exemplo, torna-se a musa do carnaval, sendo este um momento caracterizado pelo seu endeusamento e pelo acobertamento da desigualdade racial presente em nosso país. Ou, como diria Lélia Gonzalez (2020), esta seria uma forma de justificativa para uma suposta “democracia racial”.
A música explicita que a solidão da mulher preta durante o Carnaval transforma-se em atenção. Desta vez sua cor de pele e suas questões sociais são ouvidas, assim como seu padrão de beleza é idealizado e altamente sexualizado. Tal situação pode servir como uma espécie de fuga da realidade, um momento em que a mulher preta se sente notada, acolhida e fora das margens da sociedade por um curto período de tempo.
“Na avenida, deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida, deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim”
Entretanto, logo essa realidade paralela entra em choque com a realidade social na qual ela está inserida. Realidade social na qual ela não tem voz e não é considerada digna de opinião, voltando assim para a “solidão”.
“Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar
Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar, cantar
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim, eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim”
Por fim, a artista encerra a canção com um tom de resistência, uma vez que se impõe e afirma sua posição de sujeito pensante. Interpretando os trechos, cantar seria como uma forma de propagar suas ideologias, seus anseios e seus sonhos, ou seja, seria uma forma de manter-se atuante em uma sociedade excludente.
A partir da análise da música de Elza Soares pode-se perceber o alto grau de subjetividade presente, por exemplo, em manifestações artísticas. Subjetividade essa que, por mais que possua questões relevantes para o meio acadêmico, político e social, segue sendo considerada imprópria para uso científico, contribuindo ainda mais para a predominância de questões privilegiadas pela sociedade branca. Em decorrência de tal situação, torna-se de suma importância a incorporação de novos conceitos e a renovação de paradigmas no modo de se fazer ciência, possibilitando assim a produção de um conhecimento plural que abrace diferentes perspectivas.
Por mais que o carnaval seja uma celebração genuinamente do povo e para o povo, adotando uma postura descontraída e alegre ao mesmo tempo que desempenha um forte papel político, não se pode fugir das problemáticas por ele colocadas, que estão intimamente ligadas ao nosso passado não tão distante. As práticas sustentadas pelo Ilê Aiyê desconfiguram as perspectivas impostas pelo sistema “universal” de valores e conhecimento propagado pelo ocidente, realizando o desmonte da narrativa racista em prol da descolonização do conhecimento e da luta antirracista. Devido ao caráter desempenhado por tais instituições políticas e sociais, é de suma importância o suporte financeiro de instituições públicas e governamentais, para que haja a garantia de um bom funcionamento. Porém o cenário que enxergamos é o de total abandono, obrigando o povo negro mais uma vez a lutar para manter sua história viva.
Referências Bibliográficas
GÓES, Fred. “Imagens do Carnaval Brasileiro do Entrudo aos Nossos Dias” In Brasiliana da Biblioteca Nacional; guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional/ Nova Fronteira, 2002, p. 573-588.
GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira” In Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2020, p. 75-93.
GÓMEZ VERGARA, Karen Ruby. “Que bloco é esse? Posicionamento do bloco afro Ilê Aiyê no carnaval de Salvador e o movimento do samba reggae” In Revista Brasileira do Caribe. São Luís, 2017, vol. 18, nº 34, p. 91-106.
FLORES, Moacyr. “Do Entrudo ao Carnaval” In Estudos Ibero-Americanos. 1996, vol. XXII, nº 1, p. 149-161.
THEODORO, Helena. “Guerreiras do Samba” In Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares. Rio de Janeiro, 2009, vol. 6, nº 1, p. 223-236.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1a edição. Rio de Janeiro, Editora Cobogó, 2020.
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Data de Publicação: 02/03/2023
Como citar este artigo:
VASCONCELOS, Gabriela Barros. "A experiência afrodiaspórica brasileira sob o olhar do carnaval contemporâneo ". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/artigos
ISSN 2764-9407
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