EXPERIÊNCIAS DE DESCOLONIZAÇÃO DOS CORPOS E SABERES
ISSN: 2764-9407
ISSN: 2764-9407
EDIÇÃO 2 (VOL. 1 2023)
ENSAIOS
Deixa eu falar!
Os usos da linguagem pelo pensamento ocidental
Amanda Lopes Ferreira
DIALÉTICA DA MEMÓRIA E DA CONSCIÊNCIA
Quando criança, perdi as contas de quantas vezes ouvi a frase “Fala direito!”. Naquele tempo, ainda não entendia bem o que era esse "direito" que todo mundo dizia, nem o que tinha de errado nas palavras daqueles que falavam de um jeito “não-direito”. Pra mim, o “você” em que faltava o “vo-”, ou o “nós” conjugado sempre na terceira pessoa do singular, ou a constante falta de plural poderiam até não ser o "direito", mas eram certamente o normal. Esse jeito de falar servia seu propósito, comunicava muito bem a mensagem que precisava ser passada e fazia parte da realidade que eu conheci desde sempre, realidade de gente comum, gente pobre, preta, favelada, que não se parecia em nada com as Helenas do Leblon no universo novelesco do Manoel Carlos.
Com o tempo, as nuances não ditas da frase “fala direito” foram se tornando cada vez mais aparentes pra mim, porque quem não falava direito compunha o núcleo cômico das mesmas novelas que eram protagonizadas por Helenas, e o “nós vai” deixou de significar simplesmente que um grupo de pessoas iria a algum lugar ou faria alguma coisa pra se tornar motivo de chacota no horário nobre. Essas nuances não ditas eram baseadas nas mesmas premissas que um cara chamado Gustavo – ou Djonga, para aqueles que não falam direito – muito bem sintetizou em versos:
“Ouvindo desde novo, 'cê já é preto
Não, não sai desse jeito, se não eles te olha torto”
Esses versos, embora não atendam à norma culta da língua, passam muito bem sua mensagem. Como falamos, como nos portamos, como nos vestimos, tudo isso faz parte da nossa linguagem. Na escola aprendemos diferentes formas de linguagem, como a verbal, a não verbal, padrão, coloquial, etc. Mas, para além de uma matéria dada na escola, precisamos considerar os desdobramentos da linguagem no nosso cotidiano, tendo em vista que enquanto seres sociais, existir é, sobretudo, se comunicar e se afirmar enquanto sujeito através da linguagem. Ao trabalhar esse conceito no livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon define o ato de falar como o momento em que o ser existe absolutamente para o outro. Então, se falar é existir para o outro, faz sentido que certas formas de falar não sejam consideradas válidas por aqueles que não toleram a existência da outridade.
Com isso, a linguagem que é, sobretudo, um modo de comunicar, está sempre em disputa. É inegável que há na sociedade grupos que são colocados à margem e suas formas de se comunicar acabam sendo também silenciadas e marginalizadas pelo pensamento hegemônico. Essa relação de forças exemplifica bem o que Lélia Gonzalez definiu como a dialética da consciência e da memória, onde a consciência e a memória estão sempre em conflito.
Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela pra tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala. (GONZALEZ, 2020, p. 70)
Fanon, no texto citado anteriormente, trabalha a questão da relação do negro da Martinica com a língua francesa, analisando como esse mesmo martinicano, ao ir para a França, se esforça para assumir não só a língua do branco, mas também sua linguagem, já que "quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será." (FANON, 2008, p. 34). Assim, na dialética entre memória e consciência, os apagamentos não se dão apenas através de uma coerção direta ou uma violência explícita da consciência sobre a memória, mas através dos desdobramentos das opressões causadas pela colonização, do complexo de inferioridade dos colonizados. Os sujeitos marginalizados muitas vezes assumem a linguagem imposta pela consciência com o objetivo de verem legitimada a informação que desejam comunicar.
Essa relação demonstra como o pensamento ocidental se sustenta a partir dessa relação de superioridade e inferioridade, delimitando cada vez mais a hierarquização dos saberes, corpos, práticas e é claro, das linguagens. Podemos tomar como um dos exemplos mais emblemáticos desse fenômeno o advento da escrita e como, a partir desse evento, sociedades que realizavam a transmissão de sua memória através da oralidade eram consideradas mais atrasadas ou menos complexas, devido a uma suposta baixa confiabilidade da oralidade frente ao documento escrito.
O QUE ENCONTRAMOS NAS FRESTAS DA CONSCIÊNCIA?
Como nos disse Lélia Gonzalez, a memória fala através das mancadas do discurso da consciência. É justamente por isso que, apesar de todas as forças utilizadas pela consciência, a memória resiste ao apagamento que tenta se impor. É também por isso que, apesar da novela tentar representar o brasileiro falando como se todos fossem residentes do Leblon, a gente comum continua esquecendo os plurais e continua falando o pretuguês. Não só porque não sabem ou não querem “falar direito”, mas porque sabem e porque podem se expressar muito bem através das gírias e gingas de suas próprias linguagens, tá ligado?
São pelas frestas das consciência que conseguimos espiar tudo aquilo que ela tenta esconder: indígenas, negros, mulheres e tantos outros grupos que a consciência tenta a todo custo varrer para debaixo do tapete. Por essas mesmas frestas escapam as múltiplas narrativas desses grupos que ecoam com suas próprias vozes através do samba, do rap, da arte, da moda, etc. A resistência das linguagens subalternizadas como no caso do rap demonstra como, apesar da imposição da consciência, existem palavras que só a memória consegue dizer.
Esses dias me deparei com a notícia da morte de Luiz Antônio Fleury Filho, ex-governador de São Paulo e um dos maiores responsáveis pelo massacre do Carandiru, uma tragédia que ficou marcada na história do Brasil com 111 detentos mortos, em 1992. Apesar das inúmeras reportagens, filmes e livros sobre a tragédia, o nome de Fleury acabou ficando conhecido para muitos (eu mesma, por exemplo) a partir dos versos narrados pela voz do Mano Brown:
“Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de Outubro, diário de um detento”
Esses versos, os últimos da música “Diário de um detento”, do Racionais MC 's, sintetizam bem o que tenho tentado explicar. O detento é deslegitimado não só porque ele assume uma linguagem que é distinta da imposta pela consciência, mas porque, antes mesmo disso, ele faz parte dos grupos que produzem essa mesma linguagem. Não à toa negros e pobres são a maioria da população carcerária no Brasil, seres produzidos por “sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo”, como nos diz Mano Brown.
O QUE ESSAS FRESTAS NOS DIZEM?
Com isso cabe pensar: como o rap fala? Com quem fala? O que fala para cada um que o escuta? Não vou me ater à resposta da primeira pergunta, pois creio que a respondi ao longo deste texto. Já as outras duas perguntas se encontram implacavelmente interligadas. Mesmo que fale para todos, é inevitável que os atravessamentos que essas mensagens vão produzir sejam diferentes para cada um, porque quando falamos de rap, falamos de memória. E a memória, diferente da consciência, está pautada numa história que não foi escrita, mas é vívida e marcada naqueles que a vivenciam constantemente. Aos que não compartilham essa memória, cabe tentar imaginar, ainda que o Leall já tenha dado o papo:
“Então imagine sua alma dentro do meu corpo
Não aguentaria nem metade dos copos que eu bebo
Imagina as maldades que eu vi”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Por um Feminismo Afro Latino Americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
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Data de Publicação: 27/04/2023
Autoria: Amanda Lopes Ferreira
Como citar este ensaio:
FERREIRA, Amanda Lopes. "Deixa eu falar! Os usos da linguagem pelo pensamento ocidental". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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Do Guajupiá ao Waranã
epistemologias indígenas na Marquês de Sapucaí
Ana Carolina de Souza de Oliveira
Diogo Alan Ferreira de Barros
Gabriela de Melo Vieira
Juliana Thyfani Saraiva Aney
Marcos Vinicius Soares dos Santos
Nathielle Lima Lyra
O presente ensaio pretende refletir sobre como as Escolas de Samba podem buscar caminhos visando descentralizar o pensamento ocidental, através das narrativas indígenas representadas nos enredos Guajupiá, Terra Sem Males (2020), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, e Waranã, a Reexistência Vermelha (2022), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca, que têm como temática duas histórias essenciais para os Tupinambá e os Sateré-mawé, respectivamente.
Não estando em nenhum momento da nossa história isentas ou imunes aos acontecimentos políticos e sociais, as escolas de samba serviram muitas vezes, através de seus desfiles e enredos, para legitimar ou até mesmo para criticar narrativas históricas e projetos políticos. Como o exemplo da Imperatriz Leopoldinense que, em 1988, ano do centenário da lei áurea, questionou D. Isabel como a libertadora do povo escravizado – como diz o samba “de 71 com a realeza, me mandou uma princesa que fingiu me libertar”–, e no ano seguinte, seu outro enredo a glorificava como “a heroína que inventou a lei divina”. Em contraponto, falemos da Mangueira que, décadas depois, em 2019, seguindo os debates a respeito da escrita da história, contesta esta narrativa como falsa - “Não veio dos céus nem das mãos de Isabel, a liberdade é um dragão no mar de Aracati”-, fazendo alusão ao líder do movimento de resistência dos jangadeiros no Ceará, Chico da Matilde, um importante militante abolicionista da época.
Agora voltemos nossos olhos para algumas das problemáticas que estão presentes neste espetáculo. A principal é a quantidade de estereótipos, principalmente visuais, no uso de adereços, pinturas e símbolos indígenas. Aquilo que faz parte da identidade cultural de alguns povos acaba sendo usado como mera fantasia carnavalesca. Esta discussão é uma linha tênue, já que a fantasia é um item primordial para as alas de uma escola desfilando. Os carnavalescos precisam destes recursos visuais para contar a história, no entanto não deixa de ser de certa forma desrespeitosa com as culturas indígenas a apropriação de tais itens. Ainda mais se levarmos em conta que a escola tinha a oportunidade de convidar indígenas para compor uma ala exclusiva, na qual os próprios expressariam suas identidades culturais.
Podemos falar também, sem nenhuma gota de moralismo, sobre a hiperssexualização dos corpos de mulheres, que já é histórica na cultura do carnaval. O problema não é a seminudez nem a forma como as passistas, rainhas e princesas de bateria se comportam ou dançam, mas todo o imaginário social que trata o corpo das mulheres como um objeto sexual. Isso se agrava quando falamos das mulheres negras e indígenas, que foram historicamente violentadas e objetificadas. No clipe oficial do samba-enredo da Portela é possível observar em algumas camisas da escola a imagem de uma mulher semi nua “fantasiada” de indígena. Não é retratada como forte e guerreira como os homens indígenas são, mas como sedutora e convidativa. Uma imagem fetichista e racista.
Tais problemas explicitam o mundo de contradições em que nós vivemos, o mundo de histórias cruzadas, sobrepostas e nada lineares. O mundo intercultural. No entanto, continua sendo de extrema importância que essas narrativas comecem a ser trazidas para o debate público e conforme formos avançando nas conquistas de direitos, existe a certeza de que as escolas, comunidade e carnavalescos seguirão e farão parte deste avanço.
Nesse sentido, acreditamos que os enredos podem proporcionar novas alternativas frente a interpretações eurocêntricas de cosmogonias indígenas. Analisaremos, a seguir, as narrativas indígenas representadas nos enredos Guajupiá, Terra Sem Males (2020), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, e Waranã, a Reexistência Vermelha (2022), do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca.
O samba enredo Guajupiá, Terra Sem Males (2020) apresenta uma narrativa sobre o mito da cidade de Guajupiá enquanto um lugar onde não há problemas ou males. Além disso, o samba retrata a natureza exuberante de Guajupiá, com suas montanhas, rios e florestas, e homenageia as tradições e costumes locais. Embora possa ser visto como uma forma de escapismo e busca por um mundo perfeito, a letra do samba pode ser interpretada como uma crítica à realidade atual, dialogando com a essência dos indígenas que foi duramente abalada após a chegada dos europeus e sua colonização.
O samba enredo nos leva a compreender que o povo Tupinambá já vivia no Guajupiá antes do ano de 1500, apontando a existência de inúmeras aldeias Tupinambá no Rio de Janeiro (desde Cabo Frio até Angra dos Reis) “[...] com 500 a 3000 indígenas cada [...]” (FREIRE & MALHEIROS, 1997). Contudo, afirma que esse número caiu drasticamente no decorrer do período da colonização, fato esse que ocasionou o apagamento das vidas e das vivências históricas dos indígenas no território que era originalmente seu.
Logo na primeira estrofe "Hoje meu Guajupiá é Madureira’’, os compositores explicitam a afirmação de Madureira como sendo seu Guajupiá. É uma contra narrativa. Ao mencionar a possibilidade de encontrar a beleza, a paz e a alegria em um dos berços do samba que ocupa ainda hoje o posto de um local marcado pela precarização e presença violenta do Estado, o trecho expressa vocalmente o desejo do povo de viver tranquilamente e com dignidade. Ainda nesta estrofe, os compositores também afirmam que “o índio é dono desse chão”, reconhecendo Madureira, o Rio de Janeiro e todo o chão do inventado país que pisamos como sendo território indígena, já que além da letra, a logo oficial deste enredo é um indígena de costas avistando de cima a famosa paisagem da Baía de Guanabara, em uma perspectiva de um horizonte sem fim.
O samba enredo também aborda a temática da resistência indígena. "Indio pede paz, mas é de guerra”: esse trecho retoma a crença dos Tupinambá de que somente aqueles que enfrentam a morte, sem medo, conseguiriam encontrar o Guajupiá. Esse paraíso era representado como um lugar perfeito, recheado de flores e coberto por um maravilhoso rio, em cujas margens havia diversas maravilhas.
Também fala-se sobre as entidades indígenas como Monã, o Deus dos Tupinambá, e sobre figuras importantes para essa população como, por exemplo, Irin-Magé, o único considerado digno por Monã para sobreviver a um castigo divino. Após ser poupado, Irin-Magé cai aos prantos e fala com Monã que seria difícil viver sozinho na imensidão do vazio. Tocado, Monã modificou a situação, fez cair um dilúvio sobre a terra. Dessa água surgiram, os rios, os oceanos, os animais e toda a natureza.
As vivências indígenas correram e ainda correm perigo constante. O trecho “nossa aldeia é sem partido ou facção, não tem bispo, nem se curva a capitão” faz clara alusão à resistência indígena ainda mais do que necessária. Outrora, a figura da Igreja Católica fez da presença de lideranças religiosas, como padres e bispos, uma grande ameaça à cultura e vida dos povos indígenas por via da catequização. Na atualidade, "o capitão" faz clara referência a uma figura presidencial que deveria proteger o seu povo, mas conseguiu ir na contramão, influenciando negativamente as vidas dos indígenas, ao mesmo tempo que a referência ao bispo também pode ser uma alusão a um político que ao longo do seu mandato na prefeitura não prestigiou o carnaval e reduziu as verbas de subvenção, quase inviabilizando a festa popular.
Tendo isto em vista, podemos avaliar a importância do samba enredo da Portela, uma das maiores e mais conhecidas escolas de samba do mundo, trazer em seus versos uma das muitas histórias indígenas. Um enredo não é apenas uma música, mas uma ponte direta para acessar o imaginário popular e apresentar outros caminhos que podem ser percorridos para além da história tradicional e única, como aponta Chimamanda Adichie em O Perigo de uma História Única (2019).
Já o samba enredo da Unidos da Tijuca fala sobre o Waranã ou Waraná, que é a planta que origina o guaraná e é oriunda da língua dos Sateré-Mawé, indígenas que vivem há muitos séculos na região da Amazônia, e têm sua história atrelada ao Waraná, sendo considerados os guardiões da fruta. Existem muitas versões sobre o Waraná e os Sateré-Mawé. O carnavalesco Jack Vasconcelos em entrevista para o UOL contou que “nosso enredo faz a união das várias versões sobre essa lenda para falar da origem do povo que surgiu com essa responsabilidade de ser o guardião dessa frutinha de pele vermelha [...].” (2020).
Os Sateré-Mawé há séculos produzem o guaraná e o vendem, mas seus usos não se limitam somente a essa atividade comercial. Existe um grande passo a passo no trato com o Waraná que envolve todo o grupo: crianças, adultos e idosos participam das mais variadas etapas do processo. A lógica ocidental, capitalista e predatória não faz sentido nesse universo, as produções do guaraná e do pão do guaraná envolvem “[...] o passado, o presente e o futuro do povo [...]” (FIGUEROA, 2016, p.1).
Uma das versões da história nos conta que, no início, existiam três irmãos - Ocumáató, Icuamã e Onhiámuáçabê - que moravam em Nusokén, uma terra encantada. Onhiámuáçabê plantou nesse local uma castanheira que será muito importante para a narrativa. A irmã era muito sábia e conhecia as plantas, sendo responsável por fazer remédios para os irmãos, já que somente ela tinha o conhecimento do que era indicado, e também só ela poderia misturar os ingredientes. Por esses motivos, Ocumáató e Icuamã não queriam que ela se afastasse deles e para tanto proibiram que ela se casasse.
Os animais da terra desejavam se casar com Onhiámuáçabê, até que uma cobra decidiu tentar conquistá-la utilizando um perfume sedutor. De tanto passar pelo local e sentir o cheiro, um dia ela elogiou o perfume utilizado pela cobra. Em decorrência disso, o animal achou que a tinha encantado e passou ao lado dela, tocando-a levemente. Onhiámuáçabê engravidou com esse leve toque. Seus irmãos descobriram a gravidez, pois um remédio preparado por ela acabou coalhado. Ao questionarem com quem ela tinha se relacionado, a moça não soube dizer. Eles a expulsaram de casa e ela foi viver em outra casa com três ajudantes: mucura, pato e saracura.
Quando o bebê nasceu, os irmãos dela foram visitá-los e a questionaram sobre a humanidade da criança, fato confirmado por ela ter braços, ombro e corpo de gente. Assim, permitiram que ela vivesse e fingiram estar alegres, porém em segredo consideravam que o bebê lhes traria problemas em suas roças. Logo que começou a falar, a criança desejou comer frutas iguais aos tios, mas sua mãe lhe explicou que os irmãos se apossaram da castanheira. Somente após muita insistência, Onhiámuáçabê levou o menino até a árvore para que comesse os frutos. Por ele ter gostado, retornou ao lugar sozinho para se alimentar de novo.
Os guardas do local foram ordenados a matar quem se aproximasse e assim o fizeram com o menino. Onhiámuáçabê foi avisada por uma caba e uma abelha sobre o acontecimento, mas a princípio não acreditou. Os animais retornaram a falar com ela trazendo pedaços de pele de criança como prova e ela seguiu não acreditando. Somente quando os animais trouxeram um pouco de sangue do menino em uma apekutyhop, folha com manchas vermelhas, ela acreditou e se dirigiu ao local do ocorrido. Ao encontrar o menino, ela brigou com os irmãos pelo acontecimento e decidiu cobrir a criança com uma folha rogando para que algo bom acontecesse.
Onhiámuáçabê retirou os olhos do menino e primeiro plantou o olho esquerdo, mas não deu certo. A planta que surgiu desse olho era o falso guaraná. Após o fracasso da primeira tentativa, plantou o olho direito e daí surgiu a planta verdadeira do guaraná. Onhiámuáçabê então conversou com o seu filho na forma de planta:
“E disse: ‘Meu filho, os teus tios te mataram, mas não penses que irás ficar sozinho, isolado. Tu irás ficar com as palavras dos teus parentes e com as palavras das pessoas que moram no céu. A todos os teus parentes tu irás ensinar. Tu irás ser morekuat [autoridade], tu irás ensinar muita gente a tratar de trabalho. Muita gente vai se juntar para tomar o guaraná. Serão as mulheres mais idosas as que irão ralar o guaraná. Em redor de ti irá se tratar de muitas coisas boas, palestras de trabalho e assim muita gente irá gostar de ti. Porque tu foste gerado antes que a terra estivesse contaminada. Então, tu vais ficar sendo autoridade: morekuat. Tu vais fortalecer muita gente: os Morekuat, os tuxauas, portanto tu que serás o Morekuat. Muitas coisas se conseguirão através de ti. Vai parecer que tu estivesses vivo e de tua boca sairão conselhos para muita gente, para os filhos, e com lágrimas nos olhos, os pais vão te usar para aconselhar os seus filhos, teus netos. Cedo da manhã as pessoas vão te usar, vão beber o guaraná, e aquele que souber de alguma coisa melhor, vai explicar e conversar coisas boas.” (FIGUEIROA, 2016. p. 59-60)
Após essa conversa, ela pediu para que um passarinho hirut cantasse para a criança com o objetivo de criar algo bom no túmulo. Muitas tentativas aconteceram e Onhiámuáçabê sempre encontrava seres que não a satisfaziam, até que um grilo disse a ela que olharia pelo seu filho e que do túmulo sairia algo bonito. E assim aconteceu. O grilo falou que o nome do renascido seria Moikyt e ele foi o primeiro Sataré-Mawê.
O carnavalesco da Unidos da Tijuca, Jack Vasconcelos, na construção de seu enredo Waranã, a Reexistência Vermelha, seguiu parte dessa narrativa e também utilizou outros elementos dignos de destaque. Existia e sempre vai existir uma tensão entre Tupana e Yurupari e o equilíbrio advindo dessas relações é o que condiciona o mundo. Os dois irmãos e a irmã viviam em Nusoken. Nessa versão do carnavalesco, Onhiámuáçabê é Anhyã e os irmãos foram nomeados Yucumã e Ukumã’wató. Assim como na versão citada acima, ela era a conhecedora das plantas e dos remédios, sendo invejada pelos irmãos enquanto era amada por todos os outros seres. A cobra segue nessa versão tendo seduzido Anhyã com um perfume e a engravidado com um leve toque; os irmãos também ficaram inconformados e a expulsaram de Nusokén por esse motivo. Depois de um tempo, nasceu Kahu’ê e ele foi assassinado por seus tios por comer o fruto da castanheira, que era sagrado. Yucumã e Ukumã’wató rogaram a Yurupari que matasse o menino e assim ele se transformou em uma serpente que teve êxito em assassiná-lo. Tupana falou para Anhyã que aquela tragédia viraria algo bom, então Anhyã se transformou em um pássaro, levou o corpo de seu filho para próximo de um rio e plantou seus olhos. Do olho esquerdo surgiu a Waraná Hop, uma planta estragada, e do direito o Waraná-Sése, verdadeiro guaraná. O pássaro cantou ao redor do túmulo de seu filho, até que um belo dia renasceu Kahu’ê nomeado de Mary-Aypók, o primeiro Sataré-Mawê.
Um dos aspectos interessantes na análise do samba-enredo da Unidos da Tijuca e que aponta para o fato de que as escolas de samba são vetores importantes para a descentralização do pensamento ocidental é a confluência de saberes de povos que foram marginalizados ao longo da história do Brasil, a saber: indígenas e africanos. No primeiro verso já podemos perceber essa coexistência de saberes quando vemos a frase “êre, essa mata é sua”. É sabido que dentro das religiões de matriz africana, a personificação da criança nos terreiros de umbanda e candomblé se dá pela figura do êre, afirmando a existência de outras culturas, em um horizonte de multiplicidades. Nesse sentido, é possível perceber como as escolas de samba promovem esse esforço para trazer ao público diferentes personagens que não estão no eixo do conhecimento ocidental.
Assim, outro ponto relevante é justamente o empenho que a escola em questão fez para popularizar um saber ancestral, fundamental na cosmogonia do povo Sataré-Mawé. É possível perceber a partir do Waraná ou Waranã que para esse povo não há a percepção de hierarquização das espécies, mas sim uma relação de consanguinidade entre os seres. Desse modo, as pedras e as plantas ocupam um lugar sagrado dentro dessa cultura, como podemos ver no trecho do samba “um lugar onde as pedras podiam falar”, que mostra que há uma visão de mundo na qual tudo é interligado.
Nesse sentido, outro elemento do samba-enredo em consonância com os saberes do povo Sataré-Mawé é a atmosfera de sacralidade criada pela ritualística do Waraná, que também engloba uma dimensão política entre os sujeitos que ali estão inseridos. Na realidade, o que se percebe é que não há uma divisão muito bem definida sobre o sentido político e religioso na cerimônia do Waraná e sim uma espécie de rizoma, no qual esses saberes vão se conectando e produzindo outras possibilidades. Isso pode ser visto no trecho do samba “de pele vermelha, os frutos de uma nação” e no texto Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé, que menciona que o guaraná é a peça que simboliza a passagem de uma sociedade na qual a vingança, a separatividade e até mesmo a guerra constituíam tradição para outro regime que valorizava o encontro, o compartilhamento e a governança argumentativa. O guaraná é então, o marcador de etnicidade dos Sateré-Mawé (FIGUEROA, 2016, p. 57.).
Ao praticarem o ritual do Waraná, o povo Sateré-Mawé está unificando a palavra através do guaraná. Ou melhor, o guaraná torna-se a própria palavra unificada e unificadora, conectando-se com a passagem do samba-enredo “deixa a força Mawé ressurgir”, o que representaria o ressurgimento de uma força ancestral. Dessa forma, além de um componente espiritual, o guaraná também exerce um papel político-social, já que há uma espécie, em termos ocidentais, de contrato social com o rito.
É a partir do guaraná que a sociedade dos Sateré-Mawé articula a esfera coletiva com a palavra, como princípio central dessa etnia. Vemos isso no próprio ritual, que é visto como uma ação política, já que o Tuxaua – a liderança - é encarregado de consumir o guaraná por último, pois segundo a cosmogonia Sateré, ele detém o poder de reconhecer o lugar, o que transmite a ideia de pertencimento e a competência de cada indivíduo dentro do coletivo. Dessa maneira, o consumo compartilhado do guaraná é também categorizado como uma ação política, o que também demonstra outro prisma fundamental para essa etnia, que é a não segmentarização de elementos da vida, já que tal rito, além de configurar uma ação política, também representa um aspecto de sacralidade (FIGUEROA, 2016, p.63).
A intenção apontada é a de que o guaraná, na medida em que vai sendo ralado (de forma circular sobre a pedra), passando depois de mão em mão quando tomado, vai também recolhendo as palavras e intenções de todos os que vão se manifestando na reunião, até que o último, o Tuxaua, as reúne (ingerindo "o rabo"), tornando-se portador, na sua própria fala, das palavras e aspirações de todos. O guaraná assim compartilhado “com o povo” (ure sapo pe’ehat), em uma espécie de consagração secular, opera como poderosa força de coesão coletiva, sendo coibidos, explicitamente, ruídos e expressões que possam induzir à separatividade e desarmonia. (FIGUEROA, 2016, pp. 65)
O Waranã se configura como uma verdadeira e autêntica fortaleza, tanto por si própria quanto para a identidade étnica, exercendo um papel central nos movimentos de resistência étnica e cultural (FIGUEROA, 2016, p. 77). Podemos então observar que mais que os efeitos e a dimensão gustativa da fruta, o guaraná está inscrito num contexto social e que engloba diversos elementos constituintes e constituidores do mundo e da cosmovisão dos Sateré-Mawé. Mas quando pensamos em guaraná, principalmente nas grandes cidades brasileiras, não evocamos toda sua história e sua importância. O guaraná como bebida que pode ser encontrada em cada ponta do país tem a sua história sobreposta por grandes indústrias. Com o slogan da “bebida originalmente brasileira”, as tecnologias e saberes indígenas são postos de lado. Isso acaba nos desencontrado com nossa própria História enquanto país. Figueroa nos exemplifica isso ao destacar em seu texto que:
“[...] o guaraná só passa a ser considerado um produto agrícola quando são agentes não indígenas que promovem ou efetuam seu cultivo, principalmente como recurso a ser explorado após a crise econômica regional deflagrada com o declínio da borracha.” (FIGUEROA, 2016, p. 74)
Para além da bebida, o guaraná faz parte da tradição de um povo e os Sataré-Mawé o têm como símbolo de resistência. Tal aspecto não é ressaltado pela indústria capitalista que divulga o guaraná como um sabor nacional. A História nacional tem muitas lacunas e quando as analisamos, podemos constatar que:
“[...] por esse ângulo, a reflexão refuta o argumento de que a colonização brasileira foi superada e expõe que, diante da realidade dos povos indígenas, negros e pobres, o processo de civilização ocidental foi, além de violento e seletivo, um instrumento de abafamento dos conhecimentos e saberes desses povos” (PIMENTA & SILVA, 2021, p. 31, grifo nosso).
É importante destacar que, no senso comum, estes sujeitos ainda são encarados com papéis universalizantes: o indígena menorizado que vive isolado da sociedade, e os negros preguiçosos feitos para trabalhos braçais. Essas visões racistas são entraves no cotidiano dessa população. Desta forma, é de extrema relevância compreendermos estes sujeitos como parte ativa na história que estrategicamente buscam por sobrevivência em um cenário que os desqualifica. Assim, temos no carnaval a oportunidade de quebrarmos tais padrões, na medida em que este configura um movimento cultural que escancara a desigualdade do país. Ao se propor a contar a história dos subalternos, o carnaval consegue expor traços da nossa cultura que foram propositalmente apagados.
Pensar o Brasil pode ser complexo, um caminho pedregoso, tortuoso, marginal e/ou excludente. O que é a nossa Cultura? O que são as nossas culturas? Como entender as realidades míticas dos nossos indígenas? Folclorizar? Aproximar da Ciência Ocidental? Ignorar? Pensemos nesse Brasil que se disputa, se quebra, se transforma, se reinventa, se faz e se auto refaz. Não acreditamos que possa existir uma utopia de Brasil sem as palavras e discursos de suas gentes: indígenas, sambistas, pobres, favelados. Um Brasil de Erês e Juruparis.
Nesse sentido, o carnaval, além de um grande show com as escolas de samba, funciona como um local para contar as histórias não contadas, histórias essas que foram projetadas sob o aspecto do eurocentrismo, que não privilegiou a valorização de outros saberes e até os ressignificou de maneira que fossem apagados. Os desfiles das escolas de samba são um palco onde podemos encontrar diversas narrativas dependendo do enredo escolhido, mas é um ótimo contexto, onde saberes e práticas da nossa cultura são divulgados sob a forma de desfile.
Mesmo que haja cada vez mais uma elitização do carnaval e uma máxima tentativa de transformá-lo numa mercadoria, o maior show da terra segue tendo um expressivo caráter popular, já que a maior parte das escolas de samba nasceu resistindo à criminalização do ritmo de resistência do povo trabalhador, preto e periférico. Assim, como a Portela em Madureira e a Unidos da Tijuca no Morro do Borel, as escolas nasceram das mãos desta população e nos lugares que costumam ser ignorados pelo turismo, pela grande mídia e até mesmo pela historiografia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FIGUEIROA, Alba Lucy Giraldo. Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas [online]. 2016, v. 11, n. 1, pp. 55-85. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981.81222016000100005. Acesso 10 fev. 2023.
FREIRE, José Ribamar Bessa; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.
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NEUMANN, Eduardo S. "Os guaranis e a razão gráfica: cultura escrita, memória e identidade indígena nas reduções – séculos XVII & XVIII". In. KERN, Arno Alvarez; SANTOS, Maria Cristina dos; GOLIN, Tau (Dir.). Povos Indígenas. Passo Fundo, RS: Méritos, 2009.
PIMENTA, Carlos Alberto Máximo; SILVA, Camilo. REFLEXÕES SOBRE O BRASIL COLÔNIA: as Escolas de Samba e algumas histórias que a História não contou. Revista Ciências Humanas, UNITAU, Taubaté/SP - Brasil, v14, e30, 2021.
SEVERIANO, Rafael. OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL: Aspectos da transmissão musical. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Programa de Pós-Graduação em Artes, Belém, 2016.
SANTOS, Lucas. Samba didático: Com o Waranã da Tijuca e com as bênçãos dos Erês, o bem sempre vai vencer. Carnavalesco, 2021. Disponível em: https://www.carnavalesco.com.br/samba-didatico-com-o-warana-da-tijuca-e-com-as-bencaos-dos-eres-o-bem-sempre-vai-vencer/. Acesso em: 15 de jan. de 2023.
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Data de Publicação: 25/05/2023
Autoria: Ana Carolina de Souza de Oliveira; Diogo Alan Ferreira de Barros; Gabriela de Melo Vieira; Juliana Thyfani Saraiva Aney; Marcos Vinicius Soares dos Santos; Nathielle Lima Lyra.
Como citar este ensaio:
OLIVEIRA, Ana Carolina de Souza de; BARROS, Diogo Alan Ferreira; VIEIRA, Gabriela de Melo; ANEY, Juliana Thyfani Saraiva; SANTOS; Marcos Vinicius Soares dos; LYRA, Nathielle Lima. "Do Guajupiá ao Waranã: epistemologias indígenas na Marquês de Sapucaí". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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Do BBB, da pandemia e da profundidade de nossas dores e problemas coletivos
Jamille Macedo Oliveira Santos
Há quatro meses teve início o programa de entretenimento, reality show, Big Brother Brasil, uma cópia de uma franquia criada por um holandês, comprada e popularizada pela rede de TV nova-iorquina CBS. A versão brasileira tenta exportar literalmente para cá os padrões estadunidenses ou a máxima do sonho americano – seja linguisticamente (Big Brother), seja pelo formato de culminar com a premiação de um participante que fatura R$ 1,5 milhão de reais. Quem não quer ser um milionário? Quem não sonha em ter a oportunidade de ascender socialmente, entrar para o mundo dos ricos, ganhar fama e prestígio “num piscar de olhos”? E mesmo que não tenha “coragem” ou “oportunidade” de participar de um programa como o BBB, quem não gasta grande parte das horas do seu dia e dos seus anos de vida, na busca, muitas vezes, frenética e desenfreada, por ter uma condição “melhor”, enriquecer e ascender? E às vezes cai na armadilha da alienação de querer mais e sempre mais e nunca achar o suficiente, e nessa busca se perde da vida e do viver, e esquece o vasto, “a amplidão”, como diria a autora de Eu sei, mas não devia (COLASANTI, 1972).
As palavras de Vivian Camacho, médica e parteira tradicional quéchua, soam e ressoam o tempo todo em minha mente, não como o badalar do sino ou tic tac do relógio, apesar da sua urgência, mas como as melodias da floresta: “o sonho americano é o pesadelo de todos nós” (CAMACHO, 2021). Não consigo parar de pensar nestas palavras!
Nunca fui de assistir programas de entretenimento em formato de reality, talvez a realidade seja dura demais para vê-la reproduzida em menor escala na tela da TV, prefiro séries e filmes. Mas, em 2021, ano de maior gravidade da pandemia, fatalmente acabei dando maior atenção ao programa.
E o Brasil, neste que me incluo, em que uma parte da população conseguiu estar em casa na pandemia (como sabemos, infelizmente nem todos puderam estar em isolamento), sentou-se em seu sofá e deu maior atenção ao programa global (segundo dados do Jornal Extra, essa edição bateu o recorde de audiência, sendo a temporada mais vista dos últimos 11 anos). Sim, o Brasil, esse Brasil, que “está lascado” na (in)“feliz” acepção de Gil do Vigor (afinal para tentar lidar com o nosso caos coletivo só fazendo piada da nossa situação, mas a gente sempre fica naquela insistente dúvida: é “pra” rir ou “pra” chorar? Sim, a gente ri, mas na maioria das vezes a gente quer chorar). Esse Brasil se uniu neste ano para assistir, interagir, espiar, “se indignar”, torcer, votar para eliminar e finalmente votar para dar o prêmio a hoje milionária, artista e influencer, a paraibana “arretada” Juliette Freire.
Concordo que Juliette é um fenômeno, mulher forte e cheia de qualidades, com uma linda e inspiradora história de vida. Mas não são as trajetórias individuais o cerne da minha reflexão. Eu sei, trajetórias individuais e histórias de superação importam. Também sei que todas as pautas levantadas nesta e em outras edições, anteriores e posteriores – questões relacionadas ao racismo, machismo, xenofobia, LGBTfobia etc. – são extremamente relevantes e precisam, sim, ser tratadas, desconstruídas e combatidas. Mas, devo dizer que os nossos problemas têm um cerne profundo e profundamente arraigado na nossa completa dificuldade de nos enxergar enquanto “nós”. Todos problematizaram, foi fundamental e deve continuar sendo feito, as formas excludentes e cruéis com que alguns participantes, “brothers?”, foram tratados pelos demais, não apenas na edição de 2021, mas também nas que vieram posteriormente. Mas me pergunto: o que um programa como este enfatiza, se não a concorrência e por vezes a exclusão entre as pessoas?
Pense comigo, qual o cerne de um programa que incentiva a competição, a disputa entre indivíduos para ganharem 1 prêmio? Repare no formato. No final apenas 1 será o grande campeão ou campeã da jornada. Na vida funciona assim? Infelizmente funciona, mas não deveria! A gente se acostuma, mas não devia, como diria Marina Colasanti. Falava a escritora sobre a alienação ao tempo e ao espaço, vividos por homens e mulheres na sociedade pós-moderna. Nesse embalar dos dias, em que vamos nos acostumando e nos adaptando ao modo de vida capitalista, à correria, à rotina, à vida agitada, ao consumismo etc. E aprendemos a conviver com os grandes problemas sociais que estão ao nosso redor e também com pequenos problemas do nosso cotidiano, sem nos dar conta, sem reclamar, sem tentar mudar e sem nos revoltar para não nos machucarmos, não sofrermos e “não se ralar na aspereza da vida”. E vai “afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá”, já que a tentativa de mudança é quase sempre um processo marcado pelo conflito e pela dor.
Fatalmente, o BBB é a metáfora escancarada da nossa realidade, que extrapola, invade e inunda todas as esferas humanas, de um mundo amplamente capitalista e individualista, onde sonhos individuais são o fundamento e o cerne da existência, e pode valer tudo, ou quase tudo, porque afinal de contas o público não perdoa (a la às altas porcentagens de rejeição do chamado gabinete do ódio). A diferença é que não temos público externo, nós somos os nossos próprios espectadores. Ou temos, porque em algumas cosmovisões não somos os únicos habitantes do universo.
Por que somos o que somos? Por que não conseguimos minimamente olhar para o outro com empatia, ou, para além disso, nos pensarmos enquanto uma coletividade? A pandemia veio para nos mostrar o quanto nos faz falta os sentimentos de coletividade e solidariedade. Por que muitos, mesmo tendo possibilidade, não cumpriram os protocolos de isolamento social? Por que não há respeito e valorização a vida? Por que mais de 600 mil mortes não nos comovem ou não nos tocam como deveria? Por que a dor e a perda só fazem sentido quando atingem diretamente a cada um?
Sabe por quê? Porque consumimos diariamente a narrativa do individualismo, do malogrado “sonho americano”, o “pesadelo de todos nós”, volto a dizer, evocando as palavras de Vivian Camacho. Seja no reality show, que vemos de casa, engolindo publicidade em um discurso altamente enviesado, autocentrado na “única” possibilidade de realização pessoal através da fama e do dinheiro, sem parar para refletir em seus significados mais profundos. Seja nos livros de autoajuda, no que aprendemos na escola, nas redes sociais, nas lógicas de todas esferas da vida, seja econômica, política, e pasmem: até espiritual. Grande parte dos nossos pensamentos, aspirações, sentimentos e cognições estão contaminados por essa narrativa que se estabelece sobretudo com a gênese da colonialidade. Operando e sofismando-se cada vez mais com o capitalismo e o neoliberalismo dos nossos tempos. O pensamento neoliberal perpassa não apenas modelos políticos e econômicos, permeia as nossas formas de nos relacionarmos uns com os outros e com os demais organismos vivos que fazem parte da terra.
Quase sem pensar todos vivemos uma grande distopia coletiva de enorme proporção, mas ao mesmo tempo continuamos embebidos e acalentados pelo sonho americano. Lamentavelmente o BBB e todas essas narrativas e discursos, quase que onipresentes, instrumentalizam e cristalizam a ideia ilusória de que é maravilhoso viver em um mundo capitalista, excludente e desigual e patrocinam a fantasia de que essa é a nossa única possibilidade e alternativa de existência. Mas não é! Eu gosto de pensar nos tempos primórdios em que os seguidores de Cristo viviam em comunidade, no sentido genuíno da palavra, e “tudo lhes era comum”. Antes que você me pergunte de que livro comunista que eu tirei isso, trago a referência do Novo Testamento: Atos 2:44. Mas infelizmente, no BBB e na vida, somos arrebatados e levados pelo afã da competitividade e da necessidade de autopromoção, tendo sempre em vista a necessidade imperativa de conquistar o que é MEU. Nesse mundo, quase nada nos é comum, ou não reconhecemos que seja?
Muitos ao saírem do programa dizem que a experiência os fez amadurecer e aprender com intensidade e que com esse aprendizado se tornarão pessoas melhores (a exemplo de Karol Konká em A vida depois do tombo). Será? Melhores como? Em que sentido? Melhores para aparecerem “mais queridos” e “mais dignos” no close? Melhores para ter mais seguidores e receberem avalanches de likes e curtidas que servem exclusivamente para afagar o ego e conseguir maiores e melhores contratos de publicidade? Melhores para continuarem embalados pelo sonho americano de sempre ter mais e sempre se destacar e querer mais e mais e mais e mais para si?
Ah, mas não estou falando de nenhum pedestal, não mesmo, quem sou eu para isso. Também sou refém do sonho americano, vivo milhares de dilemas todos os dias na minha cabeça, sou sujeita aos “mesmos sentimentos”, mas vivo em luta contra essa minha/nossa tendência, buscando, de alguma maneira, ter o mesmo sentimento que havia em Cristo que se tornou um com nós, um em “nós”, o Deus conosco. Buscando também aprender com as cosmologias que são orientadas e orquestradas por outras lógicas não capitalistas. Aprecio muito a filosofia Ubuntu popularizada através de uma história, em que crianças “africanas” preferiram correr de mãos dadas para alcançarem juntas um cesto de frutas, numa ocasião em que um estrangeiro lhes propôs a competição. A filosofia presente na atitude das crianças é a essência da vida em comunidade: “Ubuntu, como um de nós poderia ficar feliz se o resto estivesse triste?”. A palavra antiga que na cultura Zulu e Xhosa significa “Sou quem sou porque somos todos nós” tem um ensinamento precioso para nossa existência.
Essa mesma história me faz lembrar da nosotrocéntica, ou ética da comunidade dos povos ameríndios, filosofia que perpassa diferentes povos e etnias em toda América (Abya Yala). Ela diz respeito à ideia de completude, de um bem viver que só se discerne nas relações com o outro, ou nas relações comunitárias. Como nos explica a filósofa mexicana Aimé González, em maya-tojolabal uma “pessoa autêntica é aquela que cumpre sua vocação como ser humano ao converte-se em parte do nós” (2018, p. 31, Tradução nossa).
Nesses tempos tão difíceis e obscuros, em que a morte, a dor e a doença andam à espreita, sorrateiramente minando nossas esperanças, mais do que autocuidado individual – “versão neoliberal do cuidado real, que quase sempre existe na relação com o outro ser humano como um ato de fazer algo pelo outro, porque ninguém sozinho dá conta de si mesmo” (DUVIVIER, 2020) – precisamos cuidar uns dos outros. Como disse Vivian Camacho, em sua aula no curso Saberes ancestrais e práticas de cura: “Só teremos paz ao cuidarmos um dos outros, a busca da paz individualista é uma falácia do mercantilismo [capitalismo]” (Camacho, 2021).
O BBB vai encerrar no próximo dia 25 de abril, e sempre recomeça a cada primeiro mês do ano, a pandemia oficialmente acabou desde o ano passado, mas é preciso refletir sobre o que podemos aprender com ambos, a fim de reconhecer, entender e lutar para superar os nossos problemas mais profundos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GONZÁLEZ, Aimé Tapia. Mujeres indígenas en defensa de la tierra. Madrid: Edições Catédra, 2018.
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
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Data de Publicação: 29/06/2023
Autoria: Jamille Macedo Oliveira Santos
Como citar este ensaio:
Santos, Jamille Macedo Oliveira. "Do BBB, da pandemia e da profundidade de nossas dores e problemas coletivos". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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Idiomas indígenas como línguas francas na América colonial
João Pedro Palmieri Ramos
O continente americano é conhecido por ser lar de muitas culturas, muitas das quais carregam idiomas próprios há séculos. Entre esse leque linguístico, um dos grupos menos conhecidos e respeitados pela população em geral, mesmo do continente, é aquele das línguas indígenas. Existentes há muitos séculos, as línguas indígenas não formam um grupo único ou coeso, nem um tronco linguístico único. São, na realidade, grupos de famílias muito diversas entre si, com histórias próprias e representando povos, línguas e culturas próprias.
Durante o período colonial, após a conquista do século XVI, introduziram-se novos idiomas no continente, como o espanhol, o português, o francês e o inglês. No entanto, seria um erro acreditar que as línguas indígenas foram imediatamente suprimidas e passaram a ser utilizadas por uma parte ínfima da população. Na realidade, o uso de línguas de base indígena permaneceu muito forte nas sociedades, mesmo sob domínio colonial europeu, e alguns países têm ainda hoje milhões de falantes.
Neste breve ensaio, descreveremos a história do uso de algumas destas línguas na América Latina durante o período colonial, através do fenômeno que ficou conhecido em diversos lugares como “línguas gerais”. Vale ressaltar que as “línguas gerais” não são formas idênticas ao uso das línguas no período anterior à colonização. São, na realidade, formas que adquirem aspectos relevantes das línguas ocidentais, especialmente a escrita com alfabeto latino e também palavras de origem europeia ou ainda de outras línguas indígenas. Focaremos aqui especialmente no caso da língua Nahuatl, mas também falaremos sobre o Quéchua, o Guarani e a Língua Geral Brasílica.
Nahuatl
A Mesoamérica possuía uma variedade linguística muito grande, com diversos povos falando línguas distintas entre si (CARR, 2007). O nahuatl já existia no período anterior à conquista e era amplamente falado na região do domínio asteca, uma vez que era a língua deste povo. Diferentemente de outras línguas da região, que eram concentrados em uma única localidade, o nahuatl era falado por uma área geográfica mais dispersa, com ilhas maiores ou menores de falantes (NAVARRETE LINARES, 2019), já servindo como língua franca na região mesmo antes da conquista (CARR, 2007).
A conquista e domínio espanhol representaram mudanças significativas na forma de organização linguística mesoamericana. Por um lado, viu-se a introdução do castelhano, mas também o contato com missionários levou ao desenvolvimento de uma variante do nahuatl escrita em alfabeto latino, conhecida como nahuatl clássico (CARR, 2007). Esse foi usado por missionários em suas tentativas de evangelização e catequização dos indígenas, o que ajudou a difundi-lo e a continuar sua expansão como língua franca da região.
A legislação do período mostra um fomento à língua espanhola, mas não uma total proibição da língua nahuatl. Embora Carlos V & I, rei da Espanha, tenha favorecido a língua espanhola especialmente entre a nobreza indígena, os reis Felipe II e Felipe III favoreceram o nahuatl para a evangelização (CARR, 2007).
O trabalho de clérigos ajudou a criar gramáticas da língua nahuatl e esta foi usada como forma de pessoas de regiões distintas da Nova Espanha comunicarem-se entre si. Segundo o Frei Gerónimo de Mendieta (1525-1604),
Esta lengua mexicana es la general que corre por todas las provincias de esta Nueva España, puesto que en ella hay muchas y diferentes lenguas particulares de cada provincia, y en partes de cada pueblo, porque son innumerables. Más en todas partes hay intérpretes que entienden y hablan la mexicana, porque ésta es la que por todas partes corre, como la latina por todos los reinos de Europa (MENDIETA apud CARR, 2007, p. 9)
Vê-se então claramente o caráter de língua franca. Em 1570, Felipe II decreta o uso do nahuatl como língua oficial de todos os indígenas da Nova Espanha, abandonando a política de seu pai Carlos V de favorecer o castelhano na evangelização.
No século XVIII em diante se percebe, por parte da Coroa espanhola, um favorecimento maior do castelhano e também uma maior pressão para o ensino das línguas indígenas. Até o fim do período colonial, a nobreza indígena acaba abandonando o nahuatl clássico e adotando o castelhano como sua língua. No entanto, na época da independência, variantes do nahuatl ainda são amplamente faladas pela população e servem de língua franca. Foi no período republicano quando, por influência das ideias liberais de nação, se buscou uma homogeneização cultural que privilegiou a castelhanização (BRYLAK et al, 2020).
Quéchua
Esta língua foi falada na região andina até o fim do Tahuantinsuyo, quando se viu a introdução da língua espanhola. No entanto, assim como no caso já estudado da Nova Espanha, esse idioma não cessou de existir e ainda hoje milhões de pessoas falam línguas oriundas do antigo quéchua em regiões do Peru, Equador, Bolívia e Argentina.
Após a conquista espanhola, o quéchua acabou sendo escrito com letras romanas e foi, assim como o nahuatl, usado como meio de difusão do catolicismo. O Terceiro Concílio de Lima aprovou o uso de uma variante do Quéchua para os esforços de evangelização. Em 1571, a variante é ensinada para padres em Lima (DURSTON, 2007). A variante também foi muito usada em materiais pessoais, como correspondências, etc, mas em outros níveis oficiais o castelhano teve mais uso.
O declínio do quéchua deu-se depois de meados do século XVII e ao longo do século XVIII, com políticas que induziram à castelhanização (ADELAAR, 2007). O uso da língua declinou com a perda de interesse pela Igreja e o Estado e também como reação a revoltas indígenas. Embora não tenha desaparecido, o foco torna-se menor.
Línguas gerais no Brasil
O caso do Brasil também é interessante. Durante os séculos XVI e XVII, a América Portuguesa era um caldeirão com diversas línguas e culturas muito distintas. Nesse contexto, com exceção da região costeira, surgem duas línguas de base indígena que são usadas vastamente pela América Portuguesa, seja por indígenas, seja por portugueses (NOBRE, 2011).
Essas línguas podem ser divididas entre Língua Geral Paulista (LPG) e Língua Geral Amazônica. A LPG foi o idioma mais falado pelo Estado do Brasil até o século XVIII, quando “políticas civilizatórias” buscaram introduzir o idioma europeu em detrimento da língua de base indígena falada (RODRIGUÊS, 2006 apud NOBRE, 2011) e também a questão da “difusão do idioma lusitano na sua variedade reformatada, que vinha sendo levada a termo, através de diferentes ciclos econômicos da Colônia, pelos negros escravos, fossem africanos, fossem nascidos aqui” (MATTOS E SILVA, 2004 apud NOBRE, 2011).
Na região do Estado do Grão-Pará e Maranhão, onde a colonização começa cerca de 100 anos depois, ocorre de forma semelhante o surgimento da LGA, também de base indígena (NOBRE, 2011). Ela expande-se amplamente pela região amazônica, mas também acaba entrando em declínio. Hoje em dia, o Nheengatu, falado no noroeste do estado do Amazonas é derivado da LGA, mostrando que essa vertente linguística não foi extinta.
Conclusão
Podemos perceber que no processo de colonização da América foi possível a manutenção de diversas identidades e elementos culturais dos povos originários. Muitos desses elementos misturam-se com aqueles trazidos pelos colonizadores, mas nem por isso deixam de existir. Verificou-se o comum fenômeno de exclusão das línguas indígenas, especialmente após o século XVIII e depois acentuado pelos regimes liberais do século XIX. Hoje em dia, é justo trazer ao conhecimento de mais pessoas informações sobre a persistência de elementos culturais dos povos originários, mostrando como a história não se esgota apenas com a história do colonizador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADELAAR, Willem. The Languages of the Andes. With the collaboration of P.C. Muysken. Cambridge language survey. Cambridge University Press, 2007.
CARR, David. La Política Lingüística en la Nueva España. Universidad de Guanajuato
Acta Universitaria Vol. 17 no. 3, 2007. Disponível em: https://www.actauniversitaria.ugto.mx/index.php/acta/article/view/156/133 . Acesso em 31 de maio de 2023.
DURSTON, Allan. Pastoral Quechua: The History of Christian Translation in Colonial Peru. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.
NAVARRETE LINARES, Federico. Os Nahuas e os Nahuatl, antes e depois da conquista, México, Noticonquista, http://www.noticonquista.unam.mx/amoxtli/2270/2257. Visto em 31/05/2023
BRYLAK, Agnieszka, MADAJCZAK, Julia, OLKO, Justyna and SULLIVAN, John. Loans in Colonial and Modern Nahuatl: A Contextual Dictionary, Berlin, Boston: De Gruyter Mouton, 2020. https://doi.org/10.1515/9783110591484 . Acesso em 18 de abril de 2022.
NOBRE, Wagner. Introdução à história das línguas gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial. Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/8334/1/Wagner%20Carvalho%20de%20Argolo%20Nobre.pdf. Acesso em 6 de junho de 2023.
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Data de Publicação: 08/08/2023
Autoria: João Pedro Palmieri Ramos
Como citar este ensaio:
Ramos, João Pedro Palmieri. "Idiomas indígenas como línguas francas na América colonial". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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A indústria cinematográfica e seus abusos em relação aos indígenas
Marcones Portela
A 45ª edição da Academy Awards (The Oscars) que ocorreu em Los Angeles (EUA), no ano de 1973, foi marcada por um dos episódios mais notáveis desde a sua primeira edição. Marie Louise Cruz, atriz conhecida como Sacheen Littlefeather, foi vaiada após discursar e negar o prêmio vencido pelo ator Marlon Brando, que levou a estatueta por sua interpretação no filme “O Poderoso Chefão” (1972). O ator enviou a atriz em seu nome como ato de boicote e denúncia do descaso da indústria cinematográfica com os povos originários dos Estados Unidos.
Esse é um apontamento preciso de Brando. Por mais que atualmente o ato de Brando suscite debates, que giram em torno do conceito de “homem branco salvador”, este foi muito importante para que algo fosse sinalizado e relembrado. Mesmo que a ideia tenha sido projetada por um homem, quem sofreu violências foi a própria atriz. A atriz foi rechaçada, hostilizada e teve sua origem indígena questionada – Littlefeather tem origem indigena por parte de seu pai, descendente dos grupos Apache e Yaqui, povos da região que hoje se chama Arizona nos Estado Unidos. A indústria do cinema sempre escanteou tanto a cultura indígena quanto os profissionais indígenas e, por muitas vezes, os grupos originários, quando retratados em obras populares e de grande alcance de público, o são de forma recreativa e desrespeitosa.
Por isso é muito importante conhecermos e estudarmos as demandas indígenas e suas diversidades. É de suma importância estimularmos ainda mais o hábito de consumir, obviamente de forma respeitosa e adequada, a filmografia e os trabalhos desses profissionais, tanto do território nacional como de outros países do continente americano. No filme “Pantera Negra: Wakanda Forever” (2022) dos estudios Marvel/Disney, um dos principais personagens da ficção é o vilão “Namor”, interpretado pelo ator mexicano Tenoch Huerta, que é alvo de duras criticas pelos seus posicionamentos políticos na lutra contra o racismo e exclusões dos povos indigenas, assim como a também já citada Sacheen Littlefeather, que após seus trabalhos como atriz e modelo se dedicou ao ativismo indígena na Califórnia.
Em nosso país temos um catálogo riquíssimo tanto de obras quanto de profissionais nesta área, e que sofrem dos mesmos preconceitos e violências. Alguns exemplos que podemos citar seriam: “Teko Haxy - Ser Imperfeita” (2018), de Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro, obra premiada e aclamada por possuir um conteúdo intimista e nos mostrar, em dois mundos diferentes, os pontos de vista de ambas as cineastas; “As Hiper Mulheres” (2011) de Takumã Kuikuro; “Yãmĩyhex – As Mulheres-Espírito” (2019) de Sueli Maxakali e Isael Maxakali; “Guardiões da Floresta” (2019) de Jocy Guajajara e Milson Guajajara, obra que contém um teor policial. Temos também a obra de um diretor não-indigena, Luiz Bolognesi, que fez uma ótima animação brasileira chamada “Uma história de amor e fúria” (2013). Bolognesi é diretor também de “Ex-Pajé” (2018), que faz uma crítica substanciada e bem documentada da demonização de culturas indígenas por parte de religiões cristãs e da busca por evangelização desses povos também pelas práticas de doutrina cristã.
Retornando ao ponto inicial do texto. Sacheen Littlefeather veio a falecer em 2022 em decorrência de um câncer na mama. Academia de Artes e Ciências Cinematográficas publicou uma nota oficial de pedido de desculpas pelo o que ocorreu em 1973, somente 50 anos depois do fatídico dia. Nesse mesmo ano de 2022, na premiação que aconteceu em março, os atores Will Smith e Chris Rock protagonizaram outra cena marcante na cerimônia do Oscar. Rock recebeu um tapa ao vivo de Smith após o ator e comediante ter feito um comentário delicado e ofensivo à esposa (Jada Pinkett Smith) de Will Smith, atitude que foi interpretada de variadas formas. Mas talvez importe dizer que Will e Chris são atores negros, pertencentes a uma classe que também é minorizada pela indústria cinematográfica. Ou seja: mais uma vez, pessoas que são minorizadas servem de espetáculo para uma elite branca, servindo de palco para a afirmação de discursos coloniais ocidentais por parte da mesma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, José Ribamar Bessa. Cineastas Indígenas - Um outro olhar.1ª edição.SP:São Paulo. Câmara Brasileira do Livro, 2010. 75 p.
EX-PAJÉ. Direção de Luiz Bolognesi. Brasil. Produção: Buriti Filmes e Gullane, 2018. acesso: streaming online. 81 minutos.
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Data de Publicação: 07/09/2023
Autoria: Marcones Portela
Como citar este ensaio:
Portela, Marcones. "A indústria cinematográfica e seus abusos em relação aos indígenas". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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Dos despojos da escravidão:
A violência das palavras nos casos de Astolfo Marques e de Agnello Assumpção Lapa
Darville Lizis
Introdução
O corpo, território-fronteira entre o cativeiro e o não-cativeiro, trazia em si mesmo a marca do espectro da escravidão: a cor; e de uma ausência: a liberdade. Ser livre não bastava. O ser negro/a e o ser escravo/a confundiam-se como categorias sociais através daquilo que não se poderia esconder: o corpo. Em um passado-presente contínuo, ininterrupto, o ser-negro/ser-negra traz em seu corpo as marcas remanescentes da escravidão, da racialização que os hierarquizou e os marginalizou.
As maneiras pelas quais (res)significamos o ser-negro estimulam, validam e criam formas de violência que, entranhadas no imaginário, conduzem a uma seara contínua de destruição do Outro, sobretudo, e, primacialmente, através do discurso. As palavras não trazem em seu bojo uma brutalidade mais amena, por estarem somente alocadas nos planos das ideias. Lembrando Toni Morrison (2019), as palavras não são violentas, elas são a violência.
Objetificar o Outro, tratá-lo como dessemelhante radical, hostil e ameaçador mata e o extermínio extrapola o campo simbólico - como se, aliás, o campo simbólico não matasse por si mesmo – levando à morte do corpo. O alterocídio (MBEMBE, 2018) social e difuso empreendido pela branquitude deixa vestígios, marcas, cicatrizes e traumas contínuos. A branquitude cria padrões e expurga/parasita todo o desvio imaginado, transformando o Outro em aberração (FANON, 2008). Os dizeres e os modos de dizer produzidos em determinado espaço, tempo e lugar social fazem parte de toda uma rede de enunciados, de um archeion (MAINGUENEAU, 2016) no qual todos os textos escritos pelos homens e pelas mulheres compõem um legado. Os dizeres, os não dizeres, aquilo que é dito e não dito são atravessados por ideologias que, muitas das vezes, estão na superfície, nos interstícios.
Estruturas de poder atravessam os meios de produção, de circulação, de transmissão, de legitimação ou não dos discursos (VAN DIJK, 2008). A circularidade dos textos no fluxo- autor-leitor-público hierarquiza aquilo que se considera importante de ser lido, lembrado, refletido, armazenado e o que deve ser esquecido, ignorado, negligenciado e rasurado. O poder, ou melhor, as pessoas que exercem o poder econômico, simbólico, cultural regem, salvo rupturas, o archeion.
Trago dois casos: um do século XIX, outro do início do XX. No primeiro, temos Agnello de Assumpção Lapa. Ele, em uma publicação própria em um jornal de grande circulação local, no período pré-emancipação (1887), responde a uma acusação: ser escravo. No segundo caso, há, não a voz do negro, mas o discurso de alguém em relação ao negro, identificado, sobretudo, por meio do seu corpo, do seu ser-racializado. Humberto de Campos, em uma autobiografia escrita esparsamente ao longo dos anos, relembra a sua vida pregressa. No exercício de rememorar, Campos assinala vários personagens pelos quais cruzou o caminho, um deles, Astolfo Marques, escritor negro de origem humilde.
Agnello Assumpção Lapa por ele mesmo
Saidiya Hartman nos diz que “o arquivo sobre a escravidão repousa em uma violência fundadora; essa violência determinada, regula e organiza os tipos de enunciados que podem ser formulados sobre a escravidão” (2021, p. 120). Ao falarmos sobre a escravidão devemos lembrar do apagamento, do esquecimento, da não-presença naquilo que está inscrito. As fontes são, em grande parte, como nos lembra Trouillot (2016), oriundas do poder e a ele assujeitadas em um dado modelo/armazenamento de memória-história. Encontrar a voz ipis literis em um texto de um ser humano outrora escravizado refletindo sobre a própria condição e arrogando-se, claramente, uma identidade de ex-escravizado é, se não raro, incomum, pelo menos na historiografia brasileira.
Ao me aventurar nos mistérios da hemeroteca em busca de referências sobre a escravidão, encontro uma publicação singular, no jornal A Pacotilha, de 9 de maio de 1887, assinada por Agnello Assumpção Lapa. O texto dirigido a alguém sem nome, na seção ao público, respondia a uma ofensa à honra. O autor se diz não acostumado com as lides da imprensa, mas diante da calúnia de “um infame”, resolve defender-se. Além do adjetivo desairoso, o interlocutor de Lapa é igualado, pela sordidez da acusação, a um assassino e covarde. Ao longo do texto os nomes desprestigiosos: miserável, biltre, beberrão, farroupilhas, crapuloso, filho libertino, frequentador das casas de correção, covarde, facínora e, por ironia, cavaleiro da boa indústria.
A acusação do sujeito inominado: Lapa ser escravo. As estratégias de defesa ao autor da publicação diante da desfeita nos desvelam maneiras de ser e de pensar de alguém que, como observamos ao longo da publicação, fora escravizado. São raras as fontes nas quais alguém que fora cativo referencia a escravidão, além de instaurá-la na subjetividade. Os meandros discursivos de defesa do “acusado” revelam uma hierarquização moral. Ele, Lapa, se coloca em um patamar superior, pois não lhe pesava nenhuma acusação de mal-feito.
A resposta de Lapa, por sorte nossa, transborda de significados e sentidos atribuídos não à escravidão, mas ao “ser escravo” e, por oposição, ao “ser livre”. Ao tecer uma hierarquização moral, ele nos revela as estruturas de pensamento de alguém que foi escravizado. Palavras de Lapa: “fui escravo, mas hoje, apesar de tudo não me troco por esse infame”. Ter sido, outrora, cativo, mas hoje não sê-lo, marca uma cisão fundamental no discurso. Foi escravo, mas não é; além disso, apesar de tudo, não se troca pelo acusador. Convido a nos debruçarmos nas palavras ipsis litteris de Agnello, particularmente em três palavras que atravessam a frase de indignação do autor: apesar de tudo. Apesar marca uma oposição/ uma concessão àquilo que, em princípio, espera-se, mas é frustrado. Poderíamos, por analogia, utilizar o apesar de duas outras maneiras. Em sentido diacrônico a pesar – separado – significado com pesar, ou seja, com tristeza; ou, indo ao latim, pesare cujo sentido orbita em torno daquilo que se pondera/se reflete.
Após o apesar, ligada pela preposição de, há uma pequena palavra de quatro letras: tudo. Nos estudos da língua, tudo é chamado de pronome indefinido ou podemos também alcunhá-lo de referenciador. Tudo é um termo vazio de sentido por si mesmo, ou seja, a palavra precisa de um anteparo para significar. Tudo sempre encapsula algo anterior, seja dentro do texto, chamado cotexto, ou fora dele, chamado contexto. No caso de Lapa, tudo significa a escravidão e, ao se referir, ou melhor, ao se encapsular a escravidão em um termo antecedido por uma palavra opositiva ou concessiva – apesar – Lapa nos informa muitas coisas. A vida pregressa da escravidão e ainda contínua cuja marca, a sua cor, em constante estado de rememoração: tudo. Apesar de ter sido escravo, apesar do não-ser, por oposição livre, apesar de estar em cativeiro, apesar de ter a sua mobilidade restringida, apesar de seu corpo e seus movimentos pertencerem a alguém, apesar de ser propriedade de outro/outra, apesar de tudo, de todo o peso material, simbólico, político, social, ele, Agnello Assumpção Lapa, não se troca por um livre, supostamente, nato. Apesar de tudo, refletindo sobre seu passado-presente, com pesar do seu presente-passado, ele não se troca.
Lapa hierarquiza comportamentos seccionando-os da cor. Vergonha, segundo ele, é ter predicativos ruins de caráter, mas “nunca porém ter sido escravo”. Ainda mais: o autor afirma ter honra em pertencer à sociedade, pois “no meu procedimento passado como no presente, não encontrará esse facínora uma só falta que me faça corar perante a sociedade”. Lapa desracializa o caráter e quebra os liames entre liberdade-escravidão, onde o cativeiro seria nascedouro daquilo que Joaquim Manoel de Macedo, na coletânea de três novelas, As vítimas-algozes (1869), tentou demonstrar: a escravidão corroía o homem/a mulher degenerando-o.
As palavras de Agnello de Assumpção Lapa não bastam, a prova da sua liberdade é o discurso de autoridade do Outro. Ao arrogar a sua condição de livre, ele subscreve, ao fim da publicação, um documento, que, segundo as palavras dele, muito o honrava. Na transcrição, assinada por Isaura Amelia Lapa, escrita a rogo de D. Francisca Benedicta Pereira Lapa, descobrimos que Agnello, desde 1882 “é livre e senhor das suas vontades” e que a tem acompanhado desde a morte do seu irmão (de D. Francisca) prestando-lhe auxílio nas “suas precisões” e “podendo o mesmo fazer d’este, o uso que lhe convier”.
Do texto de D. Francisca entrevemos vestígios que não fogem aos inúmeros casos de seres humanos anteriormente escravizados/as que prestavam ainda auxílio aos seus antigos/as escravizadores/as. Pelo texto, não há menção à maneira pela qual Lapa logrou a alforria, se por vontade de D. Francisca ou do irmão dela. Talvez ele tivesse sido alforriado condicionalmente, como era comum, desde que assistisse D. Francisca até a morte? Ou, não é improvável, que Dona Francisca tivesse herdado do irmão o alforriado. Da família Lapa, Agnello herdou/comprou/negociou/regateou a liberdade mantendo com os seus antigos/as senhores/as – escravizadores/as, o sobrenome, Lapa e os laços de gratidão.
As palavras de Agnello de Assumpção Lapa, sintomas de uma estrutura discursiva, extrapolam o cotexto e o contexto imediato. O Outro define o discurso de Lapa e, a partir do revide, o imbróglio nos legou uma estrutura argumentativa de um ex-escravizado, sob a vigência da escravidão, tecendo considerações, ainda que brevíssimas, sobre o ser-escravo. O ethos dito e mostrado de Lapa exprime um homem firme, orgulhoso, destemido e seguro das suas próprias convicções morais - lembrem-se: ele hierarquiza categorias de moralidade. Apesar de tudo, há/existe um ser-homem, ser-consciente, ser-livre, ainda que racializado, seguro do seu ser-estar no mundo.
Astolfo Marques, um autor da província, pelo olhar do Outro
Astolfo Marques, quando reportado por Humberto de Campos nas suas memórias esparsas, tem as características físicas destacadas: homem de cor, tez escura e embaciada como as dos negros que sofrem do fígado, estatura mediana, fronte larga e fugidia, boca enorme, bigode ralo, dentes enormes e brancos, beiçorra da raça (2009, p 289). Palavras superlativas - enormes, larga, beiçorra – compõem a imagem racializada de Marques. Não era apenas um autor, mas um autor negro com todos os estereotipados traços. A escolha das palavras, ainda mais de um escritor apurado, nos indica intenções subjacentes que, apesar do autor, resvalam do texto. Humberto de Campos parece, entretanto, reconhecer concessões. Marques era amanuense da Biblioteca, mas... entre os mas, o autor negro permanece no seu lugar de subalternidade. Desempenhava todos os misteres de servente: varria o salão, espanava as estantes, etiquetava os livros, enchia filtro, molhava uma planta e se dirigia à Casa Trasmontana várias vezes ao dia para comprar refrescos de tamarindo para outros escritores (Idem). A bajulação rendeu-lhe frutos. Marques fez-se indispensável aos brancos, um corpo subalterno, espécie de faz tudo da repartição. Para Campos, os negros ascendem através da adulação e do trabalho excessivo, ou seja, doses bem medidas de meritocracia carregadas de chaleiragem são o “mapa do tesouro”.
Justifica-se a obscuridade de Marques por escrever “em estilo e sem brilho”. Nunca a escrita de um autor negro poderia, no horizonte de Campos, captado no texto, produzir uma literatura de brilho e de estilo. Talvez estivesse correto, em um mundo branco, destacar a raça na escrita. Talvez fugisse ao que se esperava da “boa literatura”/vivente. A mentalidade escravocrata fundiu submissão e subalternidade à cor preta. Condiciona-se a ilusória e frágil ascensão social, uma alforria atualizada, à subordinação absoluta. No caso de inadequação-insurreição à imagem exigida pelo outro, o negro/a negra submerge, torna-se, pelo olhar obnublado e racista, um corpo perigoso, atrevido. Três caminhos se apresentam: obliterar o texto, rasurá-lo, ou reescrevê-lo, ressignificando aquilo que o próprio Humberto de Campos nos revela.
Imaginemos, então, pelas fímbrias do texto de Campos, um outro Astolfo Marques: negro, filho de lavadeira e engomadeira de primeira, competente amanuense da Biblioteca pública, leitor obstinado, que galgou o posto de secretário-geral da Oficina dos Novos. Funcionário gentil, imprescindível e prestativo, apreciava manter o ambiente de trabalho meticulosamente limpo e agradável, seja pela presença de plantas, seja pelos sorrisos generosos que distribuía a todos. Impecável no figurino, Marques trazia sempre o terno azul-marinho e o colarinho esmerados. De olhar arguto e perspicaz, apresentando notável erudição, além de incursionar pela história, escreveu contos, romance, crônicas (1905; 1908; 1913), nos quais soube, com maestria, captar o cotidiano da capital maranhense.
Conclusão
Astolfo Marques e Agnello Lapa de Assumpção, dois homens livres marcados pela escravidão. Se sobre o primeiro, diante do corpo já morto, pesa um discurso (in)defensável; o segundo, reage, responde, sistematiza, descreve, tentando, em certa medida, colocar sob os seus termos aquilo que considerava injusto: ser acusado falsamente. Para Lapa, qualidades morais individuais maculam a respeitabilidade, o lugar social; ser livre ou cativo, não. Ele toma a palavra. Usa a palavra. Manipula a palavra, mobilizando a sua experiência e, a partir do seu lugar primeiramente imposto e depois disso, (re)construído por ele, Agnello faz da resposta ao acusador um ensaio de escrevivência (EVARISTO, 2009), trazendo o legado das vozes de uma coletividade e da sua própria voz no presente-passado.
Os despojos de Astolfo Marques são revirados. A sua pele, já desaparecida, torna-se uma questão. Não consigo afirmar se o posterior apagamento de Marques deve-se a acontecimentos específicos. Diante da conjuntura discursiva e de tantos enunciados ditos, não-ditos, (mal)ditos, Raul Astolfo Marques, em último caso, segundo alguns nomes da crítica, tem uma “obra menor”. Atravessam a arbitrariedade do cânone diversos matizes, não só de cor/raça, mas de gênero, origem social, lugar de nascimento, classe. Todas as intersecções interferem na presença ou na ausência, no já tão desprestigiado e combalido - não sem razão - cânone. Circunscrever o apagamento no mundo das letras às cambiantes e escorregadias qualidades estéticas não resolve o problema. Um simples passeio pelo cânone literário brasileiro faz cair por terra o incompreensível preciosismo estético.
Astolfo Marques, imerso em um país feito sob a escravidão, sobre a escravidão, da escravidão e pela escravidão, com a escravidão, faz da sua obra uma resposta. Responde, ainda que sem intenção, do passado-futuro ao presente-passado. Ao caminharmos pela literatura de Marques, ele, do passado, nos responde. Responde a Humberto de Campos, responde a mim, a nós. Ou, reconstruamos: Astolfo Marques, necessariamente, não precisaria responder, fazendo da sua palavra resultado direto da palavra do Outro. Astolfo Marques, o autor negro maranhense, existiu, existe e existirá por ele mesmo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, H. Memórias e Memórias inacabadas. São Luís: Instituto Geia, 2009.
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. Angela Corrêa & Ida Lúcia Machado. São Paulo: Contexto, 2008.
CHARAUDEAU, P. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.
EVARISTO, C. Depoimento cedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em: 20 de agosto de 2023.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Editora EDUFBA, 2008.
GATO, M. de J. Raça, literatura e consagração intelectual: leituras de Astolfo Marques (1876-1918). In: MARQUES, A. O 13 maio e outras estórias do pós-Abolição. Org. Matheus Gato. São Paulo: Fósforo, 2021.
HARTMAN, Saidiya. “Vênus em dois atos”. In: BARZAGHI, C; PATERNIANI, A; ARIAS, A. Pensamento negro radial: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo ; N-1, 2021.
LAPA, A. “Publicação a pedido.” A Pacotilha. 09 de maio de 1887.
MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Editora Contexto, 2016.
MARQUES, A. A nova Aurora. São Luís, MA: Tipografia Teixeira, 1913.
MARQUES, A. A vida Maranhense. São Luís: Tipografia Frias, 1905.
MARQUES, A. Natal (quadros). São Luís: Tipografia Teixeira, 1908.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2008.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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Data de Publicação: 10/10/2023
Autoria: Darville Lizis
Como citar este ensaio:
LIZIS, Darville. "Dos despojos da escravidão: a violência das palavras nos casos de Astolfo Marques e de Agnello Assumpção Lapa". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/ensaios
ISSN 2764-9407
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ARTIGOS
A experiência afrodiaspórica brasileira sob o olhar do carnaval contemporâneo
Gabriela Barros Vasconcelos
Resumo: O presente artigo busca pensar o carnaval contemporâneo a partir de suas múltiplas facetas, partindo de uma análise descolonizadora que interpreta a festividade como produtora/reprodutora de conhecimento, trazendo sujeitos, até então excluídos do palco principal, para o centro dos debates sociais e culturais. Em um primeiro momento é traçado um panorama histórico da reemergência das identidades africanas através do Entrudo, festividade luso-brasileira precursora do carnaval e importada durante a segunda metade do século XVIII, em um contexto de escravização e intensa repressão social. Em um segundo momento, é abordado um dos maiores símbolos de expressão da resistência negra presentes no carnaval contemporâneo: o Ilê Aiyê, primeiro bloco negro brasileiro responsável por resgatar a ancestralidade africana e torná-la pauta política através da fundação de inumeras ações afirmativas.
Palavras-chave: Carnaval; resistência negra; Ilê Aiyê.
Abstract: This article seeks to think about contemporary carnival from its multiple facets, starting from a decolonizing analysis as it interprets thes festivity as a producer/reproducer of knowledge, bringing subjects, until then excluded from the main stage, to the center of social and cultural debates. At first, a historical overview of the reemergence of African identities is drawn through Entrudo, a Luso-Brazilian festival that preceded carnival and was imported during the second half of the 18th century, in a context of enslavement and intense social repression. Soon after, there is an exhibition of one of the greatest symbols of expression of black resistance present in contemporary carnival: the Ilê Aiyê, the first Brazilian black block responsible for rescuing african ancestry and making it a political agenda through the foundation of numerous affirmative actions.
Keywords: Carnival; Black resistance; Ilê Aiyê.
Introdução
Formado em fins da década de 1990, o Grupo Modernidade/Colonialidade tem por objetivo a ruptura com a visão eurocêntrica em relação à América Latina, promovendo intensos debates sobre as especificidades históricas e diferentes formas de colonização ainda vigentes no continente americano. A partir da perspectiva decolonial proposta pelo grupo, pode-se notar o quão forte é a presença das ditas “normas” europeias que atuam sobre os campos do ser e saber, ou seja, sobre o modo como cada indivíduo deve agir e pensar, influenciando diretamente a produção de conhecimento. Pode-se também contestar a validade do conhecimento “universal” tão valorizado no interior do ambiente acadêmico. Afinal, será mesmo possível produzir um discurso neutro falando de um lugar específico marcado por grandes desigualdades na divisão de cargos hierárquicos?
O racismo apresenta-se como uma das principais armas atuantes na manutenção das relações de poder presentes nas sociedades ocidentais, fruto de uma longa construção simbólica e escravista criada para fortalecer a ideia de uma suposta superioridade branca e ocidental em prol de seus interesses econômicos, infiltrando-se nos setores sociais e moldando as interações neles existentes. A implementação do racismo implicou consequentemente a exclusão de indivíduos pretos das estruturas políticas e sociais, relegando-os às margens das estruturas oficiais e criando um grande fosso de desigualdade representativa expressa através da dificultação do acesso ao mercado de trabalho e do tratamento social desigual praticado pelas autoridades institucionais. Portanto, ao partir da análise histórica e social, todo e qualquer discurso, seja de caráter político ou científico, estará submetido às forças simbólicas e suas às consequências dentro de determinada sociedade, onde, em sua maioria, há o endossamento do discurso do grupo dominante em detrimento do discurso do “Outro”, inviabilizando um pleno exercício da cosmopolítica.
Basta olhar para o contexto atual brasileiro referente ao crescente contingente de movimentos sociais como, por exemplo, os movimentos da diáspora africana, para entender melhor esta dimensão. Intelectuais como Lélia Gonzalez (1935-1994) lutaram, e ainda lutam, contra a exclusão de trabalhos acadêmicos centrados na situação da comunidade preta no contexto brasileiro, a fim de descolonizar o pensamento e propor novas epistemologias para a investigação dos fenômenos sociais existentes. Aqui o apreço ao estudo dos fenômenos sociais com base na subjetividade dos sujeitos ganha outra dimensão, ou seja, as experiências vividas por sujeitos oprimidos ganham um novo olhar e valorização dentro do campo da produção de conhecimento, ocorrendo uma subversão de valores entre conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo.
Diante da análise dos fenômenos sociais e culturais faz-se notória a inviabilidade de produzir um conhecimento universal seguindo as normas científicas do Ocidente, uma vez que a história da humanidade é marcada por disputas e construções de estruturas hierárquicas, enraizadas e transportadas ao longo dos séculos, incorporadas por um grupo dominante que sustenta seu poder até o presente momento. Daí surge a seguinte questão: como produzir conhecimento científico baseado na diversidade, sendo que o mesmo é produzido e legitimado pelo grupo dominante? Com certeza uma das maneiras mais eficazes para resolver essa problemática é abrir caminho para uma teorização da experiência, que se torna um valioso exercício para a descolonização do conhecimento.
A produção de conhecimento sobre o “dominado” encontra-se muitas vezes dentro da própria comunidade excluída, sendo expressado por meio de atividades comunitárias que impactam a vida política e cultural cotidiana. A carga de subjetividade dessas atividades expressa a constante luta e resistência contra um sistema violento, luta essa que frequentemente faz usos do passado para fugir de sua historicidade opressora e subverter os papéis entre oprimidos e opressores. Atualmente, um dos meios de maior expressão da subjetividade, ou resistência, presentes no Brasil são as manifestações artísticas, seja a música, a poesia ou a dança. Por intermédio delas, muitos indivíduos que habitam as margens da sociedade brasileira têm a chance de se expressar politicamente a fim de trazer à tona sua realidade. Além disso, as manifestações artísticas servem como potenciais veículos de propagação do conhecimento para temas que são constantemente discriminados e desvalorizados dentro do pensamento ocidental.
Entre as manifestações artísticas de maior impacto presentes no Brasil pode-se destacar o carnaval, celebração na qual fica evidente a grande diversidade cultural presente no país, de modo que não podemos mais falar de um carnaval, mas sim de carnavais. Devido à extensão territorial e às diferentes culturas aqui presentes, cada região interpreta a festividade a partir da sua visão de mundo, traduzida através da incorporação de sua religiosidade, sua música e seus ideais. Uma característica comum à maioria das regiões brasileiras é o uso do carnaval como instrumento de crítica social, que expõe as problemáticas políticas, sociais e raciais nas quais a maioria da população brasileira se encontra inserida. Um claro exemplo são os desfiles promovidos pelas escolas de samba, sendo estes importantes receptores e propagadores das cosmovisões africanas através de suas músicas, elemento central dentro do universo religioso e cultural de muitas etnias.
No universo carnavalesco da Bahia podemos destacar o papel exercício pelo Ilê Aiyê, um bloco de carnaval afrodiaspórico criado em 1974 com foco em promover a valorização da cultura africana e o orgulho negro. Surgido em um contexto onde as dinâmicas raciais ditavam quem era digno de participar das sociedades carnavalescas da época, o Ilê Aiyê, criado a partir do terreiro Ilê Axé Jitolu, se propôs a ser não somente uma festividade que abraçasse as camadas mais populares da sociedade baiana, mas também um projeto político social capaz de combater a desigualdade e desconstruir a narrativa ocidental.
A apropriação do carnaval pela população afro-brasileira tem suas raízes no século XVIII com a comemoração do Entrudo, sendo palco de diversas proibições e resistências. Mas afinal, como o carnaval contemporâneo tornou-se essa potência política e cultural capaz de pôr em evidência culturas e sujeitos que por séculos foram, e ainda são, excluídos da narrativa histórica brasileira?
Do Entrudo às comunidades-terreiros: uma perspectiva histórica da reemergência das identidades africanas através da festividade portuguesa
O Entrudo foi inserido no Brasil durante a segunda metade do século XVIII, trazido por imigrantes portugueses pertencentes à Ilha da Madeira, Cabo Verde e Açores. Durante a Idade Média, a comemoração iniciava-se às vésperas da Quaresma e marcava o começo de grandes festas onde se permitia a prática dos excessos. O Entrudo caracterizava-se por danças como o maxixe e as batucadas de origem africana e brincadeiras típicas como, por exemplo, o arremesso de limão de cheiro, jogar água e farinha em desconhecidos na rua, assoprar feijão e milho pelo canudo, entre outros. Era o momento da liberação da sensualidade e liberdade, último dia em que se podia comer carne vermelha e beber em excesso, além de ter relações sexuais.
A festividade era também marcada por uma forte presença popular, sendo muitas vezes taxada de incivilizada por intelectuais e membros da aristocracia e alvo de constantes proibições e críticas. Importante salientar que até mesmo a população negra escravizada era liberada por seus senhores para a celebração e, coincidentemente, há poucos registros de fuga durante o período (GÓES, 2020, p. 2).
Mesmo com este cenário de maior liberdade ética e moral, fora dos padrões rígidos impostos pela igreja, fez-se necessária a fixação de normas que reafirmassem o lugar de cada indivíduo dentro da sociedade colonial. Com isso, mesmo que os escravizados pudessem usufruir da festividade, ainda eram submetidos a duras restrições sociais como serem proibidos de praticar as brincadeiras típicas de carnaval contra indivíduos brancos, enquanto estes teriam passe livre para tal ato. Também tinham o acesso restringido aos famosos bailes de máscaras, que representavam uma tentativa da elite colonial de apagar a herança “pagã” do Entrudo (que segundo o pensamento ocidental, seria fruto de toda selvageria e incivilidade daquela sociedade) e associá-lo aos costumes europeus tidos como mais civilizados. Independente de tais restrições, o Entrudo proporcionava à população negra um instrumento vital de crítica social através do ato de fantasiar-se de velhos europeus e membros da aristocracia, utilizando vestimentas e adereços típicos destas classes, podendo ser interpretado como um claro exercício de crítica à configuração social da época.
Os estilos musicais africanos inseridos na festividade consistiram em importantes atos de resistência diante do cenário excludente do pensamento ocidental. Os chamados batuques, palavra generalizante que designa as danças e bailes provenientes da cultura africana, na qual o samba se encontra inserido, eram populares entre uma parcela significativa da população brasileira colonial, sendo apreciados tanto por negros, mestiços e brancos. Os batuques foram introduzidos na cultura brasileira colonial através da vinda de grupos africanos e da incorporação de seus costumes. Pelo seu forte poder simbólico dentro das cosmovisões africanas, e por sua consequente popularização, os batuques em diversas oportunidades foram proibidos ou rechaçados pelas elites e autoridades governamentais, sendo alvo de constantes legislações e críticas de intelectuais da época. Desse modo torna-se evidente o forte incômodo causado no homem ocidental pelas manifestações simbólicas do Outro, pelas formas de ver e atuar no mundo que não condizem com o pensamento europeu. Para ilustrar melhor tal visão podemos recorrer aos relato do naturalista francês Alcide Orbigny (1802-1857) sobre os batuques, em sua publicação Viagem pitoresca através do Brasil:
Essa dança que reproduz no meio da semicivilização daquele país, quadros cínicos, só autorizados pela barbárie mais completa, não deixa de ser no Brasil a dança favorita de todas as classes e a única contra a qual os esforços da religião tem sido sempre vãos. (FLORES, 1996, p. 149-161)
Nota-se tal cenário repressivo até meados de 1888, com o fim do processo de abolição da escravidão. A partir daí há o florescimento de blocos e organizações, tanto comemorativas como religiosas, centradas especificamente em promover manifestações do universo simbólico africano, apresentando suas próprias narrativas em combate às teorias ocidentais que tentavam retratá-los como seres inferiores, desprovidos de cultura e intelecto. Os ranchos carnavalescos representam um belo exemplo de tais organizações. Nascidos em fins do século XIX e início do século XX, apresentam-se como um tipo de cortejo de caráter popular, fato que não atrapalhou sua crescente difusão entre a elite. Precursores das famosas escolas de samba, por meio deles organizavam-se desfiles e promovia-se a valorização do samba, da irmandade e das culturas africanas.
Nascidas dentro dos quintais de Mães de Santo e consideradas parte fundamental para o florescimento do samba, as comunidades-terreiros também desempenharam um importante papel de resistência no que tange às manifestações africanas de cunho cultural, social e ideológico, ao passo que se traduziram em um local de intensa troca e aliança entre a comunidade negra. Dentro do sistema de funcionamento das comunidades-terreiros, as dinâmicas sociais baseiam-se no parentesco comunitário, onde cada indivíduo exerce e participa ativamente das atividades a serem desenvolvidas. Um papel especial é reservado às mulheres, por serem consideradas integrantes fundamentais dentro da administração do terreiro e dos próprios rituais religiosos, na medida em que são as principais receptoras e distribuidoras espirituais. Já o sistema de conhecimento funciona por meio da vivência do rito. É a partir da experiência e participação ativa que o indivíduo iniciado na comunidade vai ter a oportunidade de reatualizar o universo simbólico negro. A tradição oral desempenha um papel fundamental nesse cenário uma vez que “há uma simbiose especial entre a expressão dinâmica oral e a estrutura rítmica" (THEODORO, 2009, p.227), transformando o poder dinâmico do som em um dos pilares dos rituais religiosos e da força da palavra, revestido-os de uma atmosfera de poder.
Foi ocupando esses espaços que a musicalidade negra, mais especificamente o samba, encontrou as condições favoráveis para o seu desenvolvimento e alcance nacional, tornando-se um dos estilos musicais mais populares do Brasil. O samba foi alvo de constantes apropriações para a legitimação de uma identidade nacional, o que pôs em evidência um grande paradoxo: promove-se a valorização de um estilo musical negro e genuinamente do povo, ao mesmo tempo em que há a tentativa de apagamento dos sujeitos por ele responsáveis, seja pela prática do racismo ou pela sua exclusão através da falta de políticas sociais efetivas.
Ilê Aiyê: O carnaval contemporâneo
“Que bloco é esse? Eu quero saber.
É o mundo que viemos mostrar pra você…”
O bloco Ilê Aiyê foi criado em 1974 por Antonio Carlos dos Santos, mais conhecido como Vovô, em colaboração com jovens afrodescendentes integrantes do terreiro de Mãe Hilda, Mãe de Santo do terreiro Ilê Axé Jitolu, localizado no bairro da liberdade em Salvador (BA). O projeto nasceu a partir da experiência de exclusão sofrida por Vovô na tentativa de inserir-se em clubes carnavalescos predominantemente brancos, sofrendo discriminação na hora de adquirir ingressos. Vovô percebeu então a necessidade de criar um ambiente em que negros, e todos que quisessem contribuir, pudessem desfrutar da festividade e sentir-se incluidos e representados de alguma forma. A iniciativa buscava radicalizar o modelo de carnaval até então vigente, dominado pela classe média-alta e desvinculado da diversidade cultural brasileira, desconstruindo o padrão estético dos blocos, da música e dos costumes, e atribuindo uma dimensão política à festividade para reivindicar a pauta racial. Importante salientar o contexto internacional da década de 70, quando houve o crescimento do setor musical de cunho ideológico entre a comunidade negra estadunidense, atribuindo lugar de destaque ao estilo musical soul, que consistia em um meio de comunicação efetivo de conhecimento e exaltação da cultura africana. Esse contexto claramente inspirou os fundadores do projeto Ilê Aiyê.
Não demorou muito para o projeto ser alvo de duras críticas por parte da mídia brasileira, sendo taxado de radicalista e intolerante por “atingir” a perfeita “democracia racial” defendida por aqueles que fecham os olhos para o passado e acabam por transplantá-lo em nosso presente. Em uma matéria do “Jornal a tarde”, publicada em 12 de fevereiro de 1975, ano da primeira apresentação do bloco, podemos ter noção da gravidade da denúncia:
BLOCO RACISTA – NOTA DESTOANTE - Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: Mundo Negro, Black Power, Negro para você, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de Bloco do Racismo, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte americano, revelando enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê, todos de cor, chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição existente no país contra o racismo é de esperar que os integrantes do Ilê voltem de outra maneira no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do instinto característico do carnaval. (VERGARA, 2017, p. 101)
Independente das críticas, o Ilê Aiyê hoje é considerado patrimônio cultural da Bahia, responsável por diversos projetos sociais em prol das parcelas sociais mais desfavorecidas da cidade de Salvador. Promove ações que vão muito além de apenas festejar os moldes de sua cultura; cria as condições necessárias para combater a narrativa ocidentalizante, ao descolonizar o pensamento de quem aceita o convite de imergir em um universo totalmente fora da sua zona de conforto e ao nos convidar a fugir de todos os conceitos que nos foram ensinados como os únicos válidos.
O Ilê Aiyê fundou inúmeras ações afirmativas. O concurso cultural para a escolha da canção-tema consiste na realização de um festival meses antes do carnaval, onde compositores são convidados a apresentar suas músicas para a escolha da canção-tema do ano, de acordo com o tema anunciado pela diretoria. Geralmente os temas giram em torno da própria história africana e diáspora, ressaltando personagens muitas vezes esquecidos pela narrativa ocidental, adotando um forte tom de protesto em suas letras e apresentações. Além de promover o concurso de canção-tema, hoje o Ilê Aiyê forma um grupo musical, intitulado Band’Aiyê. Composto por artistas afrodescendentes, o grupo conta com diversas músicas e 4 discos lançados, fazendo apresentações por todo Brasil e outras partes do mundo.
A partir das experiências musicais vividas pelo grupo, em 1992 foi fundado o projeto Band’Erê dentro do terreiro de Mãe Hilda com o intuito de promover a educação musical de crianças e jovens do bairro e localidades próximas, envolvendo expressões artísticas baseadas nas culturas africanas.
A Escola Mãe Hilda é uma instituição de ensino fundada em 1988 dentro da propriedade do terreiro Ilê Axé Jitolu, tendo por objetivo a promoção do ensino básico, destinado a crianças de 7 a 12 anos. Baseada em uma educação alternativa, a Escola usa diferentes metodologias de ensino para fugir da educação eurocentrada e inserir o estudo da cultura negra no currículo escolar. Todo o material utilizado em sala de aula é pensado e projetado para tal função. A Escola é financiada, assim como o projeto Band’Erê, pela própria Mãe Hilda e pelo dinheiro arrecadado durante os ensaios de carnaval que ocorrem na Senzala do Barro Preto, sede do bloco carnavalesco Ilê Aiyê.
Não podemos negar o valor simbólico que a Escola Mãe Hilda carrega consigo. Todo seu esforço para construir uma educação centrada na inclusão racial demonstra o quão defasado está o currículo escolar brasileiro, na medida em que não consegue dar conta de uma das maiores virtudes de nossa nação: a diversidade. A iniciativa não promove somente uma educação baseada na equidade, mas possibilita que cada sujeito negro saiba seu lugar no mundo; saiba que possui uma história, uma cultura e um motivo de esperança diante desse sistema que constantemente o inclui em categorias com as quais ele não se identifica e, consequentemente, o fazem se sentir sozinho e sem relevância, algo parecido com o "nada".
A Noite da Beleza Negra, concurso rebatizado por Vovô em 1988, tem por finalidade escolher a mulher, chamada de Deusa do Ébano, que irá representar o bloco carnavalesco durante o ano. De início pode até parecer um concurso de beleza nos moldes em que estamos acostumados: eleger mulheres predominantemente brancas, traços finos e representando os valores do ocidente, porém a noite da beleza negra vai além. No concurso há a análise de padrões que fogem do modelo ocidental ao levar em consideração o trabalho realizado na elaboração de vestimentas tradicionais, os trançados do cabelo, o gracejo da dança e, principalmente, o papel ativo da candidata dentro da comunidade negra, assumindo sua negritude e se orgulhando da mesma.
Considerações finais. O carnaval para além da festividade e do orgulho negro
Conforme exposto, pode-se perceber o papel central que o carnaval desempenhou ao longo dos séculos na reemergência da identidade africana no Brasil. Contudo, a festividade gera consequências em um país com uma herança predominantemente racista e misógina. O carnaval constrói uma imagem paradoxal da mulher preta: a mulher racializada, tida como inferior pelo sistema patriarcal branco, e a mulher hipersexualizada, tratada como um objeto de desejo primitivo e selvagem pelo mesmo sistema que a oprime. Tal aspecto pode ser encontrado na música “A mulher do fim do mundo” (2015), presente no álbum de mesmo nome e estrelado por Elza Soares (1937-2022). A letra da melodia carrega um alto grau de subjetividade à medida em que expõe as dores e fugas da realidade vivenciadas por mulheres pretas durante o carnaval:
“Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor”
No trecho acima fica evidente o contraste da vivência das mulheres pretas dentro da sociedade brasileira a partir de dois pólos diferentes. Um deles é o da mulher preta considerada “inculta” e “desqualificada”, que sofre com os efeitos de uma estrutura político-social racista e machista, sendo constantemente colocada às margens da sociedade. O outro é a hiper-sexualização da mesma durante o período do Carnaval, quando ocorre uma subversão de valores. A mulher preta, de uma simples doméstica por exemplo, torna-se a musa do carnaval, sendo este um momento caracterizado pelo seu endeusamento e pelo acobertamento da desigualdade racial presente em nosso país. Ou, como diria Lélia Gonzalez (2020), esta seria uma forma de justificativa para uma suposta “democracia racial”.
A música explicita que a solidão da mulher preta durante o Carnaval transforma-se em atenção. Desta vez sua cor de pele e suas questões sociais são ouvidas, assim como seu padrão de beleza é idealizado e altamente sexualizado. Tal situação pode servir como uma espécie de fuga da realidade, um momento em que a mulher preta se sente notada, acolhida e fora das margens da sociedade por um curto período de tempo.
“Na avenida, deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida, deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim”
Entretanto, logo essa realidade paralela entra em choque com a realidade social na qual ela está inserida. Realidade social na qual ela não tem voz e não é considerada digna de opinião, voltando assim para a “solidão”.
“Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar
Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar, cantar
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim, eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim”
Por fim, a artista encerra a canção com um tom de resistência, uma vez que se impõe e afirma sua posição de sujeito pensante. Interpretando os trechos, cantar seria como uma forma de propagar suas ideologias, seus anseios e seus sonhos, ou seja, seria uma forma de manter-se atuante em uma sociedade excludente.
A partir da análise da música de Elza Soares pode-se perceber o alto grau de subjetividade presente, por exemplo, em manifestações artísticas. Subjetividade essa que, por mais que possua questões relevantes para o meio acadêmico, político e social, segue sendo considerada imprópria para uso científico, contribuindo ainda mais para a predominância de questões privilegiadas pela sociedade branca. Em decorrência de tal situação, torna-se de suma importância a incorporação de novos conceitos e a renovação de paradigmas no modo de se fazer ciência, possibilitando assim a produção de um conhecimento plural que abrace diferentes perspectivas.
Por mais que o carnaval seja uma celebração genuinamente do povo e para o povo, adotando uma postura descontraída e alegre ao mesmo tempo que desempenha um forte papel político, não se pode fugir das problemáticas por ele colocadas, que estão intimamente ligadas ao nosso passado não tão distante. As práticas sustentadas pelo Ilê Aiyê desconfiguram as perspectivas impostas pelo sistema “universal” de valores e conhecimento propagado pelo ocidente, realizando o desmonte da narrativa racista em prol da descolonização do conhecimento e da luta antirracista. Devido ao caráter desempenhado por tais instituições políticas e sociais, é de suma importância o suporte financeiro de instituições públicas e governamentais, para que haja a garantia de um bom funcionamento. Porém o cenário que enxergamos é o de total abandono, obrigando o povo negro mais uma vez a lutar para manter sua história viva.
Referências Bibliográficas
GÓES, Fred. “Imagens do Carnaval Brasileiro do Entrudo aos Nossos Dias” In Brasiliana da Biblioteca Nacional; guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional/ Nova Fronteira, 2002, p. 573-588.
GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira” In Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2020, p. 75-93.
GÓMEZ VERGARA, Karen Ruby. “Que bloco é esse? Posicionamento do bloco afro Ilê Aiyê no carnaval de Salvador e o movimento do samba reggae” In Revista Brasileira do Caribe. São Luís, 2017, vol. 18, nº 34, p. 91-106.
FLORES, Moacyr. “Do Entrudo ao Carnaval” In Estudos Ibero-Americanos. 1996, vol. XXII, nº 1, p. 149-161.
THEODORO, Helena. “Guerreiras do Samba” In Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares. Rio de Janeiro, 2009, vol. 6, nº 1, p. 223-236.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1a edição. Rio de Janeiro, Editora Cobogó, 2020.
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Data de Publicação: 02/03/2023
Como citar este artigo:
VASCONCELOS, Gabriela Barros. "A experiência afrodiaspórica brasileira sob o olhar do carnaval contemporâneo ". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/artigos
ISSN 2764-9407
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RESENHAS
Paletó: a história de um intelectual indígena
Escrito a partir da experiência do luto da autora com a perda do seu pai indígena, Paletó, o livro reconstitui os oitenta anos de vida desse intelectual, e por meio de sua trajetória, a história de um povo amazônico
André Vilaça Guerra Monteiro
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Aparecida Vilaça
Paletó e eu: memórias de meu pai indígena.
Editora Todavia. 200 páginas. R$ 33,00
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O livro Paletó e eu: memórias de meu pai indígena de Aparecida Vilaça, minha mãe, é escrito a partir da experiência do luto da autora com a perda do seu pai indígena, Paletó. Contrariamente ao que essa motivação inicial sugere, não se trata somente de um livro triste sobre morte ou de um lamento, mas também de um relato bem escrito, bonito e divertido. O livro recebeu o prêmio “Casa de las Américas” de 2020 de não-ficção e, em sua versão em inglês, a medalha de ouro em não-ficção criativa do “Independent Publishers Book Award” em 2022.
A partir de relatos do próprio Paletó e de sua família, assim como da experiência de trinta anos de convivência da autora com o povo Wari’, localizado no estado de Rondônia perto da fronteira com a Bolívia, o livro reconstitui os oitenta anos de vida desse intelectual indígena, e por meio de sua trajetória, a história de um povo amazônico. Em meio às narrativas de Paletó, a autora expõe a sua vida pessoal e familiar, que se vê entremeada com a dele. Ao falar da sua trajetória como antropóloga, mostra-nos muitas vezes as partes mais bonitas dessa profissão – as relações de amizade que se constroem durante o trabalho de campo, que acabam ficando de fora dos trabalhos acadêmicos. O impactante relato da morte que abre o livro é seguido do relato de situações cotidianas, muitas vezes engraçadas, que permitem ao leitor conhecer vida de uma aldeia amazônica, assim como acompanhar o espanto e as reações de Paletó em suas viagens para o Rio de Janeiro, para visitar a nossa família.
Embora voltado para o público leigo, pois é escrito em uma linguagem simples e fluida, o livro é de grande utilidade para historiadores, sobretudo para aqueles que trabalham com história indígena e história decolonial. Ao longo dos oitenta anos cobertos pelo livro, o leitor tem acesso à conjuntura histórica que levou à invasão de seus territórios por não-indígenas, inicialmente seringueiros e, mais tarde, agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Funai, assim como missionários evangélicos e católicos, que tentaram (e conseguiram) convertê-los. Paletó nos relata os detalhes cruéis da invasão de seringueiros nos anos 1940 e 1950, a sua participação junto com os seus na defesa do território, os massacres de aldeias inteiras sendo que em um deles Paletó perdeu seu pai, irmão, esposa e filha, que viu tombarem mortos diante de si. Ao contato, seguiram-se epidemias que, ao final, dizimaram cerca de dois terços da população wari’.
Tive o privilégio de conhecer Paletó, a quem eu chamava de avô, desde os meus quatro anos de idade. Lembro-me do seu cuidado comigo, do tempo dedicado a preparar para mim um pequeno arco e me ensinar a flechar. Em uma de suas visitas à nossa casa no Rio de Janeiro, levei-os, junto com o seu filho Abrão, meu tio, para assistir no cinema o filme As aventuras de Pi em 3D. Quando, em uma das cenas do filme, um tigre escondido dá um salto, Paletó assustou-se e se escondeu debaixo da cadeira. Quando tentei explicar que o efeito de realidade era proporcionado pelos óculos, ele decidiu não mais usá-los. Em outra ocasião fui com eles em um restaurante de comida japonesa e ele me perguntou se ao comer peixe cru eu não tinha medo de que uma onça pudesse sentir o cheiro da carne crua em mim e me atacar. Respondi que na cidade não existiam onças e então ele complementou “Mas os cachorros grandes?”.
São esses pequenos casos e outros, relatados no livro, que me fizeram interpretar as situações cotidianas, sobre as quais eu jamais refletira, de maneira diferente. Sou grato à minha mãe pelas experiências que vivenciei em minhas várias estadias na aldeia, como caminhar pelo mato, caçar, sair de barco para pescar, tomar banho de rio, observar situações diferentes da cidade, experimentar novas comidas e entender o mundo por um outro ângulo, e também por me apresentar esse grande homem que foi Paletó e outros, que assim como ele, me ensinaram bastante.
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Data de Publicação: 30/03/2023
Autoria: André Vilaça Guerra Monteiro
Como citar esta resenha:
MONTEIRO, André Vilaça Guerra. "Paletó: a história de um intelectual indígena". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/resenhas
ISSN 2764-9407
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Uma releitura de Ler e escrever, de V. S. Naipaul
Autobiografia de um autor trinitário e de descendência indiana prova os impactos negativos gerados pela colonização linguística ocidental
Pedro Cunha de Lira
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V. S. Naipaul
Ler e escrever.
Editora Âyiné. 117 páginas. R$ 24,00
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Sou um explorador de silêncios. Essa minha curiosidade permite compreender a riqueza e diversidade de significados que essa palavra pode encarnar em diferentes contextos e ambientes: pode se tratar de uma ordem, onde alguém o emite para reorganizar todo desequilíbrio e excesso sonoro ao seu entorno; pode também ser uma ferramenta essencial que encaminha à contemplação, meditação e produção de algum ofício; e o seu significado mais trivial, popularmente definido como ausência de sons. Em todos esses casos, conjugados à ausência de leituras críticas sobre protagonismos até então, eu não era capaz de perceber que, entre tantos significados que a palavra silêncios poderia expor, outro já fora concebida, que é tão ancião quanto a sua barbárie: a colonização linguística. Esse modelo de colonização, ao mesmo tempo que é violento, suprime o protagonismo da linguagem nativa, que tem sua força de expressão e significados ancorados na oralidade, na escrita ou em ambas, forçando-as a adotarem as convenções de comunicação do colonizador e promovendo um auto-silenciamento. Constrói-se, portanto, um palco, onde a supremacia da comunicação se dá de maneira assimétrica aos atores colonizados; onde os atores, que dela se apropriam para romper com o silêncio, propõem a reflexão do quão custosa foram suas visibilidades em detrimento da perda de significados de sua linguagem nativa.
A violência linguística colonizadora, seguida de seu silenciamento, tem suas aparições em escala global. No aspecto dos povos nativos que possuem um sistema de escrita estabelecido, um ótimo e curioso exemplo é a pequena obra intitulada Ler e Escrever, do escritor trinitário Vidiadhar Naipaul (que assinava seus livros como V. S. Naipaul), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2001. Nesta obra, o leitor é transportado às memórias de infância de Naipaul, em Trindade e Tobago, quando esta era colônia do Império Britânico. Lá, notamos uma criança com a certeza de ser um escritor, mas dividida entre dois mundos que duelavam entre si, e a arena deste duelo era o campo da linguagem. A casa de seus avós, localizada numa colônia agrícola, era o único meio de contato com uma Índia rememorada a partir de um passado despedaçado. A religião de seus avós, junto de orações e cerimônias, era vista com estranheza por Naipaul, pois ninguém se preocupava em ensinar-lhe o idioma quando criança. Logo, por ter um superficial enraizamento de seu idioma nativo, as fracas raízes de uma Índia rememorada foram cortadas assim que o inglês penetrou em sua vida, minguando as forças de expressão de sua ancestralidade.
Se na disputa domiciliar de Naipaul, a conservação dos resquícios de sua ancestralidade encaminhava a uma batalha perdida, a escola, por sua vez, foi espaço de uma projeção de resistência. Enquanto colônia, Trindade e Tobago importava todos os recursos essenciais à sobrevivência: alimentos enlatados, remédios, filmes e, o essencial, os clássicos da literatura inglesa e gramáticas para alfabetização nas escolas. Portanto, os aspectos colonizadores não submetiam somente os corpos, tendo também como agenda a engenharia de um imaginário do colonizador.
Marcada pela literatura colonizadora, a infância de Naipaul é relatada junto a um grande incômodo pelo fato de não ter uma "chave imaginativa" independente. Sua imaginação, constantemente alimentada pelos gêneros narrativos, contextos sociais, construção de personagens baseados na metrópole, o impediam de ver-se como um escritor, visto que toda construção literária consumida não era compatível com suas pretensões de ambientar uma literatura em sua tradição, com elementos que já se apagavam em sua memória.
Em sua vida adulta, Naipaul despertará para a compreensão de toda a inquietação de sua infância, que anelava em ser escritor, quando obteve uma bolsa de estudos em Londres e foi convidado por acaso para escrever um livro sobre viagens. Tendo a oportunidade de viajar às comunidades locais de seus antepassados, com um maior repertório de leitura, ele irá empreender as ferramentas investigativas de um historiador - ir às fontes: documentos, memórias pessoais, testamentos, histórias locais - para a produção do seu livro. Mal sabia que estas seriam matérias-primas para produção de seus futuros romances e contos.
Ler e escrever não é apenas uma narrativa biográfica que compreende a trajetória de inquietações de uma criança colonizada com potencial de ser um grande escritor e que não tinha noção da violência linguística responsável por minguar seu potencial imaginativo. O livro também é uma espécie de declaração da importância da leitura dos clássicos. Graças às constantes e gentis reiterações do próprio autor, a obra também está longe de se propor como repertório para rechaço dos clássicos europeus. Naipaul reconhece nelas seus inigualáveis valores enquanto obras, modelos narrativos, construção de personagens e em sua formação intelectual.
Naipaul, ao se apropriar da linguagem colonizadora como ferramenta para equiparar essa assimetria da disputa linguística a condições iguais, revela o calcanhar de Aquiles de sua obra, falhando em um pequeno e essencial aspecto: esquece-se de compreender que uma língua está para além da simples capacidade de comunicação, e que cada palavra carrega uma semântica particular para entender e descrever o mundo, sendo resultado do modo de pensar de gerações, da identidade de um povo. Na tentativa de projetar seus romances sob a língua colonizadora inglesa, ambientados em sua antiga comunidade agrícola colonial, perde de vista os resquícios das capacidades de comunicação de seus antepassados e suas respectivas visões de mundo.
Tendo como pressuposto a violência linguística como arena das potências colonizadoras, como pensar a preservação das tradições e culturas de povos que são marcadas pela oralidade, atualmente? Em outras palavras, sendo a violência linguística de escala global, como resistem as comunidades nativas, no Brasil, com seu idioma que não é baseado em um sistema de escrita ocidental? Como se comportam os indígenas que, em contínua resistência a essa violência do silenciamento linguístico do colonizador, veem a ferramenta de tradução nos moldes de comunicação ocidental como uma perda abissal de significados e visão de mundo?
Certamente, seria fastidioso de minha parte elucidar cada pergunta junto de estatísticas concretas feitas recentemente pela Funai, por exemplo, quanto ao violento declínio dos números de falantes das línguas indígenas existentes no Brasil, algumas delas correndo risco de extinção. Logo, convém amalgamá-las, sem deixar de perder seus sentidos em comum - já tendo como êxito o objetivo da provocação levada aos leitores da importância da temática - em apenas uma pergunta: quais as consequências da perda de identidade de um povo ao ter sua língua silenciada por não se enquadrar na tradição de pensamento e ordem discursiva ocidental? Embora curtas, as respostas concedem uma dimensão vital da perda da língua enquanto sustentáculo de identidades. Para o historiador francês Bruno Delmas, com o crepúsculo da oralidade, perde-se, ao mesmo tempo, "sua utilidade psicológica e moral". Ter a possibilidade de conhecer suas origens é essencial para o homem; do contrário, a incapacidade de se reconhecer como parte de uma história coletiva geram "sujeitos neuróticos", amputados de sua ancestralidade. Para o historiador brasileiro José Bessa Freire, "A língua é o arquivo da história, é a canoa do tempo, responsável por levar os conhecimentos de uma geração à outra".
Essa nova concepção de silêncio, fruto de ações colonizadoras, é democrática, no sentido de que não tem preferência continental ou exclusividade de subjugar linguísticamente um único povo. Suas ações são engenhosas, expansivas e modeladoras; são sutis, quase que imperceptíveis. Embora estejamos falando de continentes diferentes, de culturas em nada semelhantes, de épocas distintas, em Naipaul e nos indígenas brasileiros vemos um denominador comum: (re)existir através da linguagem. Seja pela apropriação da língua inglesa pelo trinitário, para sua projeção no universo literário; seja também pela preservação das línguas nativas brasileiras, exercendo a tradição da oralidade, muitas delas incapazes de serem transcritas por consequência de suas complexidades fonéticas, de significados, sem encontrar palavras equivalentes no português. Retomando o início do texto, portanto, não é apenas a palavra silêncio que se abre para ter mais um significado - de violência linguística -, mas amplia-se nossa concepção semântica limitada a respeito de outras palavras também. Palavras como guerra, extinção, violência, esquecimento e colonização também têm novos desdobramentos de significados, quando seguidas pela lógica proposta; abrindo caminho reflexivo, portanto, onde as modalidades de violências não se apresentam unicamente de modo horizontal, isto é, fisicamente; mas têm sua agenda de ação na esfera vertical (identidades), onde atuam confortável e silenciosamente.
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Data de Publicação: 17/01/2023
Autoria: Pedro Cunha de Lira
Como citar esta resenha:
LIRA, Pedro Cunha de. "Uma releitura de Ler e escrever, de V. S. Naipaul". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2023. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/resenhas
ISSN 2764-9407
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EDIÇÃO 1 (VOL. 1 2022)
RESENHAS
Da Terra Média para Orïsha
Filhos de Sangue e Osso resgata o gênero de fantasia das mãos da branquitude europeia
Daria Fernandes Oliveira
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Tomi Adeyemi.
Filhos de Sangue e Osso.
Fantástica Rocco. 603 páginas. R$ 49,90.
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É impossível pensar o gênero de fantasia sem lembrar de J.R.R. Tolkien e o mundo da Terra Média por ele criado. Histórias sobre criaturas mágicas, heróis, magos, grandes batalhas entre cavaleiros e tesouros escondidos em masmorras são famosos tropos do gênero que foram estabelecidos pelo autor em livros como O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion. Fora o sucesso inquestionável que estas obras tiveram em inspirar incontáveis pessoas pelo mundo, elas acabaram também por inspirar outras obras de quase igual sucesso, desde outros livros considerados clássicos como Eragon, A Roda do Tempo e As Crônicas de Gelo e Fogo, até jogos como Dungeons & Dragons, The Witcher, The Legend of Zelda, Final Fantasy e muitos outros.
Outro fato inseparável, e inconveniente, das obras de Tolkien, é como elas são fortemente inspiradas em ideias racistas e supremacistas brancas de seu tempo. Mesmo que existam discussões imensas sobre o fato de Tolkien ser ativamente uma pessoa racista ou não, o mesmo era imensamente influenciado por estes ideais. Para a pesquisadora australiana Helen Young, em sua tese Race and Popular Fantasy Literature: Habits of Whiteness (Raça e Literatura de Fantasia Popular: Hábitos da Branquitude, em tradução livre), a Terra Média de Tolkien e as obras inspiradas na mesma têm sua origem em concepções racistas do início do século XX, como a eugenia e o orientalismo.
As raças da Terra Média, como elfos, anões, hobbits e orcs, concentram em si diferentes estereótipos racistas associados pelos europeus a diferentes povos da África, Ásia e das Américas. Um exemplo disso é como os chamados “homens do sul” são, ao contrário dos “homens do norte”, apresentados na obra como sujos, bárbaros e violentos. Os estereótipos propagados por Tolkien, assim como os diferentes tropos por ele criados, se espalharam e se misturaram com o gênero moderno de fantasia, fazendo com que a maior parte das obras que tiveram inspiração em Tolkien propagassem o racismo embutido na obra original sem nenhum tipo de consciência ou retratação.
Felizmente, de tempos em tempos surgem novas obras de fantasia que não só abdicam desse passado racista do gênero, como tentam ativamente combatê-lo. Este é o caso de Filhos de Sangue e Osso, de Tomi Adeyemi, o primeiro livro da triologia O Legado de Orïsha, que ao invés de criar um mundo de fantasia formado por elfos, dragões e romantizações da Europa medieval, concentra o protagonismo em uma terra onde Orixás e a cultura Iorubá são os principais elementos de uma narrativa que encontra espaço para falar sobre genocídio, vingança, amor e esperança.
Para pensar a importância da obra, é preciso entender como sua autora teve inspiração para fazê-la. Tomi Adeyemi, autora estadunidense de origem nigeriana, teve o seu primeiro contato com as histórias dos orixás quando foi para Salvador por meio de uma bolsa de estudos destinada ao estudo da mitologia, religião e cultura africanas, logo após se graduar em Literatura Inglesa pela Universidade de Harvard. Na capital baiana, ficou encantada com a existência desses temas e, anos mais tarde, usou sua pesquisa como base para criar o mundo onde os eventos de Filhos de Sangue e Osso ocorrem.
A obra se passa no continente de Orïsha, um pouco mais de uma década depois do evento conhecido como “A Ofensiva”, um genocídio perpetrado pelo Rei Saran de Orïsha contra os Maji, pessoas que foram abençoadas com o poder dos deuses, possuindo cabelos brancos e a capacidade de manipular diferentes aspectos da natureza como o fogo, a água, o vento, a luz e até a morte. Após "A Ofensiva", porém, os pouquíssimos Maji que sobreviveram acabaram perdendo sua conexão com os deuses, e a magia foi extinta de Orïsha, deixando os antigos Maji (chamados agora de “divinais”) à margem da sociedade e à beira do extermínio.
É com esse quadro que a história de Zélie, uma menina divinal que vive com seu pai, sua mentora, e seu irmão Tzain se inicia. Após precisar fazer uma visita à capital imperial acompanhada de seu irmão, Zélie descobre que a magia pode não ter sido totalmente extinta, e que talvez exista um jeito de obter novamente seu poder, usá-lo para derrotar o Rei Saran e salvar os Maji do completo extermínio.
A saga de Zélie não foge da clássica jornada do herói e parece clichê em diversos momentos. Mas o que mais me manteve presa a este universo foi o fato dele se diferenciar de qualquer obra de fantasia que eu já havia consumido. Se a narrativa pode, como já dito, ter seus lugares-comuns, o mundo e a cultura de Orïsha fogem completamente disso. Tudo que os personagens descobriram, desde magias escritas em Iorubá, os poderes dos Orixás e os costumes culturais reais, foram estudados pela autora e levados para a obra de maneira excepcional. Até mesmo nomes de lugares reais, como Lagos e a Cidade do Benin, se encontram presentes no livro.
Outro fator que se difere fortemente das obras clássicas de fantasia é o conceito de “raça”. Em Orïsha, a maior divisão existente entre a população se dá entre os Maji e os Kosidán, humanos que não possuem poderes mágicos. Esta divisão, inclusive, se difere bastante das concepções de raça mais comumente pensadas, já que não são traços de aparência (fora os cabelos brancos) que as definem, e sim a presença de poderes mágicos, podendo assim membros consanguíneos de uma mesma família serem Maji ou Kosidán.
Porém, engana-se quem pensa que o racismo não é debatido na obra de Adeyemi, já que em diversos momentos fica evidente como os Maji sofrem, principalmente nas mãos das forças da monarquia, e são vistos constantemente como sub-humanos por seus algozes. A diferença principal de Filhos de Sangue e Osso para qualquer outra obra famosa de fantasia é que a mesma sabe como trabalhar a temática do racismo sem perpetuar as práticas e estereótipos racistas associados ao gênero.
Mesmo que as mais de 600 páginas do livro tenham passado voando para mim, é importante ressaltar que a saga de Zélie não se resume a este livro. Ela continua em uma trilogia que já conta com seu segundo livro, Filhos da Virtude e da Vingança, e um terceiro livro anunciado, mas ainda sem data de lançamento, com o título em inglês de Children of Anguish and Anarchy.
Após me aventurar junto a Zélie por Orïsha, ficou claro para mim que Filhos de Sangue e Osso é um livro essencial para qualquer leitor de fantasia. Em sua obra, além de nos apresentar um riquíssimo universo ainda pouco adaptado para o gênero, Tomi Adeyemi faz o importante movimento de resgatar das mãos da branquitude europeia o gênero da fantasia. A autora, claro, não é a única neste processo, mas o sucesso de público e crítica da obra demonstram como histórias assim não são só bem vindas, mas desejadas por um público que talvez esteja saturado de elfos e dragões, e que queira explorar universos onde orixás e outras tradições iorubá sejam seus principais elementos.
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Data de Publicação: 15/12/2022
Autoria: Daria Fernandes Oliveira
Como citar esta resenha:
OLIVEIRA, Daria Fernandes. "Da Terra Média para Orïsha". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/resenhas
ISSN 2764-9407
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Crônicas Ameríndias
História em quadrinhos que narra o folclore e a mitologia dos povos indígenas dos Grandes Lagos prova que é possível apresentar boas histórias com protagonismo indígena
Bernardo de Melo Scalercio
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Gustavo Schimp, Enrique Alcatena.
Crônicas Ameríndias.
Comix Zone. 144 páginas. R$ 90,00
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Eu ainda tenho memórias extremamente vívidas da minha infância de chegar em casa depois da escola, ligar a TV e passar umas boas horas assistindo Pica Pau e depois ir jantar. É interessante imaginar que esses episódios conseguiram me atingir e marcar a minha infância e de muitas outras pessoas praticamente 60 anos depois de sua exibição original. Mesmo com todo esse ar de nostalgia, revisitar esses episódios hoje em dia é uma experiência extremamente curiosa. Retirando a roupagem de humor físico e a ironia dos anos 60, o pequeno e irreverente pássaro azul e vermelho é extremamente preconceituoso – e da forma mais descarada possível. Analisando o desenho com um olhar mais treinado, é impossível não notar que muitas das vezes os alvos do protagonista são indígenas ou em um dos episódios mais memoráveis um jacaré praticante de “voodoo”. Esses pequenos detalhes simplesmente nos passam despercebidos na infância, mas a forma como esses povos são representados pelo audiovisual tende a ter um impacto muito grande em nosso imaginário, que muitas vezes é difícil de dissociar.
A imagem que o estúdio Walter Lantz constrói é de um indígena ignorante e inocente e de uma cultura ridicularizada pelo estereótipo do “mim ser índio”, dança da chuva e cachimbo da paz. A maioria desses episódios tem como foco principal o indígena que tenta capturar o Pica Pau – ou seu cavalo, Pé de Pano – mas que é passado para trás pelo pássaro de intelecto superior. Mas não menos importante, em um surto de crítica social, esbarrei em um episódio que abordava a questão identitária dos povos nativos, no qual um indígena que se acostumou com a vida na cidade não conseguia se adequar às práticas de caça em sua aldeia, e por isso é ridicularizado tanto pelo chefe da aldeia como pelo Pica Pau. Os episódios produzidos entre as décadas de 60 e 70 tinham um viés nacionalista extremamente poderoso, presente seja no protagonista pedindo socorro ao “Tio Sam”, seja na concepção preconceituosa do estúdio do que era qualquer outra forma de cultura que não a branca.
Décadas depois os estúdios Disney produziriam o que seria uma representação mais positiva – entre algumas aspas - dos povos indígenas na América do Norte: Pocahontas. É inquestionável que o filme se apresenta mais agradável que Pica Pau. A Disney tem um histórico bem interessante relacionado ao tema. Em 1937, o estúdio produziu um curta chamado O Pequeno Hiawatha, que narra a aventura de um indígena em sua caçada. O curta conta com apenas 8 minutos e apresenta aquele padrão Disney clássico de caricatura, mas vale a pena assistir para poder entender também esse momento inicial da produção audiovisual. Além disso, é bem mais inofensivo que as outras duas obras já citadas, visto que o enredo gira ao redor do pequeno indígena e sua inexperiência e inocência, que culmina em um mágico momento Disney onde toda a floresta se une para o ajudar. Entretanto, Pocahontas falha no principal ponto onde deveria acertar: dar protagonismo ao nativo. E é compreensível o porquê. O filme tenta construir um constante balanço entre o nativo e o colonizador. A questão é que desde os primeiros minutos fica claro como aqueles ingleses já estavam acostumados a matar e explorar indígenas. John Smith – o eventual interesse amoroso de Pocahontas – é louvado por isso. Ao final do filme, se faz um esforço gigantesco em frisar que existem “colonizadores bons” e “colonizadores maus” – representados pela figura do Governador Ratcliff, um homem de extrema ganância. Se o filme acerta em apresentar visuais pomposos e uma estética mágica, falha em tornar a Pocahontas um personagem de verdade. A problemática se encontra no fato do conflito ser resolvido não pelo bem do seu próprio povo, mas para salvar o suposto “colonizador bom”, que magicamente reconhece os nativos como “seres humanos”. Nesse caso, o meu sentimento ao final do filme foi de quase felicidade. Porque ainda que a animação faça um trabalho excelente em apresentar belos visuais e dar relances da beleza da relação do povo da Pocahontas com a natureza, falha miseravelmente na construção histórica daqueles personagens. Além de apresentar um contexto extremamente controverso ao final, ao tentar balancear o John Smith capturado com o maior guerreiro do povo indígena sendo assassinado.
Nada disso é por acaso. As duas produções citadas acima são estadunidenses e produzidas por grandes estúdios. Desenhos que atingiram milhões de pessoas e atingem até os dias atuais. Ainda que tenham formas diferentes de lidar com o indígena, o viés ocidental e nacionalista é muito claro. É difícil imaginar um mundo onde a Disney – de todos os estúdios – produziria um filme de alcance gigantesco criticando seus colonizadores. É uma ideia realmente utópica, visto que os Estados Unidos têm esse problema até os dias de hoje. O resultado dessa hegemonia de produções rasas ou estereotipadas é tanto a reprodução desses estereótipos preconceituosos (de que “índio faz dança da chuva e fala trocando pronomes”), como também é a falta de conhecimento e reconhecimento da cultura real dos povos originários da América. E é exatamente por isso que histórias em quadrinho como Crônicas Ameríndias são tão importantes.
Crônicas Ameríndias é uma compilação de contos produzidos pelos argentinos Gustavo Schimp e Enrique Alcatena, originalmente publicados para o mercado italiano, mas que foram publicados no Brasil pela editora Comix Zone em um encadernado fenomenal. A HQ conta com 10 histórias que não têm ligações diretas entre si, além da primeira e da última, que contam a história de Kyehe contra o Wendigo – uma enorme criatura que habita os bosques dos Grandes Lagos e devora humanos – e seu desfecho. Honra, deveres, espíritos malignos e a força da natureza são pontos centrais de todas as histórias. Entretanto, o que chama mais atenção é como a narrativa em si desses contos é estruturada. Porque em cada última página lida, o sentimento residual é que a natureza sempre vence. Estamos acostumados a lidar com histórias onde a natureza é subalterna ao homem e um objeto de domínio, uma linha de pensamento eurocêntrica moderna. Enquanto aqui não. Histórias como “O voo do Corvo”, “Uma pequena abertura” e “Cara Manchada” explicitam que não importa o esforço e os meios pelos quais se tenta ludibriar a natureza, ela sempre vence. Um dos contos mais interessantes nesta coletânea é sobre quatro Iroqueses que, pelo interesse em comum por uma arma de fogo, decidem contar histórias de caça, travando uma competição na qual o contador da melhor delas ficaria com o objeto. Esse conto prova para nós, leitores, a pesquisa intensiva que foi colocada em prática no projeto para entender a fundo a cultura desses povos nativos do nordeste da América do Norte, assim como nosso problema com criar expectativas. E essa é a questão central de porquê Crônicas Ameríndias é um produto essencial para quem tem interesse pelo assunto.
Ao criar histórias com indígenas em posições de protagonismo, também se assume uma nova forma de contar histórias. Como é descrito em “O caçador do coração sombrio”: existem histórias para cada situação da vida, que deixam uma moral educativa e são interpretadas como mais do que simples conselhos dos anciãos. Histórias para serem ouvidas só por homens ou mulheres. Histórias secretas que o xamã conta apenas para seu discípulo. Mas também há histórias obscuras, guardadas nas profundezas do coração de seus protagonistas (pp.101-102.). Essa passagem é a que melhor define o que é a história em quadrinhos. Uma compilação de histórias para cada situação da vida, e outras guardadas no coração de seus protagonistas. Histórias em que a natureza vence. Histórias que encerram e recomeçam o ciclo da vida. Ou simplesmente histórias que não se encaixam em padrões epistemológicos com os quais estamos acostumados, como é o caso dos quatro Iroqueses.
De forma geral, a arte soturna de Alcatena exprime de forma fenomenal a atmosfera sombria e gélida dos bosques dos Grandes Lagos, assim como transmite a presença temerosa dos espíritos malignos e criaturas mágicas. Crônicas Ameríndias é uma HQ essencial não apenas para entusiastas do tema, mas também para quem já admira o formato. Foi feita com base em uma grande pesquisa para poder apresentar essas histórias de forma correta, além de retratar os grupos presentes nas histórias e toda sua mitologia. Assim como comentado no início do texto, desconstruir imagens que carregamos desde a infância não é nada fácil, e com toda certeza é mais fácil um jovem ter contato com Pocahontas do que com Crônicas Ameríndias. Mas a importância de se ter obras com protagonismo indígena é inimaginável, e uma pessoa parar de reproduzir estereótipos preconceituosos já é um grande começo.
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Data de Publicação: 28/09/2022
Autoria: Bernardo de Melo Scalercio
Como citar esta resenha:
SCALERCIO, Bernardo de Melo. "Crônicas Ameríndias". In: Experiências de Descolonização dos Corpos e Saberes. Vol.1 2022. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em: https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/experi%C3%AAncias-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-dos-corpos-e-saberes/arquivo/resenhas
ISSN 2764-9407
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